Conheça a história de mulheres que, por meio da tecnologia e do Software Livre, lutam por uma maior participação feminina e por tratamento igualitário em uma área historicamente dominada por homens
Por Ivan Longo
“Você precisa de ajuda?”; “O que quer fazer, exatamente?”; “Nossa, tão bonita e está aqui”; “Chegou a beleza do setor!’. Aparentemente inocentes, essas frases são apenas alguns exemplos de como as diferenças de gênero se materializam na área da tecnologia, um ambiente historicamente dominado por homens.
Essa predominância masculina em empresas de desenvolvimento de software, instituições de ensino e projetos tecnológicos não se dá por acaso. Ocorre por que as ciências exatas, em uma sociedade machista, são tidas como uma área para homens, e mulheres acabam ocupando funções consideradas secundárias ou associadas como marketing, design ou relações públicas dessas empresas.
“Não é um problema da área de Tecnologia da Informação, mas da sociedade como um todo. Desde pequenos os meninos são incentivados a brincar de carrinho, ganham caixa de ferramentas, desmontam as coisas com os pais, enquanto as meninas brincam de boneca. Isso acaba se intensificando no ambiente profissional”, explicou Ariadne Pinheiro, analista de sistemas que se classifica como uma “apaixonada por desmontar coisas”.
Ariadne faz parte do comunidade Joomla no Brasil, organização de software livre – sem fins lucrativos – que desenvolve ferramentas de gerenciamento de conteúdo como sites e plataformas, com códigos, templates e soluções abertas. Ela esteve presente no 16º Fórum Internacional Software Livre (FISL) realizado em julho em Porto Alegre e foi uma das mulheres que compuseram os 25% de participação feminina no evento.
Além de aprender, conhecer as novas tendências e tecnologias, Ariadne foi ao FISL para, principalmente, compartilhar experiências e conhecer outras mulheres que, assim como ela, se fazem minorias em seus ambientes de trabalho e estão submetidas ao tratamento diferenciado e ao machismo diariamente.
“Quando entrei na faculdade de tecnologia em momento algum tive alguma representatividade, mesmo na academia, como professora. Ainda mais sendo mulher negra. Tive que matar um leão por dia pra continuar nessa sequência”, revelou Desiree Santos, consultora de software na ThoughtWorks Brasil e mestre em Ciência da Computação.
Situação parecida aconteceu com Ariadne que, além de ter sido uma das poucas mulheres na sua turma de Análise de Sistemas, teve sua carreira atrasada pela própria família. “Sempre fui apaixonada por abrir coisas e quis começar com eletrônica e web. Fui barrada pelos meus pais por que ‘isso não é coisa de menina’. Só depois que constituí família que voltei a investir no sonho de trabalhar com o que faço hoje”, disse.
Essa realidade exposta por Desiree e Ariadne é uma constante na vida de mulheres que se envolvem com tecnologia. Em um debate sobre o tema realizado no FISL que contava com Desiree e outras três mulheres, todas foram unânimes em afirmar que eram a única ou as únicas mulheres em suas turmas de faculdade e em seus ambientes profissionais.
“Fiz curso onde a maioria da minha sala era masculina. Sofri preconceito até de professor: ‘Mas você é tão pequenininha”, revelou Christiane Borges, mestre em Engenharia da Computação e professora no Instituto Federal de Goiás e membro do Comitê Gestor do Mulheres na Tecnologia (MNT), organização se fins lucrativos que procura aumentar a participação feminina na área de Tecnologia da Informação por meio de encontros, projetos, eventos e palestras.
Iniciativas como o Mulheres na Tecnologia ou outros inúmeros projetos que visam empoderar e ampliar a presença de mulheres na área não param de surgir pois essa realidade não é apenas uma impressão ou uma coincidência. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) de 2009, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostra que apenas 20% dos profissionais da área de TI são mulheres. No mundo, de acordo com a organização norte-americana The Ada Initiative, elas são apenas 2% nas comunidades de software livre.
Preconceito e objetificação
“Na área de TI, pelo fato de os homens se sentirem mais capazes em suas funções, eles são reconhecidos por isso, enquanto a mulher é identificada justamente por questões pessoais: o sapato que ela usa, o perfume, a maquiagem. São aspectos que jamais são percebidas em um homem. Se um homem vai trabalhar de tênis, se está de terno ou se mudou de perfume, ninguém no setor comenta. A mulher, no entanto, se sente intimidada no ambiente de trabalho por que além das piadas existe o assédio”, explicou Ariadne. Para a analista de sistemas, há uma dificuldade, que nasce do machismo, em separar a figura profissional da figura pessoal da mulher principalmente por conta da presença majoritária de homens na área.
Melissa Devens, que é formada em Comunicação Digital e membro da comunidade de software livre WoMoz Mozilla, vai pela mesma linha. “Na tecnologia, a gente nota que a mulher ou é endeusada pelo homem, ou inferiorizada, do tipo ‘se fez errado, é porque é mulher’. Queremos quebrar esse estereótipo”, avaliou, contando ainda que tanto na faculdade como nas comunidades de software livre chegou a sofrer inúmeros tipos de silenciamento.
Mais grave que a falta de representatividade talvez seja o assédio e objetificação que essas mulheres estão submetidas. Ana Barcellos, também membro da comunidade Joomla e cofundadora do projeto Mulheres Joomla junto com Ariadne, já passou por inúmeros episódios de assédio e objetificação. Em um depoimento que escreveu para o site de seu projeto dá para se ter uma ideia da luta que essas mulheres têm que travar diariamente. Em seu texto, Ana conta que ser nomeada analista de TI na diretoria de tecnologia de uma empresa que trabalhava foi um grande reconhecimento mas que, anos depois, ainda ouve pessoas sugerindo que todo o seu mérito se deve “a um belo par de pernas”.
“O resultado é que sinto que preciso me esforçar mais do que se eu fosse homem, porque já começo tendo de provar que isso não é verdadeiro, que de fato alcancei meu posto pelos meus resultados e não pela aparência. Além disso, estando num ambiente majoritariamente masculino, frequentemente ouço diversas brincadeiras desagradáveis. Não estou falando que não gosto de receber elogios. Claro que eu gosto, mas alguns homens não compreendem o limite entre o elogio e o assédio. Acreditem, já ouvi coisas do tipo: “Ontem fiz o rejunte do meu banheiro duas vezes pensando em você enquanto tomava banho.” WTF?? Isso é elogio para alguém? #not”, escreveu.
É para não passar por isso que Ariadne é obrigada a, todos os dias, tomar algum tipo de precaução. “Todos os dias, para ir trabalhar, tenho que pensar coisas como: será que essa calça está marcando minha bunda? Será que essa blusa está transparente a ponto de mostrar meu sutiã? Será que essa maquiagem vai dar a entender ao meu colega que eu estou dando em cima dele? E são coisas que, imagine, você está se preparando para ir trabalhar. Você está com a cabeça cheia talvez de um projeto, de um problema, ou você teve uma ideia bacana e você tem que se preocupar antes se você está adequada pra não chamar atenção”, disse.
Empoderamento
A engenheira da computação Christiane Borges contou que, no primeiro ano de faculdade, um professor perguntou o que ela queria ser quando “crescesse”. Christiane disse que queria fazer mestrado, doutorado, ir para o meio acadêmico e fazer pesquisa, como o professor, ao que o docente responde: “Vai para o mercado. Mais fácil”, minimizando sua capacidade de atuar na área, já que não fazia essa sugestão aos garotos da turma.
O resultado é que Christiane fez mestrado e hoje atua como professora – ela é a única professora mulher – no Instituto Federal de Goiás, o mesmo em que o professor que a menosprezou dá aulas. “Hoje somos colegas”, brincou. Para que outras meninas não passem pelos mesmos preconceitos que passou, Christiane criou projeto Robótica e Metareciclagem para Meninas, em que ensina alunas do Ensino Médio da Escola Estadual Vasco dos Reis Gonçalves a utilizarem celulares e outros eletrônicos que seriam jogados fora para construir seus projetos e, assim, incentivá-las e encorajá-las e seguir na área de tecnologia quando entrarem na faculdade.
O preconceito que gira em torno de mulheres quando se interessam pela tecnologia é tão grande que, antes mesmo de entrarem na área de fato, quando ainda estão no ensino médio, a insegurança já é evidente. “Muitas vezes as meninas ficam tímidas, com medo. Então, temos que ter um apoio da parte psicológica. Eu tenho alunas que só de eu conversar com elas, já ficam tímidas. ‘Desculpa eu perguntar isso’, dizem. Não tem que pedir desculpa para perguntar. As meninas não têm confiança quando estão na área de tecnologia”, avaliou.
Também com o intuito de ampliar a participação de mulheres na tecnologia e as empoderar diante do machismo e do preconceito, Melissa Davens começou a participar da comunidade de software livre WoMoz, que existe desde 2009. A ideia da comunidade, de acordo com Melissa, é a de promover o engajamento de mulheres e outras minorias vulneráveis no mundo da tecnologia por meio de oficinas nas quais as participantes que nunca mexeram em um PC vão aprender a ligar a máquina, acessar e navegar na internet e descobrir como uma página da web é construída.
“Aprendi a ter respeito pelas minorias. A gente não foca só em mulheres, foca em transgênero, pessoas de outras religiões… Essa diversidade faz com que as pessoas se unam e prol de um causa e assim elas deixam de ser minorias. O WoMoz quer juntar as pessoas, unir as mulheres, para que elas tenham sempre mais lugares onde possam falar. A gente tinha duas escolhas: ou ficava se vitimizando ou fazia alguma coisa para deixar de ser vítima e ser protagonista da comunidade”, afirmou.
Ariadne também está trabalhando em um projeto de empoderamento feminino na área de tecnologia, tendo criado, em março deste ano, o Mulheres Joomla. A plataforma – a mesma em que foi publicada o depoimento de Ana, cofundadora do projeto – foi desenvolvida através das ferramentas de software livre e visa reunir depoimentos de mulheres que trabalham na comunidade sobre preconceito, assédio e machismo. A ideia, de acordo com Ariadne, é fazer com que as mulheres se reconheçam umas nas outras para que, assim, possam se fortalecer e lutar pelos seus direitos e espaço na área.
“A primeira coisa que fizemos foi fazer um site informativo com casos reais, mulheres reais, e mulheres de dentro da comunidade Joomla. Eu e a Ana entendemos que uma mulher só se sente bem quando ela encontra outras para poder se inspirar. Aí se dá o empoderamento. O diálogo é estabelecido e essa mulher reflete e passa a ter um comportamento diferente consigo mesma com relação a se autodepreciar, não confiar em suas próprias capacidades e seu poder de ser atriz principal da própria vida”, contou, revelando ainda que a ideia é abrir o espaço para mulheres de outras áreas e, futuramente, estabelecer parcerias com outros movimentos. “Acredito que até ano que vem tenhamos algo mais consolidado. Quem sabe uma rede social”, adiantou. Tudo em software livre.
E o Software Livre. Onde entra nisso?
Pelo fato de o software livre carregar em sua essência o conceito de coletividade e colaboração, as comunidades são fundamentais para reverter esse cenário de falta de equidade entre homens e mulheres na área da tecnologia. Enquanto o preconceito e o machismo se estabelecem nas organizações de TI e muitas vezes as vítimas são silenciadas, nas comunidades de software livre elas têm a oportunidade de criar seus próprios projetos, plataformas, participar de eventos, conhecer outras pessoas e compartilhar experiências.
“Vejo no software livre um ponto fundamental para que essa luta venha a acontecer. Quando se fala em ‘livre’, é dar a oportunidade para todos, independente de raça ou gênero, em uma lógica de colaboração. No meu caso foi exatamente assim: eu vim conhecendo o software por meio de eventos abertos, onde não era necessário conhecimento prévio. Foi um ambiente que favoreceu e tem um papel relevante”, disse Desireé, da ThoughtWorks Brasil.
Nesse sentido, mais que um modelo de desenvolvimento de programas, o software livre se constitui como um movimento social e político, permeado pelo conceito de coletividade e liberdade, que muda de forma prática a vida das pessoas e não se limita ao âmbito tecnológico.
“Software livre é inclusão. As pessoas deveriam seguir mais essas diretrizes, isso ia ajudar bastante no crescimento e desenvolvimento de comunidades”, disse Melissa, do WoMoz. Christiane, do Mulheres na Tecnologia, por sua vez, conta que se não fosse o software livre jamais teria essa consciência da questão de gênero no meio tecnológico. “Desde 2005 estou próxima do mundo software livre. Foi nas comunidades onde encontrei maior aceitação. Já participei de eventos de segurança onde cheguei a ouvir coisas do tipo ‘o que você está fazendo aqui’. Desde o início a comunidade Software Livre foi onde me encontrei e onde consegui conhecer outras meninas que trabalham e que tem os mesmos problemas que eu. A comunidade é a união que muda a realidade.”
Por Ivan Longo
“Você precisa de ajuda?”; “O que quer fazer, exatamente?”; “Nossa, tão bonita e está aqui”; “Chegou a beleza do setor!’. Aparentemente inocentes, essas frases são apenas alguns exemplos de como as diferenças de gênero se materializam na área da tecnologia, um ambiente historicamente dominado por homens.
Essa predominância masculina em empresas de desenvolvimento de software, instituições de ensino e projetos tecnológicos não se dá por acaso. Ocorre por que as ciências exatas, em uma sociedade machista, são tidas como uma área para homens, e mulheres acabam ocupando funções consideradas secundárias ou associadas como marketing, design ou relações públicas dessas empresas.
“Não é um problema da área de Tecnologia da Informação, mas da sociedade como um todo. Desde pequenos os meninos são incentivados a brincar de carrinho, ganham caixa de ferramentas, desmontam as coisas com os pais, enquanto as meninas brincam de boneca. Isso acaba se intensificando no ambiente profissional”, explicou Ariadne Pinheiro, analista de sistemas que se classifica como uma “apaixonada por desmontar coisas”.
Ariadne faz parte do comunidade Joomla no Brasil, organização de software livre – sem fins lucrativos – que desenvolve ferramentas de gerenciamento de conteúdo como sites e plataformas, com códigos, templates e soluções abertas. Ela esteve presente no 16º Fórum Internacional Software Livre (FISL) realizado em julho em Porto Alegre e foi uma das mulheres que compuseram os 25% de participação feminina no evento.
Além de aprender, conhecer as novas tendências e tecnologias, Ariadne foi ao FISL para, principalmente, compartilhar experiências e conhecer outras mulheres que, assim como ela, se fazem minorias em seus ambientes de trabalho e estão submetidas ao tratamento diferenciado e ao machismo diariamente.
“Quando entrei na faculdade de tecnologia em momento algum tive alguma representatividade, mesmo na academia, como professora. Ainda mais sendo mulher negra. Tive que matar um leão por dia pra continuar nessa sequência”, revelou Desiree Santos, consultora de software na ThoughtWorks Brasil e mestre em Ciência da Computação.
Situação parecida aconteceu com Ariadne que, além de ter sido uma das poucas mulheres na sua turma de Análise de Sistemas, teve sua carreira atrasada pela própria família. “Sempre fui apaixonada por abrir coisas e quis começar com eletrônica e web. Fui barrada pelos meus pais por que ‘isso não é coisa de menina’. Só depois que constituí família que voltei a investir no sonho de trabalhar com o que faço hoje”, disse.
Essa realidade exposta por Desiree e Ariadne é uma constante na vida de mulheres que se envolvem com tecnologia. Em um debate sobre o tema realizado no FISL que contava com Desiree e outras três mulheres, todas foram unânimes em afirmar que eram a única ou as únicas mulheres em suas turmas de faculdade e em seus ambientes profissionais.
“Fiz curso onde a maioria da minha sala era masculina. Sofri preconceito até de professor: ‘Mas você é tão pequenininha”, revelou Christiane Borges, mestre em Engenharia da Computação e professora no Instituto Federal de Goiás e membro do Comitê Gestor do Mulheres na Tecnologia (MNT), organização se fins lucrativos que procura aumentar a participação feminina na área de Tecnologia da Informação por meio de encontros, projetos, eventos e palestras.
Iniciativas como o Mulheres na Tecnologia ou outros inúmeros projetos que visam empoderar e ampliar a presença de mulheres na área não param de surgir pois essa realidade não é apenas uma impressão ou uma coincidência. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) de 2009, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostra que apenas 20% dos profissionais da área de TI são mulheres. No mundo, de acordo com a organização norte-americana The Ada Initiative, elas são apenas 2% nas comunidades de software livre.
Preconceito e objetificação
“Na área de TI, pelo fato de os homens se sentirem mais capazes em suas funções, eles são reconhecidos por isso, enquanto a mulher é identificada justamente por questões pessoais: o sapato que ela usa, o perfume, a maquiagem. São aspectos que jamais são percebidas em um homem. Se um homem vai trabalhar de tênis, se está de terno ou se mudou de perfume, ninguém no setor comenta. A mulher, no entanto, se sente intimidada no ambiente de trabalho por que além das piadas existe o assédio”, explicou Ariadne. Para a analista de sistemas, há uma dificuldade, que nasce do machismo, em separar a figura profissional da figura pessoal da mulher principalmente por conta da presença majoritária de homens na área.
Melissa Devens, que é formada em Comunicação Digital e membro da comunidade de software livre WoMoz Mozilla, vai pela mesma linha. “Na tecnologia, a gente nota que a mulher ou é endeusada pelo homem, ou inferiorizada, do tipo ‘se fez errado, é porque é mulher’. Queremos quebrar esse estereótipo”, avaliou, contando ainda que tanto na faculdade como nas comunidades de software livre chegou a sofrer inúmeros tipos de silenciamento.
Mais grave que a falta de representatividade talvez seja o assédio e objetificação que essas mulheres estão submetidas. Ana Barcellos, também membro da comunidade Joomla e cofundadora do projeto Mulheres Joomla junto com Ariadne, já passou por inúmeros episódios de assédio e objetificação. Em um depoimento que escreveu para o site de seu projeto dá para se ter uma ideia da luta que essas mulheres têm que travar diariamente. Em seu texto, Ana conta que ser nomeada analista de TI na diretoria de tecnologia de uma empresa que trabalhava foi um grande reconhecimento mas que, anos depois, ainda ouve pessoas sugerindo que todo o seu mérito se deve “a um belo par de pernas”.
“O resultado é que sinto que preciso me esforçar mais do que se eu fosse homem, porque já começo tendo de provar que isso não é verdadeiro, que de fato alcancei meu posto pelos meus resultados e não pela aparência. Além disso, estando num ambiente majoritariamente masculino, frequentemente ouço diversas brincadeiras desagradáveis. Não estou falando que não gosto de receber elogios. Claro que eu gosto, mas alguns homens não compreendem o limite entre o elogio e o assédio. Acreditem, já ouvi coisas do tipo: “Ontem fiz o rejunte do meu banheiro duas vezes pensando em você enquanto tomava banho.” WTF?? Isso é elogio para alguém? #not”, escreveu.
É para não passar por isso que Ariadne é obrigada a, todos os dias, tomar algum tipo de precaução. “Todos os dias, para ir trabalhar, tenho que pensar coisas como: será que essa calça está marcando minha bunda? Será que essa blusa está transparente a ponto de mostrar meu sutiã? Será que essa maquiagem vai dar a entender ao meu colega que eu estou dando em cima dele? E são coisas que, imagine, você está se preparando para ir trabalhar. Você está com a cabeça cheia talvez de um projeto, de um problema, ou você teve uma ideia bacana e você tem que se preocupar antes se você está adequada pra não chamar atenção”, disse.
Empoderamento
A engenheira da computação Christiane Borges contou que, no primeiro ano de faculdade, um professor perguntou o que ela queria ser quando “crescesse”. Christiane disse que queria fazer mestrado, doutorado, ir para o meio acadêmico e fazer pesquisa, como o professor, ao que o docente responde: “Vai para o mercado. Mais fácil”, minimizando sua capacidade de atuar na área, já que não fazia essa sugestão aos garotos da turma.
O resultado é que Christiane fez mestrado e hoje atua como professora – ela é a única professora mulher – no Instituto Federal de Goiás, o mesmo em que o professor que a menosprezou dá aulas. “Hoje somos colegas”, brincou. Para que outras meninas não passem pelos mesmos preconceitos que passou, Christiane criou projeto Robótica e Metareciclagem para Meninas, em que ensina alunas do Ensino Médio da Escola Estadual Vasco dos Reis Gonçalves a utilizarem celulares e outros eletrônicos que seriam jogados fora para construir seus projetos e, assim, incentivá-las e encorajá-las e seguir na área de tecnologia quando entrarem na faculdade.
O preconceito que gira em torno de mulheres quando se interessam pela tecnologia é tão grande que, antes mesmo de entrarem na área de fato, quando ainda estão no ensino médio, a insegurança já é evidente. “Muitas vezes as meninas ficam tímidas, com medo. Então, temos que ter um apoio da parte psicológica. Eu tenho alunas que só de eu conversar com elas, já ficam tímidas. ‘Desculpa eu perguntar isso’, dizem. Não tem que pedir desculpa para perguntar. As meninas não têm confiança quando estão na área de tecnologia”, avaliou.
Também com o intuito de ampliar a participação de mulheres na tecnologia e as empoderar diante do machismo e do preconceito, Melissa Davens começou a participar da comunidade de software livre WoMoz, que existe desde 2009. A ideia da comunidade, de acordo com Melissa, é a de promover o engajamento de mulheres e outras minorias vulneráveis no mundo da tecnologia por meio de oficinas nas quais as participantes que nunca mexeram em um PC vão aprender a ligar a máquina, acessar e navegar na internet e descobrir como uma página da web é construída.
“Aprendi a ter respeito pelas minorias. A gente não foca só em mulheres, foca em transgênero, pessoas de outras religiões… Essa diversidade faz com que as pessoas se unam e prol de um causa e assim elas deixam de ser minorias. O WoMoz quer juntar as pessoas, unir as mulheres, para que elas tenham sempre mais lugares onde possam falar. A gente tinha duas escolhas: ou ficava se vitimizando ou fazia alguma coisa para deixar de ser vítima e ser protagonista da comunidade”, afirmou.
Ariadne também está trabalhando em um projeto de empoderamento feminino na área de tecnologia, tendo criado, em março deste ano, o Mulheres Joomla. A plataforma – a mesma em que foi publicada o depoimento de Ana, cofundadora do projeto – foi desenvolvida através das ferramentas de software livre e visa reunir depoimentos de mulheres que trabalham na comunidade sobre preconceito, assédio e machismo. A ideia, de acordo com Ariadne, é fazer com que as mulheres se reconheçam umas nas outras para que, assim, possam se fortalecer e lutar pelos seus direitos e espaço na área.
“A primeira coisa que fizemos foi fazer um site informativo com casos reais, mulheres reais, e mulheres de dentro da comunidade Joomla. Eu e a Ana entendemos que uma mulher só se sente bem quando ela encontra outras para poder se inspirar. Aí se dá o empoderamento. O diálogo é estabelecido e essa mulher reflete e passa a ter um comportamento diferente consigo mesma com relação a se autodepreciar, não confiar em suas próprias capacidades e seu poder de ser atriz principal da própria vida”, contou, revelando ainda que a ideia é abrir o espaço para mulheres de outras áreas e, futuramente, estabelecer parcerias com outros movimentos. “Acredito que até ano que vem tenhamos algo mais consolidado. Quem sabe uma rede social”, adiantou. Tudo em software livre.
E o Software Livre. Onde entra nisso?
Pelo fato de o software livre carregar em sua essência o conceito de coletividade e colaboração, as comunidades são fundamentais para reverter esse cenário de falta de equidade entre homens e mulheres na área da tecnologia. Enquanto o preconceito e o machismo se estabelecem nas organizações de TI e muitas vezes as vítimas são silenciadas, nas comunidades de software livre elas têm a oportunidade de criar seus próprios projetos, plataformas, participar de eventos, conhecer outras pessoas e compartilhar experiências.
“Vejo no software livre um ponto fundamental para que essa luta venha a acontecer. Quando se fala em ‘livre’, é dar a oportunidade para todos, independente de raça ou gênero, em uma lógica de colaboração. No meu caso foi exatamente assim: eu vim conhecendo o software por meio de eventos abertos, onde não era necessário conhecimento prévio. Foi um ambiente que favoreceu e tem um papel relevante”, disse Desireé, da ThoughtWorks Brasil.
Nesse sentido, mais que um modelo de desenvolvimento de programas, o software livre se constitui como um movimento social e político, permeado pelo conceito de coletividade e liberdade, que muda de forma prática a vida das pessoas e não se limita ao âmbito tecnológico.
“Software livre é inclusão. As pessoas deveriam seguir mais essas diretrizes, isso ia ajudar bastante no crescimento e desenvolvimento de comunidades”, disse Melissa, do WoMoz. Christiane, do Mulheres na Tecnologia, por sua vez, conta que se não fosse o software livre jamais teria essa consciência da questão de gênero no meio tecnológico. “Desde 2005 estou próxima do mundo software livre. Foi nas comunidades onde encontrei maior aceitação. Já participei de eventos de segurança onde cheguei a ouvir coisas do tipo ‘o que você está fazendo aqui’. Desde o início a comunidade Software Livre foi onde me encontrei e onde consegui conhecer outras meninas que trabalham e que tem os mesmos problemas que eu. A comunidade é a união que muda a realidade.”
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