Sexta-feira, 16 de setembro de 2016
É muito comum ouvir que basta ser humanista para pensar e valorizar o ser humano, independentemente do sexo, gênero etc, sendo, portanto, desnecessária a perspetiva de gênero. Sabe porque não é suficiente falar em humanismo? Porque o humanismo pensa o humano de forma abstrata, sem se atentar para as especificidades dos sujeitos (se mulher, negro, criança ou idoso…). Nesse contexto, o feminino foi historicamente invisibilizado (o que na academia se chama “gender blindness“/”cegueira de gênero”). Contudo, o humanismo precisa de uma referência para se pensar o humano, e ele passa a ser o homem branco, heterossexual. Esse é o parâmetro para se pensar as necessidades sociais quando se fala de forma abstrata.
Em uma perspectiva de universalidade considerada a partir de um sujeito específico, como podem caber todas as diversidades humanas? Como garantir igualdade se não falarmos das formas específicas de desigualdades as quais são submetidas as mulheres? Há uma estrutura social que naturaliza as assimetrias de poder nas relações sociais entre homens e mulheres, invisibilizada por esse manto de “naturalidade”. Em geral, propostas universalizantes tendem a excluir as mulheres, crianças, idosos, pessoas negras ou indígenas. As mulheres não estavam no “todos” da Declaração de Diretos do Homem e do Cidadão, de 1789, que afirmou os princípios políticos de liberdade, igualdade e fraternidade, refletindo os ideais iluministas. Mas se a razão é o critério para definir quem são os livres e iguais, esse período não abarcou todas as pessoas que não tinham esse “critério” reconhecido, como aconteceu com as mulheres, por exemplo. Por isso, a francesa Olympe de Gouges escreveu a Declaração de Direitos da Mulher e da Cidadã. Acabou sendo morta pelos revolucionários.
As mulheres não estavam no “todos” que têm direito ao voto por muito tempo. Foi a partir do movimento feminista e de mulheres organizadas que suas demandas por reconhecimento e por direitos passaram a ser “vistas”. Os direitos humanos constituem um campo de disputa: são historicamente conquistados. Mesmo que a noção de igualdade antiga ainda tenha um grande impacto na contemporaneidade, sabemos que o círculo de moralidade nem sempre incluiu todos e todas como “iguais”.
A ampliação desse círculo e o consequente reconhecimento de direitos iguais tem sido feito gradativamente. Em tese, cada direito conquistado seria o piso mínimo, o ponto de partida para a conquista de novos direitos, em uma constante ampliação. Na prática, a teoria é outra. Avanços e retrocessos se entrelaçam constantemente, em processos complexos de definição jurídica de conteúdos de direitos e políticas públicas. Mas não se trata apenas de definir direitos, mas também sua titularidade. Em poucas palavras, quem tem direito a ter direitos? Como conciliar direitos universais (direitos humanos) com situações concretas pontuais e particulares?
Durante séculos, a enunciação de direitos foi guiada pela ideia de igualdade formal, como parâmetro para definir a titularidade de direitos. Dai decorre uma característica em comum na conquista e afirmação dos direitos: eles precisavam ser anunciados como universais. É a partir da noção de igualdade que se definem também “direitos iguais”: a dignidade da pessoa humana veda o tratamento desigual. Entretanto, em um mundo marcado por profundas desigualdades sociais e assimetrias de poder, a afirmação da igualdade formal não foi suficiente para que não houvesse discriminação e violações de direitos. Por isso, foi necessário um olhar mais atento aos aspectos que diferenciam as pessoas e os grupos, identificando fatores que interferem significativamente na fruição de direitos abstratamente enunciados, como por exemplo: raça/etnia, gênero, idade, orientação sexual etc.
O reconhecimento das especificidades não viola o critério da universalidade dos direitos humanos, mas reafirma a necessidade de entender os contextos nos quais as pessoas e grupos estão inseridos e, consequentemente, a maior suscetibilidade a terem seus direitos violados. Justamente por isso é preciso que o Estado reconheça direitos específicos, como os direitos das crianças e adolescentes, idosos, indígenas, negros e negras, mulheres, LGBTs.
Para tanto, gênero passa a ser uma categoria de análise que permite enxergar as diferenças socialmente construídas entre homens e mulheres. Com essa lente é possível afirmar que as mulheres têm os mesmos direitos que homens (direitos iguais), mas há situações que dizem respeito somente às mulheres, especialmente quando falamos em direitos sexuais e reprodutivos. É nesse contexto e a partir de um lugar específico, que reivindica legitimidade, que os feminismos têm dado voz e visibilidade às mulheres. Não somos seres abstratos que cabem em um corpo branco, hétero e masculino: somos diversas e somos muitas.
Daniela Rosendo é professora, mestra e doutoranda em Filosofia pela UFSC. Integrante do Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres (CLADEM Brasil).
Tamara Amoroso Gonçalves é Mestra em Direitos Humanos pela USP e doutoranda em direito pela Universidade de Victoria, Canadá. Integrante do CLADEM/Brasil e do GEA. Pesquisadora associada do Instituto Simone de Beauvoir (Universidade Concordia, Canada). Autora de diversas obras sobre direitos humanos, dentre elas Direitos Humanos das Mulheres e a Comissão Inter-americana de Direitos Humanos (Saraiva, 2013).
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