– ON 27/06/2014
Na sociedade falocêntrica, os homens são as réguas. Mesmo com todo o “desejável”, ainda nos sentiríamos inadequadas. Subvertamos esta roda retrógrada
Por Marília Moschovich | Imagem Egon Schiele, Mulher com meias verdes, 1914
Eu tenho os pés grandes. Sou bem mais alta do que a média das mulheres e do que boa parte dos homens em nosso país. Não sou gorda, mas estou bem mais longe de ser magra. Usei óculos durante toda minha vida adulta, até bem pouco tempo atrás. Tenho os quadris (bem) largos. As coxas gorduchas. Um pouco de papo. Pelos em tom escuro. Estrias. Vasinhos nas pernas. Cicatrizes.
Sempre tive – e ainda tenho – dificuldades em encontrar sapatos que me sirvam. Coloridos, diferentinhos, com pequenos charmes? Ainda menos. Roupas também, embora sapatos sejam mais fáceis. Sutiãs perfeitos? Nem sonhando. Sempre destoei, em termos de corpo, tamanho. Sempre me senti um peixe fora d’água (ou uma baleia – e nada contra as baleias, aliás, que lideram minha lista de animais favoritos junto aos elefantes, claro; questão de empatia).
Ao mesmo tempo, sempre tive outras características que me faziam nem-tão-fora-d’água-assim: não sou portadora de nenhuma deficiência física, sempre fui boa em esportes, danças e coisas que exigem coordenação motora corporal, sou branca, meu nariz está dentro de um padrão considerado bonito, não tive nem tenho orelhas de abano, tenho corpo acinturado, meus cabelos ficam entre lisos e cacheados e estão dentro do que se considera “bonito” por aí, nunca usei nem precisei de aparelho nos dentes.
Nenhuma dessas características jamais me fez sentir bem quando uma roupa não servia. Tampouco eliminou minha frustração ao comprar sapatos (se tem uma coisa que eu detesto ter que comprar, até hoje, são os malditos sapatos). Sempre achei que minha vida seria mais fácil se eu tivesse os pés menores do que 40/41 e usasse calças de tamanhos menores do que 44/46. Bobinha.
Basta conversar com qualquer mulher de qualquer tamanho e ver que todas nós compartilhamos dessa exata mesma sensação. As mais altas que eu, as mais baixas que eu, as mais gordinhas, as mais magrinhas, as de pés maiores e as de pés menores. Todinhas. Inclusive – anotem aí – as modelos e atrizes consideradas “perfeitas” em nosso padrão de beleza. Pois é.
Não é novidade que a indústria da moda produz vestuário e acessórios para corpos que não existem. As numerações são em geral ridículas (que dizer de certos tamanhos G por aí? apenas: risos), a quantidade de peças produzidas e revendidas às consumidoras finais – em especial nos tamanhos “maiores” e “menores” dessa escala tosca – é sempre insuficiente para a demanda, e nem vou entrar aqui na discussão sobre a publicidade utilizada por essas corporações, nem sobre o uso de trabalho escravo ou imagens alteradas digitalmente. Todo o ponto da coisa é: por que carregamos a culpa de não servirmos nas peças criadas e revendidas nessa indústria?
A culpa de “não servir” é tanta que nos atiramos a regimes ridículos, muitas vezes arriscando nossas vidas por isso. Fazemos cirurgias plásticas de todos os tipos porque se torna insuportável psicologicamente convivermos com o sentimento de inadequação e com a autoestima destruída diariamente por ele. Essa culpa não é uma escolha voluntária, uma pedra que decidimos carregar. É uma construção de séculos na história ocidental que tem uma função social muito específica: controle.
Em O Segundo Sexo, livro que Simone de Beauvoir escreveu sem saber que era feminista (surpresa: ela só de autodeclarou feminista uma década mais tarde!), esse processo de construção do que consideramos “masculino” e “feminino” é recuperado de maneira bem acessível e interessante. Resumindo um tantão essa ópera, dá pra dizer que a filósofa mostra por meio de exemplos diversos como nossa cultura se construiu tendo o masculino como fiel da balança, como neutro. Tudo que é considerado feminino é considerado específico, particular, desviante. O masculino é considerado universal, geral, norma. Não é à toa que, numa sociedade que se ergue a partir dessa perspectiva, nós mulheres temos sempre a sensação de estarmos erradas. Mesmo quando estamos “dentro dos padrões”.
É por isso que ouvimos tanto as meninas magrinhas quanto as gordinhas contando que sofriam com apelidos na escola. Tanto as de cabelos lisos quanto as de cabelos cacheados. Tanto as altas quanto as baixas. Tanto as de corpo considerado lindo e consideradas bonitas quanto aquelas consideradas feias. Todas sempre erradas e, mais do que isso, tendo seus corpos e sua existência física sob constante patrulha. Esse é outro resultado dessa construção que Beauvoir explica (e depois autoras como Judith Butler em diálogo recente sobretudo com as teorias de Michel Foucault, organizam ainda melhor): todas as pessoas e instituições (como o Estado, por exemplo) acreditam verdadeiramente estarem no direito de controlarem, patrulharem, vigiarem e interferirem nos corpos das mulheres.
Esse processo começa na convivência infantil, e chega ao assédio que sofremos nas ruas todos os dias, passando pela briga constante sobre o aborto na esfera política, ou pelo abuso de cesáreas nos hospitais brasileiros.
Muitas vezes, cegas pela dor que a experiência individual nos causa, acabamos criando quase um clima de competição entre nós, mulheres: ser alta é pior do que ser baixa; ser gorda é pior do que ser magra; ter cabelos cacheados é pior do que ter cabelos lisos; etc. Nesse processo nos esquecemos de que mesmo que tivéssemos todas as características físicas consideradas desejáveis para mulheres, ainda nos sentiríamos totalmente inadequadas (como se sentem aquelas que temos o descaramento de chamarmos “modelos”). Nos tornamos paulatinamente parte desse ciclo, dessa roda sexista que gira a cada tentativa nossa de patrulhar o corpo de outra mulher, em vez de acolher sua experiência e sua dor com a inadequação que sentiu ao longo da vida.
Se desejamos destruir essa engrenagem, precisamos fazê-lo juntas. Compreendendo-nos, umas às outras, como mulheres. Sejamos altas, baixas, gordas, magras, dentro ou fora dos padrões de beleza, cisgênero ou trans*. Estamos todas no mesmo barco, erradas por definição nesse sistema que Freud e Lacan diriam falocêntrico.
Que partamos, então, para subverter essa roda inventada e sustentada há tantos séculos, que só sabe rodar em marcha ré.
Estou errada. Sou errada. E é nisso que reside a minha libertação.
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