por
Ayaan Hirsi Ali - 28.01.2016 “É quase um milagre que Ayaan Hirsi Ali, uma das heroínas de nosso tempo, ainda esteja viva. Os fanáticos islâmicos quiseram acabar com ela e não conseguiram, e não é impossível que continuem tentando, pois se trata de um dos mais articulados, influentes e determinados adversários que eles têm no mundo", relata Mario Vargas Llosa em seu artigo O poder da blasfêmia, sobre a mais recente obra de Hirsi Ali, Herege (Companhia das Letras, 2015).
O livro é um apelo por uma reforma do islamismo como único modo de acabar com o terrorismo, as guerras sectárias e a repressão contra mulheres e minorias. Em Herege, Hirsi Ali identifica as cinco mudanças que precisam ser feitas na religião islâmica para que muçulmanos abandonem os dogmas que os prendem ao século VII.
Em seu artigo, Mario Vargas Llosa as explica brevemente: “1) a crença de que o Corão expressa a imutável palavra de Deus e a infalibilidade de Maomé, seu porta-voz; 2) a prioridade que o islã concede à outra vida sobre a do aqui e agora; 3) a convicção de que a sharia constitui um sistema legal que deve governar a vida espiritual e material da sociedade; 4) a obrigação do muçulmano comum de exigir o justo e proibir o que considera errado; 5) a ideia da jihad ou guerra santa."
Em Herege, Ayaan Hirsi Ali pede atenção do Ocidente para a recente e crescente redução da liberdade de mulheres e minorias nos países islâmicos e lastima que, no mundo, as reações a um livro sagrado criticado tenham mais peso do que milhares de pessoas mortas pelo Estado Islâmico. Confira abaixo um excerto da obra:
A primeira vez que me levantei para falar em público foi logo após o Onze de Setembro de 2001. Foi num fórum público, uma “casa de debates", que é uma instituição relativamente comum na Holanda. Eu estava trabalhando num think tank social-democrata pequeno, mas respeitado, e o meu chefe sugeriu que eu fosse.
O debate era apresentado por um jornal holandês, uma publicação que fora originalmente religiosa (protestante), mas agora era bem secular, e o tema era “Quem precisa de um Voltaire, o Ocidente ou o Islã?". O auditório estava lotado. Quem não conseguia encontrar lugar se encostava ao longo das paredes. E, em muitos aspectos, foi uma reunião interessante e incomum por haver tantos participantes muçulmanos na plateia. Normalmente eram quase todos brancos nesses locais, porque os temas em debate eram coisas como “Quanto de controle podemos ceder à União Europeia?" ou “Por que devemos trocar o florim pelo euro?". Nessa noite, porém, os membros habituais da elite de Amsterdam estavam ombro a ombro com muçulmanos da Turquia, do Marrocos e de outros países, quase todos imigrantes ou filhos de imigrantes na Holanda.
Havia seis palestrantes nessa noite, e cinco deles disseram, em essência, que era o Ocidente que precisava de um Voltaire, ou seja, que o Ocidente era o lugar mais necessitado de reforma. Seu argumento foi que o Ocidente tinha um ponto cego, com uma história longa e perversa de exploração e imperialismo, que não tinha ouvidos para o que se passava no resto do mundo, e que precisava de outro Voltaire para explicar tudo isso.
Eu estava sentada no meio desse mar de rostos, brancos, mulatos e pretos, e só ouvindo, cada vez mais consciente de que discordava do que foi dito. Finalmente, o sexto participante falou, um iraniano, refugiado, advogado. “Bem", disse ele, “olhe para as pessoas nesta sala. O Ocidente não tem um Voltaire, mas milhares, se não milhões, de Voltaires. O Ocidente está acostumado com críticas, acostumado com autocrítica. Todos os pecados do Ocidente estão expostos para todos verem."
Em seguida, ele disse: “É o islamismo que precisa de um Voltaire". E discorreu sobre uma lista com todas as coisas que são erradas ou questionáveis no islã — pontos que ressoaram em mim. E por isso ele foi vaiado, foi vaiado até se calar. (Ironicamente, dez anos depois, Irshad Manji, um resoluto defensor da reforma islâmica, falou nesse mesmo salão. Dessa vez, o público tinha mudado completamente. Estava lotado, não de observadores curiosos, mas de fundamentalistas islâmicos linha-dura, e nessa noite o público estava tão combativo que Irshad teve de ser retirado dali às pressas pelos seguranças.)
Depois que o advogado iraniano falou, houve um intervalo e, então, a plateia teve a oportunidade de fazer perguntas. Acenei com a mão e alguém com o microfone viu meu rosto negro e, provavelmente, pensou, “pela diversidade" — os organizadores brancos de tais eventos estavam de fato muito interessados em ouvir o que se passava na cabeça, nas famílias e nas comunidades dos imigrantes. Entregou-me o microfone. Levantei-me e concordei com o iraniano. Eu disse: “Vejam vocês. Há seis pessoas aí, vocês convidaram seis palestrantes, e um deles é o Voltaire do islã. Vocês têm cinco Voltaires, então permitam que nós, muçulmanos, tenhamos um, por favor". Isso levou um editor de jornal a me pedir que escrevesse um artigo, a que deu o título “Por favor, permitam-nos um Voltaire".
Nos meses e anos que se seguiram, li cada vez mais. Li opiniões ocidentais acerca do islã e da cultura muçulmana. Li mais pensadores liberais do Ocidente. E li sobre os reformadores muçulmanos do passado. A minha conclusão é que o islã ainda precisa de um Voltaire. Mas concluí que também há extrema necessidade de um John Locke. Afinal, foi Locke que nos deu a noção de um “direito natural" fundamental “à vida, à liberdade e à propriedade". Menos conhecida, porém, é a forte defesa de Locke da tolerância religiosa. E a tolerância religiosa, no entanto, por mais que tenha demorado a ser posta em prática, é uma das maiores conquistas do mundo ocidental.
Locke defendia que as crenças religiosas são, nas palavras do estudioso Adam Wolfson, “questões de opinião, opiniões a que todos igualmente temos direito, em vez de quantidade de verdades ou conhecimentos". Na formulação de Locke, a proteção contra a perseguição é uma das mais altas responsabilidades de qualquer governo ou governante. Locke também argumentava que, quando há coação e perseguição para mudar de opinião, isso só funciona a um altíssimo custo humano, produzindo em seu rastro tanto crueldade quanto hipocrisia.
Para Locke, ninguém deve “desejar impor" a sua visão da salvação a outrem. Em vez disso, em sua visão de sociedade tolerante, cada indivíduo deve ser livre para seguir seu próprio caminho na religião e respeitar o direito dos outros de seguirem seus próprios caminhos: “Ninguém, nem mesmo Estados", Locke escreveu, “tem o direito justo de invadir os direitos civis e os bens materiais de outrem a pretexto de religião".
O que quase sempre se esquece é que Locke restringia essa liberdade de religião a denominações protestantes. Ele não incluía a Igreja Católica Romana porque “todos aqueles que nela entram, ipso facto entregam-se à proteção e ao serviço de outro príncipe". Se Locke estivesse vivo hoje, desconfio que argumentaria de maneira semelhante acerca do islã. Enquanto houver alguns muçulmanos acreditando que os ensinamentos de Maomé em Medina destroem sua lealdade para com os países de que são cidadãos, vai haver uma legítima suspeita de que a tolerância ao islã põe em risco a segurança desses países. A questão central para a civilização ocidental continua a ser a mesma da época de Locke: o que devemos não tolerar?
Vamos começar pela opressão de metade da humanidade.
DIREITOS EM RETIRADA
Hoje, mais de duzentos anos depois de Voltaire e trezentos depois de John Locke, os direitos das mulheres estão recuando em todo o mundo muçulmano. Pense, para fins de simples ilustração, o que se permite que as mulheres muçulmanas vistam. Não é o mais importante direito humano, admito. Mas é uma liberdade com que a maioria das mulheres se preocupa.
Veja fotografias de qualquer uma das cidades muçulmanas do mundo na década de 1970: Bagdá. Cairo. Damasco. Cabul. Mogadíscio. Teerã. Veremos que muito poucas mulheres naqueles dias estavam cobertas. Em vez disso, nas ruas, em edifícios de escritórios, em mercados, cinemas, restaurantes e residências, a maioria das mulheres se vestia de maneira bem semelhante àquelas na Europa e nos Estados Unidos. Elas usavam saia acima do joelho. Adotavam as modas ocidentais. Usavam o cabelo preso e visível.
Hoje, ao contrário, a simples foto de uma mulher andando pelas ruas de Cabul com uma saia à altura do joelho se torna um acontecimento viral na internet e provoca condenação generalizada como “despudorada" e “quase nua", e o governo é criticado por estar “dormindo". Quando eu estava na escola primária em Nairóbi, as que cobriam a cabeça eram exceção — menos de metade das meninas. Há alguns anos, pesquisei no Google a minha antiga escola primária. Nas fotos postadas, quase todas as meninas estavam cobertas.
Não se trata só de como nos vestimos. Se você é mulher e vive na Arábia Saudita, quer dirigir, quer sair de casa sem um guardião. Pode ter dinheiro, mas não pode fazer nada além de ficar em casa ou fazer compras sob supervisão masculina. No Egito, estamos lutando contra uma onda cada vez maior de assédio sexual — 99% das mulheres relatam terem sido vítimas de assédio sexual e ocorrem até oitenta agressões sexuais em um único dia.
Especialmente preocupante é o modo como o status das mulheres como cidadãs de segunda classe está se solidificando na legislação. No Iraque, está sendo proposta uma lei que reduz para nove anos a idade com que as meninas podem ser obrigadas a se casar. Essa mesma lei daria ao marido o direito de negar permissão à mulher para sair de casa. Na Tunísia, as preocupações se concentram na imposição da sharia. No Afeganistão e no Paquistão, por outro lado, precisamos temer o assassinato a tiros pelo crime de frequentar uma escola. E para as meninas de todo o norte da África, e além, permanece a ameaça de mutilação genital feminina, costume que certamente antecede o islã, mas que agora está quase totalmente confinado às comunidades muçulmanas. A Unicef estima que mais de 125 milhões de mulheres e meninas foram mutiladas nos países africanos e árabes, muitos deles de maioria muçulmana. Como se torna gradualmente claro, esse costume também é comum em comunidades de imigrantes na Europa e na América do Norte.
No mundo islâmico, muitos direitos básicos são restritos, e não só os direitos das mulheres. A homossexualidade não é tolerada. Outras religiões não são toleradas. Principalmente a liberdade de expressão em assuntos relativos ao islã não é tolerada. Como sei muito bem, livres-pensadores que queiram questionar obras como o Alcorão ou o hadith correm risco de morte.
O islã sofreu um cisma; nunca teve reforma. As discussões iniciais no islã produziram um sectarismo feroz que muitas vezes envolvia derramamento de sangue, mas quase sempre no tocante a questões técnicas. A maior foi sobre quem deve suceder o Profeta como líder do ummah: os sunitas queriam selecionar um califa (literalmente, um suplente) com base no mérito, enquanto os xiitas insistiam em um imame que era parente do Profeta. Uma divisão menor foi provocada pela questão de saber se Alá falou ao ditar o Alcorão. (Uma escola do pensamento islâmico, Mu'tazilite, argumentava que Alá não tem laringe humana e que o Alcorão não é, portanto, “discurso" de Alá.)
A ideia de “reforma" no islã tem, em grande parte, se concentrado na resolução de tais questões restritas. Na verdade, o termo “ijtihad", a coisa mais próxima de “reforma" em árabe, significa tentar definir a vontade de Deus em algum assunto novo, tal como: o muçulmano deve rezar dentro de um avião (nova invenção tecnológica) e, em caso afirmativo, como ele pode ter certeza de estar de frente para Meca? Mas a ideia ampla de “reforma", no sentido de questionar fundamentalmente os dogmas centrais da doutrina islâmica, é notável por sua ausência. O islã tem até seu próprio termo pejorativo para denominar encrenqueiros teológicos: “aqueles que se entregam a inovações e seguem suas paixões" (em árabe ahl al-bida, wa-l-ahwa').
TOLERAR A INTOLERÂNCIA
A maioria dos norte-americanos e também a maioria dos europeus preferem muito mais ignorar o conflito fundamental entre o islã e sua própria visão de mundo. Isso porque, em parte, eles geralmente supõem que “religião", qualquer que seja sua definição, é uma força do bem e que qualquer conjunto de crenças religiosas deve ser considerado aceitável em uma sociedade tolerante. Concordo com isso. Em muitos aspectos, apesar de seus elevados objetivos e ideais, os Estados Unidos acham difícil tornar realidade a tolerância religiosa e racial.
Mas isso não significa que devemos fechar os olhos para as possíveis consequências de nos adaptarmos a crenças que sejam abertamente hostis a leis, tradições e valores ocidentais. Pois não é simplesmente uma religião com que temos de lidar.
É uma religião política, e muitos de seus princípios fundamentais são irreconciliavelmente hostis ao nosso modo de vida. Precisamos insistir que não somos nós, no Ocidente, que devemos nos adaptar às sensibilidades muçulmanas; são os muçulmanos que devem se adaptar aos ideais liberais ocidentais.
Infelizmente, nem todos entendem isso.
No segundo semestre de 2014, Bill Maher, apresentador do programa Real Time with Bill Maher, na HBO, apresentou um debate sobre o islã que contou com o autor de best-sellers Sam Harris, o ator Ben Affleck e o colunista do New York Times Nicholas Kristof. Harris e Maher levantaram a questão de os liberais ocidentais estarem ou não abandonando seus princípios por não combater o islã com relação a seu tratamento em relação às mulheres, a promoção da jihad e punições baseadas na sharia com apedrejamento e morte para os apóstatas. Para Affleck, isso cheirava a islamofobia e ele respondeu com uma explosão de indignação moralista. Sob aplausos da plateia, ele acusava com veemência Harris e Maher de serem “nojentos" e “racistas" e dizia coisas não distantes de “você é um judeu safado". Alinhando-se com Affleck, Kristof intervinha dizendo que muçulmanos corajosos estavam arriscando a vida para promover os direitos humanos no mundo islâmico.
Depois do programa, durante uma discussão no camarim, Sam Harris perguntou a Ben Affleck e a Nick Kristof: “O que vocês acham que aconteceria se tivéssemos queimado um exemplar do Alcorão no programa de hoje?". Sam, em seguida, respondeu à sua própria pergunta: “Haveria rebeliões em dezenas de países. Embaixadas cairiam. Em resposta por maltratarmos um livro, milhões de muçulmanos iriam às ruas, e nós passaríamos o resto da vida nos protegendo contra ameaças plausíveis de assassinato. Mas quando o EI crucifica pessoas, enterra crianças vivas, estupra e tortura mulheres aos milhares, tudo em nome do islã a resposta são algumas pequenas manifestações na Europa e uma hashtag (#NotInOurName [EmNossoNomeNão])".
Pouco depois da transmissão do programa, uma paquistanesa-canadense muçulmana (e ativista dos direitos dos homossexuais) chamada Einah escreveu uma carta aberta a Ben Affleck que resumiu com precisão o que eu penso:
Por que os muçulmanos estão sendo “preservados" numa cápsula do tempo de séculos atrás? Por que não há problema em continuarmos a viver em um mundo onde as nossas mulheres são comparadas a mercadorias à espera de serem consumidas? Por que é bom para as mulheres do resto do mundo lutar por liberdade e igualdade, enquanto nos mandam cobrir nosso corpo vergonhoso? Não veem que estamos sendo impedidas de ingressar nesse clube de elite conhecido como século XXI?
Liberais nobres como você sempre defendem os muçulmanos malrepresentados e combatem os islamofóbicos, o que é ótimo, mas quem fica a meu lado pelos que se sentem oprimidos pela religião? Toda vez que erguemos a voz, uma de nós é assassinada ou ameaçada.
[...] O que você fez ao gritar “racista!" foi encerrar uma conversa que muitos de nós aguardávamos ansiosas. Você ajudou aqueles que querem negar que há problemas a rejeitá-los.
O que há de tão errado em querer entrar no século atual? Não deve haver vergonha nenhuma. Não há como negar que a violência, a misoginia e a homofobia existem em todos os textos religiosos, mas o islã é a única religião a que se obedece tão literalmente, até hoje.
Na sua cultura você tem o luxo de chamar esses literalistas de “malucos" […]. Na minha cultura, tais valores são defendidos por mais pessoas do que se imagina. Muitos vão tentar negá-lo, mas, por favor, me ouça quando digo que esses não são valores marginais. Está evidente na ausência de muçulmanos dispostos a se posicionar contra a arcaica lei sharia. A punição por blasfêmia e apostasia etc. é instrumento de repressão. Por que não tratam desse assunto, mesmo as pessoas pacíficas, que não são fanáticas, que só querem comer uns sanduíches e rezar cinco vezes por dia? Onde estão os manifestantes muçulmanos contra as leis de blasfêmia/apostasia? Onde estão os muçulmanos que assumem uma postura contra a interpretação rígida da sharia?