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domingo, 31 de janeiro de 2016

Garotas nerds e geeks contam como enfrentam meios machistas

Por Patrícia Gnipper RSS | em 26.11.2015

Apesar dos avanços do movimento feminista, que luta pela igualdade entre os gêneros, nossa sociedade ainda é machista — isso é um fato. O machismo está tão internalizado na nossa criação, nos nossos hábitos e no nosso cotidiano, que comportamentos misóginos são vistos como normais nos mais diversos segmentos da sociedade. E nos meios nerd e geek, que são predominantemente masculinos, não seria diferente. No entanto, meninas e mulheres fãs de quadrinhos, de ficção científica, de videogames, de animes, de cosplays e afins, têm, cada vez mais, elevado suas vozes para dizer que menina pode ser nerd, sim. E que já passou da hora dos rapazes aceitarem e respeitarem a presença feminina no antigo “clube do bolinha”. 

Não acha que o meio nerd seja machista? Talvez seja porque boa parte dos comportamentos sexistas e misóginos acabem ficando mascarados, disfarçados de “brincadeira”. Para entender o que estamos falando é só parar para observar alguns detalhes, como, por exemplo, o fato de que as mulheres precisam sempre provar que são “nerds de verdade” e não “posers” como são frequentemente chamadas, ou, pior ainda, “attwhore” — termo pejorativo que vem de “attention whore”, usado para caracterizar aquela mulher que faz de tudo para chamar atenção. E qualquer tipo de reclamação ou observação a respeito desse preconceito acaba sendo tratada como “um exagero” ou “falta de humor”, e as garotas que pedem mais respeito são constantemente chamadas de “mal humoradas”, “mal amadas” e variações. Vai dizer que nunca presenciou nenhuma situação como essa? "Quem é você para dizer que ela não é [nerd]?" (Reprodução: Divulgação) 

O lado delas 
Voltando um pouco na história da nossa sociedade, o tal “clube do bolinha” não surgiu por acaso. Ele é, na verdade, reflexo de uma sociedade há muito tempo sexista e patriarcal, que segrega mulheres e as trata como seres inferiores, desprovidos de inteligência lógica e dependentes de seus pais ou maridos. Por isso, mulheres não tinham as mesmas oportunidades que os homens para estudarem ciências diversas, restando a elas somente o papel de mães de família, se quisessem ser minimamente respeitadas. Sendo assim, a ciência e a tecnologia sempre contaram com uma maior quantidade de indivíduos masculinos em seus estudos e áreas de atuação, e os produtos voltados ao público nerd (como videogames, revistas em quadrinhos, etc) acabaram sendo desenvolvidos e direcionados para o público masculino heterossexual, deixando as demais parcelas da sociedade de fora do target. 

No meio underground, produtos e publicações com maior diversidade de temas sempre existiram, mas somente de alguns anos pra cá temos começado a ver essa abertura também no mainstream. E isso vem acontecendo graças ao empoderamento feminino, que vem se firmando com cada vez mais força com o crescimento da Internet e o surgimento das redes sociais, que, mesmo sem querer, deram voz às minorias sociais. Antes, as garotas não tinham como dizer “hey, eu não me sinto representada pelas figuras estereotipadas das mulheres nos quadrinhos” e serem, de fato, ouvidas, diferente da realidade atual com canais de comunicação e interação poderosos, como o Facebook, que já é utilizado por 1 em cada 7 pessoas do planeta. 

feminismo
Tenente Uhura (Star Trek) e Princesa Leia (Star Wars) retratadas como a icônica Rosie the Riveter na arte de J. Howard Miller sobre o movimento feminista (Reprodução: Divulgação) 

Nerd e gamer sim senhor 
A professora universitária Beatriz Blanco, de 27 anos, é nerd assumida desde a adolescência. Gosta de frequentar eventos de anime e RPG, e se interessa bastante por games, filmes de ficção científica, quadrinhos e literatura fantástica. Atualmente, é colaboradora de dois sites: o Bonus Stage, onde escreve sobre games, e o Além da Tela, onde fala mais sobre feminismo. Beatriz também faz parte do projeto MinasNerds, que é um coletivo de mulheres que querem construir um espaço seguro para as meninas curtirem seus hobbies, sem machismo. O grupo organiza eventos e debates sobre temas relacionados e está lançando um site com conteúdo de cultura pop produzido exclusivamente por mulheres. 

Beatriz Bianco
A professora e gamer Beatriz Blanco (Reprodução: acervo pessoal) 

Mas, mesmo com tanto “currículo”, a professora passa por situações no mínimo constrangedoras somente por ser mulher e gostar de “coisa de menino”. Ela conta que, logo que entrou para a equipe do Bonus Stage, publicou um texto sobre mulheres e games que não foi muito bem aceito por um homem também membro do site. Mesmo que o texto tenha sido construído baseado em uma extensa pesquisa de fontes, pessoas entrevistadas, e até mesmo conversa com psicólogos e sociólogos, o rapaz disse que o site estava virando “feminazi” (um termo pejorativo bastante usado por pessoas aversas ao feminismo, comparando o movimento de igualdade de gênero ao nazismo). Por fim, ele acabou saindo da equipe do site e passou a difamar a autora do texto no Facebook, caluniando até mesmo seu namorado, que não tinha nenhuma relação com o “causo”. Beatriz acabou sendo vítima de uma exposição na rede social, sendo alvo de comentários negativos e ataques virtuais vindos de pessoas desconhecidas, que, incentivadas pelo discurso de ódio do rapaz, aproveitaram para destilar seu machismo na rede. 

Ela contou também que, desde então, às vezes ainda recebe xingamentos pelo inbox do Facebook, mas diz que não responde: apenas bloqueia o remetente e segue a vida normalmente. E isso não acontece só com ela, mas também com as amigas. Beatriz revelou que pelo menos uma vez por mês fica sabendo de alguma conhecida que foi difamada pelo Twitter, ou que teve seu blog tirado do ar e ataques do tipo, mas acredita que “a união faz a força”. “Encontrar outras mulheres na internet para curtir ‘nerdices’ comigo ajudou muito a me sentir mais segura e lidar com o machismo de forma mais assertiva”, conta. 

Audaciosamente indo onde nenhuma mulher jamais esteve 
Fã e autora de ficção científica, a geógrafa Lady Sybylla, de 35 anos, também tem histórias para contar sobre o machismo no meio nerd e geek. Apesar de se considerar nerd, ela evita se chamar assim devido à agressividade e à fetichização que mulheres sofrem ao admitir que são nerds ou geeks. “Ou a gente é tratada com violência porque gostamos do que os meninos gostam e temos que apresentar 'carteirinha de milhas' pra provar que gostamos de alguma coisa, ou então eles acham que somos uma coisa de outro mundo e pedem nossos nomes, WhatsApp, e-mail, etc, sendo bem invasivos”, explica. 

Sybylla, que também é professora de geografia, é fanática por sci-fi, em especial Star Trek, Stargate, Babylon 5, Arquivo X e Battlestar Galactica, e cerca de 90% de suas leituras são de ficção científica. Com tanto amor pelo gênero, ela se tornou produtora de material autoral lançando textos e podcasts em seu blog Momentum Saga, criado há cinco anos, além de e-books gratuitos (disponíveis para download no blog). No site, a autora discute ficção científica e ciência, com resenhas de livros e filmes, muitas vezes sob um viés feminista. Outros projetos que contam com sua participação são os podcasts CabulosoCast, o Holodeck e o Anticast, e Sybylla também é co-criadora do selo Universo Desconstruído, que lança conteúdo de ficção científica feminista. 

Universo Desconstruido
Capa da coletânea de ficção científica feminista Universo Desconstruído (Reprodução: Momentum Saga) 

Vamos combinar que um homem com a mesma bagagem seria ovacionado por muita gente, não? Mas Sybylla, no entanto, contou que é comum receber comentários desagradáveis no blog, a ponto de ter precisado remover o campo de comentários temporariamente, e só voltou quando passou a usar o sistema do Facebook que inibe um pouco mais a “trollagem”, já que, para comentar, é preciso estar logado na sua conta da rede social. Dentre os comentários, ela destacou alguns diminuindo seu trabalho (por ser mulher), e outros duvidando que ela seja mulher (afinal, como poderia uma mulher produzir material com tanta qualidade, não é mesmo?). 

A professora contou também que, após participar do episódio 198 do Anticast, quando falou sobre machismo no mundo nerd, recebeu e-mails de ameaça, chamando-a de “fundamentalista” e exagerada, além de mais mensagens ofensivas. Como ela enfrenta? “Não alimento trolls. Não discuto com preconceituosos, é perda de tempo”, explica. 

Batendo de frente 
Já Rebeca Puig, roteirista e redatora publicitária de 29 anos, bate de frente com o machismo do dia a dia. Declaradamente feminista, Rebeca tem como política pessoal responder o machismo e tentar explicar aos homens por que ele é ruim e onde está o erro, especialmente quando recebe comentários masculinos negativos por causa de seu bog Collant Sem Decote, onde a redatora escreve sobre cultura pop sob com uma ótica feminista. “O Collant nasceu exatamente para discutir o ambiente machista que permeia a cultura pop, então a minha política é responder. Mas volta e meia aparecem comentários misóginos nos textos, e como os comentários são moderados, esses não são publicados”, ela conta.  

Rebeca Puig
A redatora feminista Rebeca Puig (Reprodução: acervo pessoal) 

Assim como acontece com a maioria das garotas que tentam combater o machismo no meio nerd e geek, Rebecca costuma receber ofensas virtuais que a chamam de “mal com***” (como se sexo fosse solução para qualquer problema da sociedade), ou dizendo que suas reivindicações são “mimimi” (outro termo pejorativo bastante usado para desqualificar as lutas sociais). “Eu sou feminista porque sou mulher, e se eu não lutar pelo meu espaço e pelos meus direitos, ninguém mais vai. Ainda tem muito ódio direcionado às mulheres nesse meio, e ainda falta representação feminina expressiva tanto na ficção, quanto na produção de conteúdo”, desabafa Rebeca. 

Cosplay de respeito 
Apesar de novinha, Angelina Guerrieri também tem histórias de desrespeito com relação a seu gênero para contar. A modelo que está prestes a completar 18 anos gosta de fazer cosplay e sua personagem favorita é a Arlequina (ou Harley Quinn), a supervilã inimiga do Batman. 

Angelina Guerrieri
A cosplayer Angelina Guerrieri vestida de Arlequina (Reprodução: Andre Felipe Fotografia) 

Angelina, que se considera “geek de cultura pop” por estar sempre indo atrás de novidades sobre filmes, músicas e quadrinhos, está criando um blog e participa de eventos de cosplay, onde já passou por situações bastante desagradáveis. “Infelizmente os eventos de cosplay são um retrato da sociedade machista em que vivemos: homens achando que somos propriedade deles”, desabafa. “Por exemplo, alguns fãs ficam bravos quando a garota não quer tirar foto ou abraçar. É como se tivéssemos a obrigação de interagir com todos da maneira que eles quiserem, ou senão estamos fora”, explica a cosplayer, que já sofreu abusos ao tirar fotos com fãs que acharam OK passar a mão em seu corpo, mesmo sem autorização. Mas as ofensas e ataques não acontecem somente nos eventos, se estendendo ao âmbito virtual também. “Já teve gente dizendo que eu era gorda demais para o meu cosplay, outros disseram que eu estava sexualizando a personagem e, por isso, tinha que aguentar o assédio”, todas acusações sem fundamento e de cunho machista. 

Fica a dica 
Também perguntamos às meninas o que elas gostariam de dizer aos homens nerds e geeks e como elas acreditam que eles poderiam ajudar a combater a intolerância às mulheres nesses meios. 

friendzone
"A friendzone não existe. As mulheres não te devem nada!" (Reprodução: DeviantArt/nekozneko) 

“Acho que os caras precisam entender que a gente não quer tirar o lugar deles, a gente quer que esse espaço seja dividido de maneira igual e segura”, explica Rebecca, que chama os rapazes para combater o machismo junto com as garotas. “Se um amigo chama uma mina de vadia, você, homem, pode explicar por que isso é errado e sexista. Se vir um cara assediando ou ameaçando a menina no jogo online, denuncie. Ficar calado quando assiste a uma opressão é ajudar a perpetuar este ciclo de violência”. 

Beatriz concorda e pede para que os meninos “sejam nossa voz nos espaços masculinos em que não conseguimos entrar. Vocês não perdem espaço se a gente ganhar o nosso, pelo contrário: vai ter muito mais material para consumirmos, mais pontos de vista para conhecer”, opina a blogueira. 

Já Sybylla sente que já houve alguma evolução. Para a professora, muita gente tem se posicionado favorável às meninas quando sofrem ataques virtuais e muitos comentários positivos têm sido deixados em pautas sobre minorias. Mesmo que a sociedade ainda tenha muito a progredir, a autora de sci-fi acredita que o primeiro passo já foi dado. Quanto ao recado que ela passa aos homens nerds e geeks, o conselho é: não aceite o comportamento machista do colega. “Se você vê uma menina sendo atacada em páginas, blogs, convenções, e não faz nada, você é conivente. Preconceito tem que ser desconstruído porque a gente aprende a odiar, a menosprezar, a repelir e, se aprendemos isso, podemos desaprender”. 

E o que pensa a jovem Angelina? “Não seja babaca e respeite as minas!”.

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