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domingo, 27 de julho de 2014

O ponto de vista infantil

Criança é inquieta, questionadora e engraçada. No livro "A menina", ela é um personagem talhado para divertir e fazer pensar

O livro "A menina" (Foto: Divulgação)
O livro "A menina" (Foto: Divulgação)

ISABEL CLEMENTE

27/07/2014 

Crianças nos presenteiam diariamente com perguntas e exclamações capazes de comover, instigar e ensinar. Com crianças por perto, recuperamos a capacidade de sonhar e de enxergar mais poesia na vida. A lógica delas por vezes é tão certeira quanto absurda.
Por isso, quando peguei o livro A menina, de Cezar Migliorin (Editora Azougue), pensei "isso poderia ter sido dito por uma das meninas na minha casa ou por um de nós, quando pequenos". Esse livro trata do mundo de meninas e meninos, suas dificuldades e espertezas. 
A menina enjoada, no livro de Cezar, diz “a minha velocidade não combina com a da estrada”. Eu ri por identificação. Quando eu era criança, tinha o mesmo problema nas curvas que nos separavam de Minas. “Por que não fizeram as estradas retas?”, eu perguntava, do banco de trás sem cinto da Brasília azul em que viajávamos. Tinha tanto espaço verde à margem da estrada que não fazia sentido o ziguezague projetado para fazer enjoar. “Bebel, olha as vacas!”, minha mãe dizia, quase como a mãe de A menina, com mania de mudar de assunto. Eu ri de novo por identificação. Já mudei de assunto com a mesma intenção.
Cezar Migliorin é casado, pai de dois adolescentes e professor de Cinema da Universidade Federal Fluminense, onde coordena o projeto Inventar com a Diferença, que mescla educação, cinema e direitos humanos. As oficinas ministradas pela turma da UFF sob seu comando formam professores que irão levar adiante propostas para transpor da vida real para a arte (e vice-versa) a ideia de que Direitos Humanos é matéria indispensável também para a formação das crianças.
Nos últimos dois anos, por causa do projeto que coordena, Cezar frequentou e visitou muitas escolas. Cercado de crianças e suas interrogações, criou ao longo de um ano essas pequenas cenas que traduzem de maneira simples algo que a Filosofia poderia explicar de forma mais complicada.


O olhar que a menina lança sobre todas as coisas é pura poesia e rico em sabedoria, como o daquela criança que, na sua casa, dispara falas que merecem registro porque geram sorrisos, arqueiam sobrancelhas e podem silenciar.

“- Filha, você sabia que a Anita está fazendo balé? Por que você não faz como a Anita?
-      mãe, nem a Anita é como a Anita.”

Quem nunca usou recurso parecido com o filho ou como filho não foi vítima de estratégia semelhante está dispensado de sorrir. Parece verdade, mas A menina é todo ficção. "Tem pouquíssimo embasamento na realidade", diz o autor, que inventou diálogos e frases típicos de uma mente infantil inquieta e sábia. "A menina estranha tudo", diz, com ar divertido, ciente de que esse estranhamento é bastante real.
As frases são pequenas. É no espaço do diálogo que a gente consegue imaginar o rostinho de alguém, o tédio da criança crescendo, a incompreensão que surge sorrateira e irônica do conflito daquele que, adulto, imagina saber tudo e o outro que, já pré-adolescente, está sem paciência para se explicar.
Na busca de simplicidade, as histórias enxutas deste livro estão excluídas de maiúsculas. Como se todo o texto fosse uma manifestação do mundo infantil. É ousadia da narrativa poética. A letra minúscula pede espaço para crescer, como a criança questionadora do livro A menina (Editora Azougue).
Abaixo, uma pequena amostra. Divirta-se.
"de manhã a professora de português disse que no primeiro ano a menina não podia fazer mais aquele tipo de erro.
a tarde a mãe lhe disse que "daquele tamanho" ela tinha que lavar o copo que tomou água.
a noite o pai falou que estava na hora de criança ir pra cama.
seria tão bom eu ter a idade que tenho, pensou a menina."

***

"- filha, a nota de Matemática foi muito ruim!
- é verdade, disse a menina.
- você deveria ficar preocupada.
- eu estou! mas não muito...
- pois eu estaria muito preocupada, insistiu a mãe.
- sabe o que é mãe, acho egoísta ficar pensando só no meu problema."
***
“A menina viu  lua quase cheia pelo espelho da porta do armário. com a ponta do pé, balançou levemente a porta e levou a lua de um lado para o outro. muitas vezes.
-      ah, como é bom movimentar o universo, pensou a menina.”

***

"A menina saiu do shopping emburrada, quase batendo o pé, o que é normal quando as crianças deixam o shopping.
- filha, você tem que entender, vou repetir: você não está precisando nem daquele short, nem está precisando daquele tênis.
- entendeu?  - perguntou a mãe já ouvindo a máquina do estacionamento.
- entendi, entendi. mas mãe, se fosse para racionalizar, nem o shopping existiria.
a mãe colocou o cinto de segurança."

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