Mais comum do que a falta de amor é a dúvida que temos sobre os nossos sentimentos
IVAN MARTINS
25/06/2014
Ouvir música no rádio do carro é uma das minhas pequenas alegrias diárias. Muita gente prefere plugar o iPod ou carregar no porta-luvas uma pequena coleção de CDs. Eu não. A experiência repetida me ensinou que, sintonizado na estação certa, o rádio pode me oferecer surpresas – e emoções – que não caberiam na memória de nenhum aparelho.
Ontem, guiando para o trabalho – uma manhã ensolarada de inverno - ouvi os primeiros acordes de Is this love, de Bob Marley. Vocês conhecem essa canção, claro. É aquela, famosa, em que o narrador se oferece para viver sob o mesmo teto com alguém. Ele fala, lindamente, em dividir o abrigo da mesma cama e promete tratar direito a pessoa que deseja. Só então, depois de todas essas garantias, ele pergunta “is this love that I am feeling?” Ou seja, “isto que eu estou sentindo é amor?”
Como todo mundo, devo ter ouvido essa música algumas dezenas de vezes, mas ontem ela me atingiu como uma espécie de súbita iluminação. Isso que o personagem da música faz – perguntar-se sobre a natureza dos seus sentimentos – é o que nós mesmos fazemos o tempo inteiro.
Mais comum do que a ausência de amor, mais comum do que a dúvida sobre o amor do outro por nós, é a dúvida que temos sobre os nossos próprios sentimentos em relação ao outro. Tente se lembrar: quantas vezes, diante dessa ou daquela sensação, deste ou daquele sentimento, você não se viu na mesma situação, perguntando a si mesmo, quase em voz alta: será que isso que eu estou sentindo é amor? Será que eu amo essa pessoa?
O gênio de Marley, assim como a sua honestidade essencial, está em mostrar a situação na ordem (ou na falta de ordem) em que ela realmente se apresenta na vida. Ele não indaga primeiro sobre os seus sentimentos para depois pedir que a mulher se junte a ele. Ele pede ao mesmo tempo em que cogita sobre o que realmente sente. É assim que a gente faz de verdade, embora não gostemos de admitir. Mergulhamos nas relações com dúvidas tremendas, que raramente se dissipam por completo. Um ano depois, 10 anos depois, ainda somos capazes de cantar: is this love, is this love, is this love that I am felling?
Quando se pensa no que o amor se tornou no início do século XXI, não me surpreende que seja tão difícil identificá-lo. O amor dos livros e do cinema é uma coisa enorme, única, transcendente, que, segundo as nossas mais sinceras expectativas, deve nos ligar ao parceiro perfeito, com quem permaneceremos, felizes – mortos de tesão e de ternura – pelos próximos 100 anos. O amor é nada menos, nada mais, do que o sentimento perfeito e totalizante, que toca a nossa alma e abala a nossa existência cotidiana. Ele tem a tarefa de nos carregar ao Céu e nos tornar feliz a cada mísero momento na Terra. O amor é o grande mito e a grande quimera do nosso tempo. Aquilo que todos procuram e ninguém está seguro de ter encontrado. Ou, nas palavras simples do jogador uruguaio Louco Abreu, o amor é foda.
Se nós nos fizéssemos perguntas mais simples e menos pretensiosas sobre os nossos sentimentos, talvez conseguíssemos respostas mais claras. Por exemplo: eu gosto de ficar com essa pessoa? Ou então: eu tenho vontade de morar com ela? Que tal, ainda: eu sinto saudades quando ela não está? Tenho vontade de transar com ela? As coisas que fazemos juntas são divertidas? A presença dessa pessoa me desperta confiança? Ela faz com que eu me sinta melhor a respeito de mim mesmo? Eu a admiro, eu temo perdê-la, eu gosto de pensar que estarei com ela daqui a 10 anos?
Nem todas essas perguntas são fáceis, mas elas são mais simples e tangíveis do que a indecifrável questão do amor.
Tenho observado – e posso estar errado – que o amor é um sentimento claro e absoluto apenas para quem não desfruta dele. Nós amamos, desesperadamente, a pessoa que nos deixou. Nosso amor é óbvio, e inabalável, por aquela criatura que nos deixa em permanente incerteza. Amamos ferozmente, claro, quem nunca deu sinal de nos querer. Se isso tudo é verdade, a moral da história é muito clara: nós amamos, realmente, e de forma permanente, o nosso desejo. Quando ele está saciado – pela certeza do amor e da presença do outro – então já não temos tanta convicção. Faz parte da nossa natureza perversa, eu acho.
Posto isso tudo, minha conclusão é que nos resta viver em paz com as nossas dúvidas insolúveis. Muitos de nós jamais terão certeza sobre o amor, mas isso não deve nos impedir de vivenciá-lo. Sigamos adiante com as dúvidas, as noites de paixão e as manhãs ensolaradas. Talvez o tempo nos responda, talvez façamos uma poesia ou uma música – como Bob Marley – talvez sejamos abandonados e possamos, enfim, amar com o fervor que nós mesmos ansiamos. Ou então, quando estivermos velhinhos, talvez olhemos para trás e percebamos, em meio ao mar de memórias evanescentes, um fio de sentimento ligando tudo, iluminando a jornada inteira, esclarecendo, finalmente, as coisas mais óbvias e mais caras que temos sido incapazes de perceber.
Pensem nisso, na companhia de Bob Marley:
Época
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