Estar com alguém significa partilhar a dor que todos trazem consigo
IVAN MARTINS
18/06/2014
Das coisas que a gente vive, assiste ou lê, lembra muito pouco. Quase nada, na verdade. De um livro de 300 páginas, uma mísera passagem. De um filme inteiro, uma cena. Assim funciona nossa memória: nunca sabemos o que ficará para o futuro, mesmo de eventos supostamente memoráveis. A gente fica lá, de olhos e ouvidos arregalados, tentando reter tudo, e descobre, cinco anos depois, que só se lembra do decote da moça que estava na cadeira ao lado. Ou nem isso.
Anos atrás, assisti à peça de teatro que deu origem ao filme Closer, perto demais, que todo mundo conhece. De uma hora e tanto de diálogos no palco, me lembro claramente apenas de uma frase, que é uma queixa feminina. “Os homens entram na nossa vida dizendo não ter carga nenhuma. Dias depois, chega um container com tudo que eles carregam”, diz uma das personagens. Ou será que ela dizia “um caminhão de mudanças”? Nem da tal frase eu me lembro com certeza.
Uma das grandes ironias da nossa vida comum, que a peça captura com perfeição, é que nós, embora nos lembremos de tão pouco, somos condenados a viver com as memórias daqueles que amamos. Este é o container, ou o caminhão de mudanças, a que a peça se refere. E ele certamente não é exclusividade dos homens – embora nós talvez saibamos esconder a nossa carga melhor do que as mulheres. Por um tempo, ao menos.
Estar com alguém é partilhar a carga que ele ou ela traz consigo. São dores, traumas e decepções. São dificuldades íntimas ou conflitos de família. Não penso em problemas que se possa resolver assim, de forma prática. São coisas com as quais se vive, e por isso constituem uma carga. Não é possível livrar-se delas com um gestou ou uma solução. Elas fazem parte do outro que a gente ama.
Às vezes, me parece que a capacidade de conviver com a dor do outro é uma das medidas da nossa capacidade de amar. Gente muito voltada para si mesmo não consegue partilhar as dificuldades alheias. Tornam-se impacientes, se entediam e, ao final, refugiam-se na indiferença. Afinal, por que não estamos aproveitando o tempo para nos divertir? Por que não estamos falando a meu respeito? Os sentimentos egoístas nem sempre são claros, mas explicam parte da dificuldade em conviver. Quem quer atenção em tempo integral não consegue perceber o outro. Nem gostar dele realmente. Amar, afinal, da forma como eu vejo, é apaixonar-se também pela dor alheia. Mas para isso é preciso olhar além de si.
Se isso parece pesado, não é.
De manhã, quando chove, a presença da mulher que a gente ama torna o mundo mais fácil, não mais difícil. Quando é o caso de reclamar, ou exibir fraqueza e perplexidade diante do insolúvel, ela está lá. Assim como estamos para ela. Às vezes, a gente ri de tudo e a vida parece uma taça de champagne borbulhando. Leve, leve, leve. Em outras ocasiões, partilha-se o intolerável de mãos dadas. Assim vamos: ao som de uma melodia imperceptível, dançando juntos, cada um com a sua carga, como um par de caramujos obstinados e felizes.
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