Há algum tempo a forma que Inês Brasil é exposta me incomoda bastante, há elementos em como acontece esse processo que pra mim remetem a forma que Sarah Baartman foi exposta e explorada pela Europa. Essa semana circulou pelas redes sociais um texto criticando aqueles que são fãs da artista (não lembro o nome do autor do texto e nem encontrei o link quem tiver me passe que linko aqui), há diversas questões no texto que pra mim são dispensáveis, porém ele bateu numa tecla acendendo uma luz vermelha, na mesma semana a Djamila postou este link aqui sobre a polêmica de Beyoncé interpretar o papel de Sarah Baartman no cinema.
As duas coisas me acenderam uma luz vermelha sobre como Inês Brasil acaba simbolizando o processo de hipersexualização da mulher negra brasileira de uma forma similar ao que ocorreu com Baartman no século XIX. Uma representação contundente de como nós mulheres negras e nossos corpos são expropriados como qualquer outro objeto na sociedade capitalista, racista e patriarcal em que vivemos. Ainda somos párias da sociedade contemporânea.
Sarah Baartman era uma mulher do povo khoi, oriundo do que hoje é a África do Sul. Baartman era empregada doméstica em uma fazenda holandesa na Cidade do Cabo e foi levada pelo irmão de seu patrão para Londres com o intuito de exibi-la como uma aberração selvagem por toda Europa por conta de seu corpo “inusitado”. Os responsáveis pela exibição de Sarah deixavam os vistantes tocarem suas nádegas se pagassem, durante toda sua vida esta mulher foi vítima da curiosidade e expropriação por parte dos europeus. Durante processo corrido na Holanda, Baartman apresentou em depoimento que não se sentia vítima deste processo de exibição e que sabia de seu direito de ter metade dos lucros das exibições. Algum tempo depois Baartman foi vendida para um francês que continuou o processo de exploração da exibição de seu corpo “bizarro” e aprofundando a desumanização desta mulher.
As narrativas formuladas a partir do estudo de  Sarah  contribuíram  para   a construção da representação das pessoas negras como indivíduos inferiores, irracionais, animalescos e hipersexualizados, características que ainda permanecem no imaginário ocidental. Mesmo depois de sua morte, o corpo de Sarah continuou sendo exposto em cursos e palestras,e  não por acaso, sua genitália – que ela nunca deixou ser vista em vida – era disposta ao lado dos cérebros dos “grande homens franceses”, como Descartes, no Museu do Homem em Paris, numa clara demonstração do contraponto entre o racional (masculino e branco) e o sexual (feminino e negro). (Sarah Baartman e a hipersexualização da mulher negra)
Inês Brasil me lembra muito Sarah Baartman, não só ela, mas principalmente ela. Inês Brasil me lembra também Ourika e outras mulheres negras exploradas, renegadas e expropriadas da história colonizadora da Europa. Ourika foi vendida a uma Madame francesa que a criou dentro dos costumes europeus e brancos. Ourika representa não apenas a exibição do corpo da mulher negra ao prazer e curiosidade dos brancos, como também o sentimento mais basilar sobre a solidão da mulher negra. Hoje em nosso país esse estereótipo é bem representado por Inês Brasil, as pessoas acham normal usufruir do seu corpo como bem acharem melhor, reafirmando assim a hipersexualização e objetificação construídas historicamente em torno das mulheres negras (atualmente é preciso pontuar que esse processo também atinge as mulheres trans).
A representação da mulher negra junto a sociedade continua praticamente o mesmo, óbvio que com o passar do tempo houve um burilamento deste processo de objetificação e exotificação do nosso corpo. Baartman acreditava ser beneficiada pela forma de exploração a qual era submetida, teria parte nas arrecadações do apalpar sua bunda em exposição e, apenas, não deixava ser exposto sua genitália. Em vida ela nunca deixou essa parte de seu corpo ser exposta, mas ao morrer nem esse desejo foi respeitado e Sarah por muito tempo ficou exposta em Paris até ter seu corpo remetido para África do Sul a pedido de Mandela no começo do século XXI.

venusnoireSim, quando vejo as fotos dos fãs de Inês Brasil com ela eu lembro da história de Baartman, ela ali recebendo aqueles que estavam para vê-la, não a reconhecendo como um ser-humano, mas sim uma um objeto exótico de peito e bunda avantajados e que estão a disposição dos outros para serem tocados, apalpados, lambidos apenas para gerar prazer aos outros. Um dos maiores exemplos de como ela é explorada de forma a reafirmar sua condição de diferente das pessoas brancas são as imagens de uma festa de aniversário do estilista Sérgio K em 2014 na qual Inês Brasil era a única mulher dentro de uma jaula, uma das apresentações que mais lembravam o quanto as mulheres negras eram exploradas e expostas como bestialidades na Europa.

Ao fazer uma breve pesquisa sobre notícias na imprensa sobre Inês Brasil o que vemos é o ressaltar do exótico, do bizarro, de uma pessoa que deve ser desumanizada e que não deve ser levada a sério por conta do seu corpo. Só lembrarmos do episódio da sextapeem que um fã vazou vídeo de Inês Brasil transando sem  menor respeito a intimidade dela, a expondo como um troféu a ser disputado.

É preciso pensarmos de uma forma total as questões que nos envolvem. Aceitação por meio da hipersexualização, objetificação e exotificação não é inclusão. Não tem como ser por que parte do pressuposto que o outro é um objeto a ser consumido mesmo que isso remeta a processos e ferramentas sociais construídas pelo racismo e o machismo na sociedade. O que nos é estranho e abominável nós tornamos caricato e desapropriado de si mesmo. Baartman, Ourika e Inês Brasil são apenas alguns dos exemplos que podem ser dados desse processo, mas podemos também perceber isso de forma mais glamourizada e palatável com a figura da Globeleza que invade todo ano antes do Carnaval nossas televisões, demonstrando que o nosso lugar social é só o de dar prazer para os outros e não ser um ser humano pleno buscando nosso próprio prazer, com direitos assegurados e ocupando espaços que não sejam o do desejo do homem cis branco hetero.

Modificar essa estrutura imposta para as mulheres negras (cis ou trans) como única saída de reconhecimento social é cada vez mais urgente, porém só se fará com garantia de remuneração salarial decente para as mulheres negras, inclusão com permanência estudantil garantida nas universidades públicas, combate a violência policial e genocídio do povo negro e da violência machista. Combater de forma estrutural o racismo e o machismo é uma das chaves para combatermos e desorganizarmos essa cruel lógica de que nós mulheres negras devemos estar sempre a serviço dos sinhozinhos e sinhazinhas.

Opera Mundi