Ana Carolina Motta Guatimosim
Resumo: Este trabalho trata da guarda compartilhada obrigatória, tema correlato à proteção dos filhos que tem despertado crescente interesse na doutrina e jurisprudência pátrias, sobretudo após a entrada em vigor da Lei 13.058/14. O objetivo do estudo é verificar a repercussão social e jurídica do instituto em tela, levando-se em consideração o dinamismo das estruturas familiares contemporâneas. Para a elaboração, expõe-se a evolução histórica do instituto da guarda, destrincha-se os conceitos de guarda compartilhada e alternada e discorre-se sobre as implicações práticas da novel legislação. Por fim, procedeu-se à conclusão, considerando-se soluções para os problemas advindos da lei, para fins de efetivação dos objetivos primordiais da guarda compartilhada: proporcionar a convivência pacífica e harmônica entre os pais que já não vivem juntos e seus filhos.
Introdução
O Código Civil de 2002, após cuidar da separação judicial e do divórcio, enumera as regras atinentes à "Proteção da Pessoa dos Filhos". Disposições importantes acerca do tema estão nos artigos 1.583 e 1.584, os quais foram profundamente modificados pela Lei 11.698, de 13 de junho de 2008. Após, houve nova alteração feita pela Lei 13.058, de 22 de dezembro de 2014, originária do Projeto de Lei 117/2013, denominada por alguns como Lei da Guarda Compartilhada Obrigatória.
Com as mudanças legislativas acerca do tema, a guarda dos filhos é atualmente e cada vez mais, assunto de relevância social e jurídica, em razão do dinamismo que as estruturas familiares contemporâneas possuem, bem como do reconhecimento jurídico de novas entidades familiares.
A instituição da nova ordem constitucional em 1988 e as transformações sociais ocorridas no final do século XX resultaram na diminuição dos preconceitos quanto às pessoas divorciadas e filhos de pais divorciados, retirando as amarras que impediam a separação dos casais que não eram mais felizes em conjunto.
Nesse novo contexto, os casos de divórcio foram se tornando cada vez mais comuns e, com isso, as discussões acerca da guarda dos filhos foram sendo afloradas na sociedade, adquirindo importância jurídica cada vez maior.
A propósito, ressalta Maria Berenice Dias:
“A convivência física e imediata dos filhos com os genitores, mesmo quando cessada a convivência de ambos, garante, de forma efetiva, a co-responsabilidade parental, assegurando a permanência de vínculos mais estritos e a ampla participação destes na formação e educação do filho, a que a simples visitação não dá espaço. O compartilhar da guarda dos filhos é o reflexo mais fiel do que se entende por poder familiar.” (DIAS, 2007, p. 395)
Além disso, a guarda compartilhada reflete o aspecto constitucional democrático, haja vista ser o exercício democrático das funções paternas e maternas por ambos os genitores. Dar efetividade ao instituto da guarda compartilhada é, assim, dar aplicabilidade ao artigo 226 da Constituição Federal, o que fortalece as bases do Estado e da própria sociedade.
1. Evolução histórica da guarda compartilhada
A Lei do Divórcio previa, de início, que, em casos de separação judicial consensual, os cônjuges poderiam acordar sobre a guarda dos filhos (artigo 9o, Lei 6.515/77). Em casos de separações litigiosas, a culpa influenciaria diretamente na fixação da guarda dos filhos, que ficaria com aquele que não deu causa ao término da relação conjugal. No caso de culpa de ambos os cônjuges, os filhos ficariam com a mãe, “salvo se o juiz verificasse que tal solução pudesse gerar prejuízo de ordem moral aos filhos” (art. 10o, § 1o, Lei do Divorcio). Caso o juiz verificasse que não deveria ser fixada a guarda nem para o pai nem para a mãe, ele poderia deferir a guarda à pessoa “notoriamente idônea, da família de qualquer dos cônjuges” (art. 10, § 2o, Lei do Divórcio).
O Código Civil de 2002 alterou o sistema anterior de guarda, pois a culpa passou a não influenciar mais na fixação dela, com a revogação tácita do art. 10 da Lei do Divórcio. A redação originária do art. 1584 do Código Civil em vigor dispunha que exerceria a guarda quem tivesse melhores condições, cláusula geral que buscava atender o maior interesse da criança e do adolescente. Dessa forma, a guarda unilateral com regulamentação de visitas era a única opção a ser fixada.
Com a edição da Lei 11.698/08, a redação dos artigos 1583 e 1584 do Código Civil atual foi substancialmente alterada, pois previu que a guarda seria unilateral ou compartilhada. A guarda compartilhada é aquela em que há a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns e a guarda unilateral é aquela atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua.
Notório que a referida lei deu maior concretude ao artigo 227 da Constituição Federal, haja vista ter assegurado o direito fundamental da convivência no âmbito familiar.
Importa salientar que a alteração legislativa foi salutar para o ordenamento jurídico brasileiro, pois era necessário definir e conceituar o instituto, de maneira clara e precisa, como bem colocado por Caio Mário da Silva Pereira:
“Merece destaque neste momento da redefinição das responsabilidades maternas e paternas a possibilidade de se pactuar entre os genitores a ‘Guarda Compartilhada’ como solução oportuna e coerente na convivência dos pais como os filhos na Separação e no Divórcio.” (PEREIRA, 2008, p. 185)
A Lei 11.698/2008 teve como meta precípua a conservação do vínculo afetivo dos genitores com os filhos independente do desentendimento do ex-casal, e assegurou que a vida emocional do menor não fosse prejudicada, tanto em seu desenvolvimento psíquico quanto social, e nesse diapasão, pode-se citar Waldyr Grisard Filho, “pois, mesmo decomposta, a família continua biparental” (GRISSARD FILHO, 2002, p. 167).
Nos dizeres de Giselle Câmara Groeninga:
“Seja como for, a responsabilidade solidária presente no modelo preconizado pela guarda compartilhada fomenta o comportamento altruísta que caracteriza a família. A responsabilidade solidária restitui à família transformada e ao casal parental o reconhecimento de seus recursos de personalidade, sua autonomia e sua capacidade autopoiética – de restabelecimento de equilíbrio após as transformações advindas das separações.” (GROENINGA, 2008, p. 180)
A Lei no 13.058, de dezembro de 2014, introduziu algumas modificações significativas no Código Civil, alterando as regras para aplicação da guarda compartilhada.
Conforme justificativa do Projeto de Lei 117/2013, que lhe deu origem, o precípuo objetivo foi evitar a alienação parental e impedir que um dos genitores se utilizasse do litígio para impedir a guarda compartilhada.
Assim, a guarda compartilhada torna-se obrigatória mesmo nos casos em que não houver acordo entre os pais quanto a guarda do menor, consoante disposição do artigo 1.584, § 2°, do Código Civil.
2. Distinções entre guarda compartilhada e guarda alternada e suas implicações
Indubitável que os propósitos da alteração legislativa são louváveis, contudo, as novas regras têm sido criticadas por parte da doutrina em razão de algumas impropriedades em seu texto.
A doutrina critica, de forma dura, a redação dos §§ 2° e 3° do artigo 1.583, os quais dispõem que o tempo de convívio dos genitores com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada e que a moradia base dos filhos será aquela que melhor atender aos seus interesses.
As referências a tempo de convívio dividido de forma equilibrada entre os genitores e a previsão da dupla residência do menor podem gerar, na prática, a transformação da guarda compartilhada em verdadeira guarda alternada, operando-se o retrocesso social.
Conforme expõe Rodrigo da Cunha Pereira, “é possível encontrar casos que a guarda alternada seja adequada, entretanto na maioria dos casos não é recomendada pois não atende ao melhor interesse da criança”. (PEREIRA, 2015, p. 361)
A diferença entre a guarda compartilhada e a guarda alternada deve ser necessariamente clara não só para juristas, mas principalmente para pais e filhos, no sentido de evitar que incorram na prática da última modalidade.
Enquanto na guarda alternada cada genitor tem a guarda exclusiva do filho em períodos alternados de tempo (dias, semanas ou meses), na guarda compartilhada ambos compartilham a rotina e o cotidiano dos filhos permanentemente, havendo um compartilhamento simultâneo de funções, tarefas e responsabilidades. Na guarda alternada o ponto principal é a divisão do tempo, que deve ser igualmente dividido, na guarda compartilhada, por sua vez, o foco é a divisão igualitária e simultânea de tarefas e responsabilidades entre os pais para com os filhos.
A guarda alternada também é bastante criticada pois parece privilegiar mais os interesses dos pais, consoante expõe Flávio Tartuce:
“Dois desses direitos dos pais, notoriamente egoísticos, podemos destacar de imediato. O primeiro é o de reduzir ao máximo os encontros com o antigo consorte, o que é facilitado pela existência de dois lares. O segundo diz respeito aos pleitos de redução ou exoneração de valores alimentícios, o que vem ocorrendo perante o Poder Judiciário sob a vigência da nova lei.” (Tartuce, 2015)
Por outro lado, a guarda compartilhada não implica necessariamente o fato de que a criança terá duas casas, podendo residir exclusivamente na casa de apenas um dos pais ou residir simultaneamente na casa de ambos, dependendo da realidade familiar, acabando com a triste realidade do “filho mochilinha ou mochileiro”.
A Lei da Guarda Compartilhada Obrigatória não teve a intenção de instituir a guarda alternada e nem perpetuar com as situações em que um dos genitores atua apenas como “um mero visitante, restrito a programas de fast food, cinemas e guloseimas” (ROSA, 2015). Pelo contrário, sabe-se, inclusive pela justificativa do projeto que lhe deu origem, que a ratio da lei foi propiciar a corresponsabilização e coparticipação de ambos os genitores na vida dos filhos.
Entretanto, a leitura seca e rasa da lei, dissociada das considerações doutrinárias pertinentes, dá ensejo à confusão entre os institutos da guarda compartilhada e da guarda alternada. Assim, os estudos e as discussões são extremamente importantes nos meios jurídicos e sociais acerca do tema, a fim de evidenciar e esclarecer a necessária diferenciação entre os dois institutos e de qual deles deve ser efetivamente adotado por imposição da nova legislação.
3. Novel Obrigatoriedade
Outro aspecto bastante criticado da Lei 13.058/2014 é a compulsoriedade trazida pela lei. Segundo o § 2° do art. 1.584, quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda do menor.
Ora, tendo em vista a imposição da norma legal, necessário se questionar até que ponto a obrigatoriedade pode beneficiar ou prejudicar as famílias.
Indubitavelmente, o convívio de uma criança com o pai e a mãe é a melhor opção para o seu desenvolvimento psicológico e cognitivo, a ciência da psicologia confirma a premissa. O instituto da guarda compartilhada veio como forma de proporcionar aos filhos uma maneira de conviver com ambos os genitores de maneira pacífica e harmoniosa.
Entretanto, mister salientar que a obrigatoriedade da guarda compartilhada para todas as famílias pode, em alguns casos, não ser melhor para o interesse do menor.
A imposição genérica de uma única forma de criar os filhos para os genitores que estão separados parece imprópria. Isso porque se está ignorando as especificidades e particularidades de cada família e ignorando também a individualidade de cada ser humano que a compõe, numa verdadeira massificação de pessoas e famílias.
As famílias são estruturas dinâmicas compostas por indivíduos, cada um dotado de subjetividade e de características específicas que os distinguem das demais pessoas. Nas últimas décadas, o direito de família tem evoluído buscando sempre a proteção da personalidade e da dignidade dos membros que a compõem.
Nesse contexto, impor uma forma única e rígida de regular o exercício da parentalidade de pais separados com os seus filhos parece se distanciar dos objetivos buscados pelo direito de família na atualidade e dos nobres direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal.
Exemplificando, a guarda compartilhada, quando não há o mínimo de contato pacífico e consenso entre os genitores, não se apresenta como a melhor opção. Previsíveis são os casos em que a imposição da guarda compartilhada poderá gerar um clima de guerra constante entre genitores, impactando negativamente na formação dos filhos.
Mesmo sem exercerem a guarda compartilhada, há famílias que conseguem criar os filhos de uma forma saudável e com um contato harmônico entre genitores. Dessa forma, vale questionar se a obrigatoriedade da guarda compartilhada poderia ser imposta pelo Estado. Não se pode, de forma genérica e abstrata impor que, para essa família, a guarda compartilhada também seria a melhor opção. Nessa linha de raciocínio, impende perguntar se não é hipótese de invasão demasiada do Estado no direito à reserva da intimidade e da vida privada dessa família. Trata-se de um bom debate.
Destaca-se os ensinamentos de Flávio Tartuce:
“Uma hipótese a ser considerada é aquela em que os cônjuges residam em locais distantes ou em cidades diferentes. Importa questionar: como impor uma alternância de lares nesse caso? Perguntas como essa aponta que a norma simplesmente não terá aplicação em muitos casos concretos.” (TARTUCE, 2015)
José Fernando Simão também expõe, com maestria, que a citada obrigatoriedade não será implementada na prática. Para ele:
“No caso da guarda compartilhada, em situações de grande litigiosidade dos pais, assistiremos às seguintes decisões: 'em que pese a determinação do CC de que a guarda deverá ser compartilhada, no caso concreto, a guarda que atende ao melhor interesse da criança é a unilateral e, portanto, fica afastada a regra do CC que cede diante do princípio constitucional'. A lei não é, por si, a solução do problema como parecem preconizar os defensores do PL 117/03. A mudança real é que o Magistrado, a partir da nova redação de lei, precisará invocar o preceito constitucional para não segui-la. Nada mais.” (SIMÃO, 2015)
Portanto, a guarda compartilhada não deve ser universalmente imposta. Ela é a modalidade que deve ser privilegiada e incentivada pelo Estado, por parecer a melhor opção. Entretanto, considerando a realidade e a diversidade das estruturas familiares e as subjetividades dos membros que as compõem, não se deve retirar do juiz e nem mesmo dos pais a opção por adotar uma outra forma além da guarda compartilhada.
Conclusão
A guarda compartilhada é um importante mecanismo que pode auxiliar genitores separados e seus filhos a estabelecerem uma convivência familiar ideal, pois confere efetividade a inúmeros valores constitucionalmente garantidos, tais quais, a igualdade entre cônjuges, o melhor interesse da criança, a democratização das decisões familiares, a convivência familiar, dentre outros.
Em razão disso, é uma modalidade que, sem dúvidas, deve ser prioritária e deve ser estimulada pelo Estado.
Contudo, a fixação da guarda não pode ser feita única e exclusivamente com base nos interesses pessoais dos pais, valendo lembrar que esses foram norteadores da modificação legislativa feita no fim de 2014.
Portanto, se esses interesses forem deixados de lado, a novel legislação poderá ser aplicada para efetivar a verdadeira guarda compartilhada, sem as nuances de guarda alternada. Outra solução que deve ser observada é a mitigação da premissa alusiva à sua compulsoriedade, notadamente quando não houver o mínimo consenso entre os genitores.
Assim, a nova Lei 13.058/2014 merece um olhar cuidadoso, não podendo ser aplicada dissociada dos demais valores constitucionais, jurisprudenciais e doutrinários já solidificados sobre o tema.
Como toda norma infraconstitucional, ela deve ser lida, interpretada e aplicada sob a luz dos princípios e valores constitucionais, de maneira a respeitar e a dignidade de todas as pessoas humanas envolvidas na questão.
Ana Carolina Motta Guatimosim
Analista do Ministério Público de Minas Gerais. Pós-graduada em Direito Público pela ANAMAGES e em Direito Processual pela UNISUL. Pós-graduanda em Direito de Família pela UCAM
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