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segunda-feira, 30 de junho de 2014

A cada 2 dias ocorre um feminicídio em São Paulo

(Débora Prado / Agência Patrícia Galvão, 24/06/2014) Dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo reforçam avaliação de que o crime com motivação de gênero é uma das maiores causas da morte de mulheres.
Na última-sexta feira, 13, uma reportagem do jornal Folha de S.Paulo (leia aqui) trouxe dados alarmantes sobre a violência em São Paulo: 12,5% de um total de 1.606 vítimas de homicídios dolosos de janeiro a abril deste ano foram motivados por conflitos entre familiares e casais, segundo dados do governo. Esses crimes levaram à triste estatística de que, a cada 2 dias, 3 pessoas foram mortas em briga de família no Estado.

A reportagem, porém, não informava quantas vítimas deste percentual eram homens e quantas eram mulheres – o que, para especialistas ouvidas pela Agência Patrícia Galvão, desconsidera um dado importante da realidade. “Uma peculiaridade nos crimes que acontecem dentro da família é que, no Brasil e internacionalmente, a maior parte das vítimas são mulheres”, contextualiza a médica Ana Flávia d’Oliveira, pesquisadora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, especialista em violência de gênero e professora no Departamento de Medicina Preventiva da USP.
“Se observarmos os dados disponíveis sobre os homicídios de mulheres, como o Mapa da Violência e o Dossiê Mulher do Rio de Janeiro, vamos ver que os crimes em família têm uma característica feminina. As mortes das mulheres por pessoas que não são da sua intimidade, da sua família, por exemplo, são bastante inferiores aos homicídios praticados contra as mulheres no espaço doméstico. Da mesma forma, a grande maioria das vítimas de estupro são mulheres e o peso da violência sexual contra as mulheres e meninas é mais alto no espaço familiar”, compara a advogada Leila Linhares Barsted, coordenadora executiva da ONG Cepia – Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação, que integrou o consórcio de organizações que elaborou o anteprojeto da Lei Maria da Penha.
Especialista no enfrentamento da violência contra as mulheres, Leila Linhares aponta: “sem os dados desagregados por sexo ficamos sem saber o peso da violência contra as mulheres neste quadro de São Paulo. Podemos inferir apenas que a maioria das vítimas nas brigas entre casais sejam mulheres”.
Os dados desagregados obtidos pela Agência Patrícia Galvão junto à Secretaria de Segurança Pública (disponíveis na íntegra neste link) mostram que as análises das especialistas estão corretas. De janeiro a abril, 63,2% das vítimas de homicídio motivado por conflitos entre casais eram mulheres. Nos conflitos entre familiares, 39,8% das vítimas eram do sexo feminino.
Isso quer dizer que dos cerca de 90 assassinatos motivados por briga de casal, 57 foram de mulheres. Se adicionados a estes dados os números relativos a outro tipo de crime também frequentemente associado à violência de gênero – o de mortes com sinais de violência sexual – o percentual de vítimas mulheres é ainda maior: 83,3%, ou seja, mais 8 homicídios.
ESTIMA-SE QUE A CADA DOIS DIAS UMA MULHER SEJA ASSASSINADA POR RAZÃO DE GÊNERO SOMENTE NO ESTADO DE SÃO PAULO 
Contudo, esses dados ainda podem estar ocultando a real gravidade do fenômeno da violência de gênero, uma vez que consideram só os homicídios dolosos que constam nos boletins de ocorrência registrados pela Polícia Civil no Estado em que foi apontada que a motivação do assassinato enquadra-se em “conflitos entre casais” e aqueles em que o crime foi praticado com violência sexual – duas das condicionantes que segundo o Projeto de Lei do Senado 292/2013 caracterizam o feminicídio (ou o assassinato de uma mulher pela condição de ser mulher, quase sempre cometido por homens e motivado pelo ódio, o desprezo ou o sentimento de perda da propriedade sobre a vítima).
Tabela_homicidio_ssp
SECRETARIA DE SEGURANÇA PÚBLICA DE SÃO PAULO: Distribuição de vítimas de homicídio doloso no Estado segundo sexo e contexto ou possível motivação, com base no Registro Digital de Ocorrências (Jan. a Abr/2014 – em %)
Se também forem considerados os homicídios de mulheres motivados por conflitos intrafamiliares, o número subiria para praticamente um assassinato a cada dia. A Secretaria de Segurança Pública informa ainda que em 28% dos BOs a motivação ou o contexto do homicídio não foi apontado previamente.
“As mulheres são assassinadas por serem mulheres. E não é por acaso que a violência doméstica e a sexual são denunciadas pelos movimentos de mulheres há décadas, é porque elas são uma realidade empírica, um fato no cotidiano das mulheres. E vale lembrar que os casos em que ocorrem mortes são só o pico do iceberg, uma vez que não contemplam muitos mais episódios em que não há morte, mas há danos à saúde física, mental e aos direitos das mulheres”, destaca a médica e pesquisadora Ana Flávia D’Oliveira, diante das estatísticas da Secretaria de Segurança de São Paulo.
Segundo Ana Flávia, a maior parte dos homicídios dolosos acontece no espaço público, no Brasil e no mundo, e é tanto cometida quanto dirigida aos homens. “Eles são a maioria das vítimas na idade reprodutiva, até porque parte do legado da discriminação das mulheres foi colocar o espaço público como um espaço masculino”, explica. No espaço privado, porém, a estatística se inverte: a maior parte dos autores de agressões seguem sendo do sexo masculino, mas a maior parte das vítimas são mulheres.
Nesse sentido, para a médica, ignorar a distribuição por sexo nos crimes cometidos em relações íntimas é um problema, uma vez que não permite a compreensão de que diferentes formas de homicídios necessitam de políticas públicas distintas.
Causas da violência doméstica
Diferentemente do que aponta o psicólogo e professor da USP Sérgio Kodato na reportagem da Folha de S.Paulo – para quem os fatores que influenciam nesse quadro de violência na família vão de crise econômica a desorganização familiar, causada em parte pela ausência da figura da ‘autoridade paterna’ – as especialistas em violência contra as mulheres destacam que as causas dos crimes em relações íntimas são fruto de um padrão histórico, mantido e atualizado justamente pela definição monolítica e hierarquizada de supostos papéis de homens e mulheres, criando relações desiguais de poder.
“É preciso enxergar que nos arranjos familiares há desigualdades de valor e de poder e reconhecer que, se isso não for observado e trabalhado, a violência continuará acontecendo”, avalia a médica Ana Flávia.
Em sentido semelhante, Leila Linhares lembra que a violência contra as mulheres no ambiente doméstico de hoje é fruto da manutenção de um padrão histórico de banalização destes crimes no âmbito da família. “Hoje em dia temos mais estatísticas que mostram claramente que isso acontece, mas vivemos num país em que, até recentemente, a violência contra a mulher era banalizada”, comenta.
Para além da realidade das mulheres, ela aponta ainda outros padrões de discriminação muito fortes no Brasil, que também estão associados ao uso da violência e atingem outras parcelas da sociedade, como negros, indígenas, homossexuais e moradores de rua.
“Não podemos esquecer que no nosso país milhões de pessoas foram tratadas como ‘coisa’. Nós temos essa herança da escravidão, que nos deixou padrões de desumanização do outro. Passamos ainda por ditaduras que legitimaram a violência, como a ditadura militar que deixou um legado forte nas instituições. Além disso, existe um padrão de competitividade muito forte na sociedade hoje em dia, que favorece o não reconhecimento de mecanismos de solidariedade ou de gentileza entre as pessoas. Temos que pensar e refletir muito sobre esse tecido social brasileiro, olhando para o legado dessa história de discriminação e desumanização do outro”, destaca Leila Linhares.
FamíliaAs especialistas ressaltam ainda a importância do reconhecimento dos múltiplos modelos de família para se pensar em políticas públicas que possam diminuir essa violência. “Do ponto de vista sociológico, você tem famílias de mãe com filhos, de avós com netos, tios, famílias homoparentais, mães e pais solteiros – temos um mosaico de formações de família muito forte na sociedade brasileira e esse mosaico não quer dizer que essas novas formas de família vão gerar pessoas que vão cometer crimes. O fato de não se ter pai, por exemplo, não significa que não há ali outras figuras que exerçam a função de criação. Do mesmo modo, a presença do pai não é garantidora de que não vão acontecer crimes. Nós temos criminalidade no mundo todo, por diferentes fatores sociais e psíquicos”, frisa a advogada Leila Linhares.
Para a médica Ana Flávia, é muito perigoso associar os crimes domésticos a normas tradicionais de gênero, como as de que seria papel do homem ser o provedor e chefe da família, enquanto da mulher seria cuidar da casa e dos filhos. “Essas normas só reiteram as desigualdades nas relações que estão na base da maioria destes crimes”, destaca.
Em relação ao homicídio de mulheres, o caminho para reduzir as tristes estatísticas, para a médica, está justamente na mudança de relações desiguais e na efetivação dos direitos já previstos em Lei. “A Lei Maria da Penha é um instrumento legal de política afirmativa para reduzir a violência contra as mulheres que a política urbana não reduz. E o caminho que ela aponta é o de valorização das mulheres na sociedade e a promoção da igualdade entre homens e mulheres”, aponta.
Indicações de fontes
Ana Flávia D’Oliveira – médica, professora do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP
(11) 3061.7085 ou 3061.7285 (Secretaria) – aflolive@usp.br
Leila Linhares Barsted – advogada e coordenadora da Cepia – Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação
(21) 2205.2136 / 2558.6115 / 98700.3106 – barsted@cepia.org.br

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