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Sinopse do filme. Menino conhece menina. Em um enterro. Frequentam vários outros funerais juntos. Começam relacionamento. Menina tem câncer terminal. Menina morre, menino amadurece. Final feliz. Como não?
Inquietos, de Gus van Sant (que estreou ontem), é um filme fofo. (Talvez fofo demais.) Bem sessão da tarde. (Que talvez seja melhor você esperar pra assistir na própria sessão da tarde.) A mensagem do filme: aproveite a vida. (Se você já não sabe disso, será que vai ser um filme que vai te ensinar?)
A história passada do menino: perdeu os pais num acidente de carro, ficou três meses em coma sem esperanças de acordar, voltou à consciência por milagre, foi expulso da escola por mandar pro hospital um colega que fez pouco de seus pais, tem um amigo imaginário camicase japonês (pista: alguém cujo gesto primordial foi se matar), frequenta como penetra enterros de desconhecidos, tem uma relação de menino mimado com a tia que largou sua própria vida para criá-lo.
A história passada da menina: ela têm câncer.
Preciso dizer mais?
Se você já entendeu, pode parar por aqui. O resto do texto é nota de rodapé.
Link YouTube | Trailer de Inquietos. Com impagáveis legendas em português de Portugal.
O teste Bechdel
O Teste Bechdel tem como objetivo chamar atenção para o fato de grande parte da produção cultural contemporânea ser feita por homens, para homens, sobre homens. Para passar no teste, a obra precisa somente atender um requisito aparentemente simples:
Existem duas ou mais personagens femininas que conversam entre si sobre um assunto que não seja homem?
O teste não mede a qualidade nem o “feminismo” de um filme. O fato de um filme passar no teste não quer dizer que seja feminista, politicamente correto, ou mesmo bom. O fato de não passar não quer dizer que seja machista, ou ruim.
O problema não são esses filmes individualmente. O problema é a gigantesca maioria dos filmes serem assim.
Alguns filmes famosos que não passam no teste:
- Matrix
- A rede social
- Toda a trilogia do Senhor dos anéis
- A primeira trilogia de Star wars
- Corra, Lola, corra
E, naturalmente, Inquietos, de Gus van Sant.
Link YouTube | O teste Bechdel, bem explicadinho. Em inglês.
A menina sonhadora feliz cabeça-de-vento
O termo foi inventado pelo crítico de cinema Nathan Rubin para descrever a personagem de Kirsten Dunst em Tudo acontece em Elizabethtown – e também centenas de outras personagens previsivelmente parecidas do cinema contemporâneo. Em inglês, “manic pixie dream girl”. E eis como ele a define:
aquela criatura efervescente e superficial, existente apenas nas imaginações febris de sensíveis escritores e diretores, cujo único objetivo é ensinar jovens reprimidos e sorumbáticos a abraçar a vida e seus infinitos mistérios e aventuras.
Alguns filmes famosos com a menina sonhadora feliz cabeça-de-vento:
- Quase famosos
- Joe contra o vulcão
- Essa pequena é uma parada
- Bonequinha de luxo
- Se meu apartamento falasse
- Doce novembro
- Totalmente selvagem
- Outono em Nova York
- Um beijo a mais
- Noivo Neurótico, Noiva Nervosa
O grande problema dessa personagem é que ela não possui existência individual. Ela só existe para que o protagonista masculino cresça, mude, melhore, evolua, avança. Tudo é em função dele.
Basta conferir: ao final do filme, quem foi que mudou e quem permaneceu igual? Via de regra, uma obra narrativa é sobre aquele personagem que passa por uma viagem interior que resulta em algum tipo de mudança; os personagens que não mudam, os coadjuvantes, estão na trama para catalizar esse processo.
Por ser aérea e fofinha, mas também livre e independente, a menina sonhadora feliz cabeça-de-vento simultaneamente evoca o fetiche da pureza e o tabu da pedofilia (afinal, ela age como uma criança, é pura, lúdica, brinca, etc) mas também é mulher (pode ser desejada ou abordada sexualmente sem culpa e sem medo), embora não forte ou agressiva (ninguém que vá ameaçar o homem, ganhar mais que ele, disputar o controle da relação, etc). Ou seja, para grande parte dos homens, é a mulher perfeita.
O Alexandre Soares Silva escreveu uma vez que sonhava com um filme onde uma cafona e calientemulher latina conhecesse um alemão rígido e reprimido e, ao final do filme, aprendesse com ele as alegrias da repressão emocional. Não sei se seria um bom filme, ou se passaria o teste Bechdel, mas com certeza seria uma grande novidade no cenário cinematográfico mundial.
Inquietos, de Gus van Sant
Apesar de ser um filme fofo, o grande problema de Inquietos é que ele ignora a moça morrendo de câncer.
Mal sabemos quem ela é. Praticamente não tem história pregressa. Não conhecemos seus amigos, não sabemos em qual escola estudou. Sua mãe e sua irmã (o que fazem? do que vivem?), quando aparecem, é pra conversar com ela sobre seu novo namoradinho. Quais eram seus planos de vida? Não sabemos. De onde vem o dinheiro para manter um guarda-roupa retrô divino, capaz de chamar atenção até de um homem quase hétero como eu, completamente incompatível com a casa onde mora e a vida que leva? Talvez o maior mistério do filme.
Sabemos apenas que é linda (claro), fofíssima (sempre) e que encara o seu câncer terminalsuuuuper na boa.
O filme inclusive faz um esforço comovente para não mostrar nenhum dos aspectos, digamos, mais concretos e visíveis da doença – aspectos esses tão conhecidos de quem já teve um familiar com câncer. Tirando um breve convulsão, já no perto do final, anunciando sua morte iminente, nada em sua aparência física ou comportamento indica a doença terminal.
(Afinal, se ela estivesse feia, deformada ou sem cabelo, não seria linda e não nos importaríamos com ela – gente feia sofrendo é o que não falta na vida real! E se estivesse confusa, deprimida, histérica, em crise, ela seria um peso emocional para nosso herói e, sinceramente, ele acabou de perder os pais e ser expulso da escola, não pode lidar com isso agora! Ele precisa de alguém que ajude a ele, poxa!)
Então, ela é apenas mais uma menina sonhadora feliz cabeça-de-vento, que conhece um menino e muda a vida dele.
Pois o filme claramente é sobre ele e só sobre ele. Sobre a viagem de aprendizado dele. Sobre o amadurecimento dele. Sobre ele superar o trauma de perder os pais.
Narrativamente falando, até mesmo a morte de dois adultos em um acidente de carro ou uma expulsão da escola são retratados mais como tragédias do que o fato de uma menina ter câncer terminal. Afinal, tanto o acidente quanto a expulsão têm consequências práticas e emocionais na vida do menino, o deixam traumatizado, rebelde, à deriva. Já o câncer da menina aparentemente não tem peso algum, não tem consequência alguma: que saibamos (e não sabemos mais porque o filme jamais volta seu olhar para esse lado), a menina está vivendo sua vida exatamente como vivia antes.
Ao longo do filme, ela não muda. Não aprende. Não evolui. (Essas são prerrogativas dele.) Aparentemente, ser jovem e ter câncer terminal não leva a nenhum aprendizado, a nenhum insight, a nenhuma questão existencial, a nada. Leva apenas a querer mudar a vida de um emo que perdeu os pais, foi expulso da escola e vê pessoas que não existem.
Mas, pô, não é o suficiente? O que mais uma jovem mulher pode desejar antes de sua morte prematura além de saber que mudou a vida de um homem?
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