Por Claudia Penteado
Aviso: este texto contém 'spoilers'. Na 'Visita de Domingo', Claudia fala da desconstrução da fada má Angelina Jolie
08/06/2014
Arte e vida se misturam.
Fantasia e realidade se acrescentam. (Affonso Romano de Santana)
A ovelha negra vira protagonista e mostra sua dor em Malévola, nova produção infantil da Disney, que conta a história da fada má que enfeitiça Aurora, a eterna Bela Adormecida criada em 1697 pelo francês Charles Perrault, depois adaptada - e suavizada - pelos irmãos Grimm. Para escrever sua versão, Perrault teria se inspirado no conto “Sol, Lua e Tália”, de Giambattista Basile - uma história de estupro, adultério, assassinato e toda sorte de barbaridades publicada no século XVII - bem distante da que conhecemos e que a Disney transformou em filme há 55 anos.
Malévola subverte a versão açucarada que nos contaram ao revelar a biografia da grande vilã que dá nome ao filme, freudianamente reconstruída em torno do trauma da rejeição. O maior mérito da Disney parece estar no lento - porém progressivo - despertar de um longo sono maniqueísta saturado de vilões incondicionalmente desalmados e príncipes redentores.
Está ali, em Malévola, a contradição presente em cada um de nós, pessoas ambíguas e passíveis de sentimentos desencontrados, dúvida, arrependimento e mudança. O final feliz está lá, é verdade - afinal é um filme dirigido ao público infantil - e o “bem” acaba vencendo, mas ele vem de um lugar inesperado.
Há um “beijo de amor verdadeiro” que desperta a princesa, e no entanto ele vem da vilã, a mesma que lhe causou todo o mal. Para a minha filha de 11 anos, a repentina inutilidade do príncipe foi o momento mais marcante.
No filme de Robert Stromberg, a Malévola de imponentes chifres negros e todo o peso de seu nome - maléfica, malvada, perversa, maldosa - se arrepende. O fato de ser também capaz de amar e ter sentimentos maternais é algo que não costuma fazer parte dos contos de fadas e sim do mundo real, banhado em contradições e muitos, muitos tons de cinza.
Aqui os líderes são fracos, mães cometem erros e relações afetivas não se constroem num piscar de olhos, exatamente como em Malévola, que nos apresenta um rei atordoado e mais preocupado consigo mesmo do que com a filha, fadas sem paciência ou competência para cuidar de uma criança, e um príncipe que não se apaixona pela princesa tão facilmente.
Realidade mistura-se ainda mais nesse conto de fadas às avessas quando enxergamos a atriz por trás da personagem principal, vivida pela outrora rebelde (mas ainda polêmica) Angelina Jolie. De “garota problema” na juventude, ela se transformou em defensora de causas humanitárias e exemplo de coragem e fibra, capaz de adotar crianças no Camboja, extirpar os próprios seios diante da mídia e reconhecer que tem, sim, muito de Malévola dentro de si.
“Nasci de coração aberto, mas como acontece com todo mundo, passei por coisas diferentes na vida que me fizeram confiar menos, ficar mais sozinha, mais irritada e mais cuidadosa.”, disse Angelina em uma entrevista sobre o filme.
Nietzsche afirmou que a arte está aí para não morrermos da verdade. A fantasia sempre pareceu melhor do que a realidade e, de fato, sonhar sempre foi mais interessante do que pisar no chão. Mas de alguns anos para cá, a ficção vista nas telas televisivas nos apresenta cada vez mais heróis e vilões que transitam num oceano de ambiguidade e, mais do que isso, de humanidade. As séries de TV modernas estão repletas dos chamados personagens redondos (definição do escritor E. M. Forster) que, diferente dos planos – coerentes e facilmente rotuláveis - são multifacetados, profundos, sofisticados.
Como somos todos, afinal de contas.
Os espectadores passaram a ansiar pela sedução de personagens bem diferentes das que frequentavam suas salas de estar em outros tempos: criaturas infelizes, moralmente incorretas, complicadas, profundamente humanas. É o que diz o jornalista Brett Martin em seu livro “Homens difíceis”, que conta a história recente da ficção na TV americana.
“Elas se envolvem em um jogo sedutor com o espectador, desafiando-o emocionalmente a investir, eventualmente torcer e até amar uma gama de personalidades criminosas cujos delitos acabariam incluindo tudo – de adultério a poligamia, vampirismo e assassinatos em série”, disse Brett.
Ainda que embalado como filme infantil, Malévola provoca os sentidos e os pensamentos, e consegue retratar as complexidades e profundezas da alma humana. Até o corvo de Malévola tem a oportunidade, no filme, de se humanizar e se confrontar com escolhas e velhos dogmas. Há uma busca por pessoas de verdade e, mais do que isso, por enxergar nos supostos vilões não o que os torna bons ou maus, mas o que os faz humanos. O grau de perversidade de cada um varia, afinal de contas, com as circunstâncias – e os objetivos a serem conquistados, só para lembrar do bom e velho Maquiavel.
Imagino que "desconstruir" os contos de fadas, mostrando novas abordagens e insinuando-se e subvertendo sua suposta moralidade, talvez faça bem a toda uma geração que amadurece cada vez mais rápido e encontra pela frente um mundo em constante mudança. Mais do que desconstruir, mas reler e ressignificar é um sintoma do nosso tempo, e o reconhecimento de que nada ao nosso redor é estanque, ou eterno.
Em breve, por exemplo, minha filha entrará na adolescência e terá de lidar, entre muitas outras coisas, com um novo tipo de fugacidade nos relacionamentos afetivos, em que parceiros são escolhidos via catálogo digital e, como li outro dia em algum lugar, as pessoas "se consomem", não se amam mais. Existe algo mais distante dos velhos contos de fadas da Disney?
Há um momento no filme especialmente interessante: o encontro entre Malévola e a pequena Aurora, quando esta não parece ter mais do que uns 2 anos de idade. O olhar infantil generoso para a “monstruosa criatura” representa brilhantemente o que para mim é a grande mensagem de Malévola: de que os pré-julgamentos e as suposições a partir de aparências, por exemplo, nos traem e nos impedem de viver grandes encontros vida afora. Bom domingo!
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