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Jovem Soropositivo
Pseudônimo de um jovem paulistano portador do HIV
15/06/2014
Antes que o nosso ano seja dividido de vez entre antes e depois da Copa e, em seguida, antes e depois das eleições, aproveito para falar sobre uma divisão que apesar de amplamente difundida mundo afora é perigosamente equivocada. Dividir o mundo entre soropositivos e soronegativos, os portadores e os não portadores de HIV/aids, é ineficaz. Pior, dividir o mundo dessa maneira é perigoso para a sua saúde e para o controle da epidemia no mundo.
Depois que fui diagnosticado portador do HIV e aprendi bastante sobre a doença, entendi que essa divisão não explica nada sobre o risco de transmissão e sobre o impacto que receber um diagnóstico positivo para o HIV tem sobre o controle da epidemia. A verdade é que, na prática, existem três situações distintas de conhecimento da sorologia, sua ou de seu parceiro, e que impactam diretamente sobre a transmissibilidade. São elas:
A) A primeira diz respeito aqueles que têm o hábito de fazer o teste de HIV com frequência e sempre usar camisinha. Se por acaso falham em usá-la, fazem o teste de HIV pelo menos 30 dias depois da última relação sexual desprotegida, respeitando o período da chamada "janela imunológica", que é o tempo que o organismo leva para produzir os anticorpos que sensibilizam o teste. Uma pessoa só pode ser consideradasoronegativa se, cumprindo essas condições, receber resultado negativo no teste de HIV.
B) A segunda é aquela da qual faço parte, aqueles que fizeram o teste de HIV e este veio positivo. Quem passa por isso é então um soropositivo, um portador do vírus, uma pessoa que vive com o HIV. Seguindo o atual protocolo do Ministério da Saúde, quem recebe o diagnóstico positivo pode começar imediatamente seu tratamento com terapia antirretroviral, o "coquetel", que é gratuito em todo o País. Trata-se de uma poderosa combinação de fortes medicamentos que são capazes de levar a "carga viral", que é quantidade de vírus presente no sangue, a níveis indetectáveis pelos exames de laboratório. É o meu caso e de 76% dos que vivem com o vírus e sob tratamento no Brasil.
C) Mas há ainda um terceiro grupo, que geralmente passa despercebido pela maioria das pessoas. É o grupo daqueles que não sabem se têm ou não HIV, pois nunca fizeram ou não tem o hábito de fazer o teste. Se fazem, às vezes não respeitam a janela imunológica. Nessas condições, é impossível determinar a sorologia deste indivíduo, ao qual podemos chamar de sorointerrogativo, um apelido bem apropriado pare este caso. (Há também aqueles que não fazem o teste porque morrem de medo dele ou do seu resultado, a quem eu gosto carinhosamente de apelidar de sorodesesperados!)
Esse cenário, que é real, mostra algo curioso. Os grupos das situações "A" e "B" têm algo essencial em comum: ambos cuidam da própria saúde. E a realidade, com base no conhecimento médico e científico que temos hoje, é clara: quem se cuida não transmite e não contrai HIV. E eu vou explicar o porquê.
O uso da camisinha, hábito de quem se cuida, oferece 95% de segurança se utilizada corretamente. Por sua vez, a camisinha e a terapia antirretroviral combinadas, oferecem segurança de 99,2%. Sim, é mais seguro fazer sexo com camisinha com um portador do vírus que sabe da sua condição, cuida da sua saúde, tomando os remédios e mantendo a carga viral indetectável, do que transar com alguém que você não sabe a condição sorológica para o HIV. Num texto anterior, eu disse que o risco de contrair HIV de um portador do vírus que se cuida era o mesmo de "ser atingido por um cometa". Peço desculpas, eu errei. Àquela altura, disse isso como força de expressão e só hoje é que eu realmente fiz as contas. A verdade é que é 3 vezes mais provável ser atingido por um meteorito do que pegar HIV através de sexo com camisinha com um portador em tratamento e com carga viral indetectável.
O mesmo não se pode dizer do grupo "C", pois eles não cuidam da sua saúde. E quem não se cuida e não faz o teste, pode ser um portador do HIV não diagnosticado. Sem tratamento, a carga viral é possivelmente alta e, com isso, a transmissibilidade também. Existem dois momentos em que um portador sem tratamento apresenta maior carga viral e, portanto, maior risco de transmissão: no estágio final da infecção, já próximo dos primeiros sintomas da aids, e na fase inicial, logo após a entrada do vírus no organismo. Portanto, um recém-infectado que não sabe da sua condição é um potencial transmissor do vírus.
Posso parecer um parlamentar tentando defender o próprio aumento de salário -- ou, no caso, a credibilidade de um discurso que tem interesse próprio --, mas a verdade é que não estou sozinho e a compreensão que eu apresento aqui é extremamente benéfica para o controle da epidemia no mundo. Em 2012, ao lado do governo da Noruega e de membros da sociedade civil de diferentes países, a Unaids propôs a Declaração de Oslo, a qual faz lembrar que:
"A epidemia de HIV é nutrida pelas infecções por HIV não diagnosticadas e não pelas pessoas que conhecem seu status positivo para o HIV."
A declaração da Unaids é endossada pelo famoso Swiss Statement, a declaração feita em 2008 pela Comissão Nacional de Aids da Suíça, e por declarações similares feitas por autoridades médicas australianas e alemãs. Dois estudos científicos, HPTN 052 e Partner, dos quais já falei bastante aqui, vieram ao encontro com destas declarações. Juntos, ambos já analisaram mais de 2 mil casais sorodiscordantes (quando apenas um dos parceiros é portador do HIV) e que não usam preservativo em todas as relações sexuais. Até o momento, não foi documentado um único caso sequer de transmissão do HIV a partir de um soropositivo que toma antirretrovirais e tem carga viral indetectável. No mês passado, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças americano (em inglês: Centers for Disease Control and Prevention -- CDC) publicaram um texto sobre o risco de transmissão do HIV que usa como base o resultado destes estudos.
Com isso, espero que não reste mais nenhuma dúvida: a divisão entre soropositivos e soronegativos é ineficaz. O que existe de fato são aqueles que se cuidam e os que não se cuidam. De qual deles você quer fazer parte?
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