Cada vez mais dona do poder dentro da própria família, uma geração de “déspotas mirins” traz novos desafios para a escola
TORY OLIVEIRA
TORY OLIVEIRA
Eles são agressivos, mimados e mandões. Tudo precisa ser feito para eles e na hora que eles demandam. Tal comportamento, cada vez mais presente em casa ou na escola, faz dessas crianças déspotas mirins, pequenos sem limites que acreditam ser o centro do mundo. Essa é a visão da psicanalista e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa de Psicanálise e Educação da USP Marcia Neder, autora do livro Déspotas Mirins – O Poder nas Novas Famílias, publicado pela Editora Zagodoni.
Na obra, a psicanalista defende que, com a perda de poder do pai na família, quem ganhou espaço foi a criança. “É no século XX, a partir da despatriarcalização familiar, que a criança passa a ocupar cada vez mais o papel de organizador”, afirma Marcia, que estuda o assunto desde 2006, quando escolheu o tema para sua tese de pós-doutorado.
Para ela, os pequenos tiranos são frutos não só da educação dada pelos pais hoje, mas também de um contexto social que coloca a criança como centro do mundo na família. A virada teria começado a partir do século XVIII, quando a mulher passou a representar um novo papel como mãe. O processo, que nasceu como uma campanha pela amamentação dos filhos pela progenitora (e não por uma ama de leite, como era comum), evoluiu para a exigência do cuidado e da dedicação aos filhos em tempo integral. “O século XIX é conhecido pelos historiadores como o ‘século da mãe’, quando se instituiu a imagem da ‘boa mãe’, que deixa a vida mundana para se dedicar aos filhos”, explica.
A partir daí, diz ela, a sociedade passou a ter um adulto, a mãe, designado para orbitar em torno da criança. “Isso é uma das grandes sementes do despotismo infantil”, analisa. Além disso, se antes os pais exigiam respeito e obediência, hoje preferem ser amados e aprovados pelas crianças – o que também contribui, ela diz, para a instituição da “pedocracia”.
As consequências dessa mudança vão além das birras. Na escola, o déspota mirim desafia os professores e recusa-se a seguir as regras da instituição. A situação é especialmente delicada em instituições particulares, apesar de Marcia defender que o conflito é comum em todas as classes sociais. “O aluno se tornou cliente na escola. Tudo isso desfavorece o professor, que seria o representante do adulto que educa na escola. Se os pais não têm poder dentro de casa, a criança buscará a mesma soberania na escola.
Professora de Artes na Educação Infantil em uma escola particular na região do ABC Paulista, Paula Aviles, 31 anos, conta que os conflitos com as crianças mandonas são comuns e começam cada vez mais cedo. “O que a gente percebe é que os pais têm pouco tempo para os filhos e compensam deixando a criança fazer o que quer”, opina. A professora conta o caso de um aluno de 2 anos de idade, agressivo, que destruiu o trabalho feito por outra docente durante um evento na escola com os pais. “A mãe disse que ele não poderia ser contrariado”, lembra. Já outro aluno, de 14 anos, recusava-se a assistir às aulas e ficava de costas para a professora. A justificativa era que ele “não gostava” da disciplina.
Os desmandos das crianças refletem-se até mesmo nos presentes que ganham dos pais. “A criança se sente com poder de decisão. Não é o pai que compra o presente, é ela quem decide o que quer. Elas não enxergam os pais como alguém que comanda ou orienta. Ela se vê como igual”, analisa a professora.
Para a autora do livro, os efeitos acabam atingindo a própria criança. Em alguns casos, o mandão acaba discriminado no ambiente escolar. Em situações mais extremas, a própria saúde da criança pode estar em perigo. “Eu já vi crianças que precisavam fazer dieta por problemas de saúde e os pais não conseguiam restringir sua alimentação”, relata Marcia.
Para a orientadora educacional dos anos iniciais do Ensino Fundamental da Escola Stance Dual, Luciana Lapa, colocar limites e lidar com as frustrações invariavelmente sofridas pelas crianças ao longo da vida escolar têm sido grandes questões para os pais. O problema se agrava, afirma, quando a criança sai da família, uma instituição privada, e vai para a escola. Ali, passa a fazer parte de um grupo e precisa lidar com a noção de direitos e deveres. “Muitas vezes a criança tem dificuldade de lidar com esses aspectos”, explica.
Mas por que é tão difícil colocar limites? Para Luciana, existe um desgaste das relações autoritárias entre pais e filhos, que estão sendo substituídas por modelos mais democráticos de relacionamento. Muitas vezes, porém, os pais passam a acreditar que impor limites significa ser autoritário, e abandonam o papel de estabelecer para a criança o que pode e o que não pode fazer. “A criança precisa de um norte, de saber até onde ela pode ir. Não ter isso pode gerar até insegurança”, afirma Luciana.
“A escola convive com os mesmos desafios postos na sociedade”, concorda Giselle Magnossão, diretora pedagógica do Colégio Albert Sabin. Na visão da educadora, vivemos uma crise de autoridade, de regras e de relações com o outro na sociedade, que acaba resvalando na escola. “Temos uma geração de pais que saiu do seu lugar. Não é mais preciso ser opressor para educar para o limite e para o respeito. Esse é o desafio de hoje.
As educadoras são unânimes ao apontar que escola e família precisam trabalhar juntas – e no longo prazo – para destronar o pequeno déspota. “Muitas vezes, a criança não tem consciência do que está fazendo. Para ela, aquilo não é errado, é como ela está acostumada a agir”, pondera Luciana Lapa.
Também é importante mostrar quem é o adulto da relação e deixar claro que ele não pode ser desrespeitado. “É importante trazer a família para a discussão”, sugere Giselle, que defende trabalhar a questão dos limites a partir da percepção do outro, em vez de optar por medidas restritivas ou punitivas. “O limite deve ser trabalhado a partir da perspectiva do respeito e da empatia”, conta.
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