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segunda-feira, 19 de setembro de 2016

“Causa da mulher deixou de ser apenas um eco distante”, afirma Promotora sobre Lei Maria da Penha

Natalie Garcia
Jornalista Terça-feira, 9 de agosto de 2016

Sancionada em agosto de 2006, a Lei Maria da Penha foi um marco na conquista nos direitos das mulheres, uma vez que passou a proteger, legalmente, qualquer mulher vítima de violência doméstica, familiar e "toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão".Também dispôs sobre as medidas protetivas à vítima e ainda estabeleceu a criação de centros de ressocialização aos agressores. Mas, até que ponto a Lei tem sido cumprida? Qual tem sido seu impacto na vida das mulheres?
O Justificando entrevistou a Promotora de Justiça Gabriela Manssur, que atua no MP de São Paulo desde 2003, para descobrir um pouco mais sobre os avanços e os problemas da Lei. Além de ser um dos grandes nomes na defesa dos direitos das mulheres nas instituições de justiça, fazendo parte do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica do Ministério Público do Estado de São Paulo – GEVID, Gabi promoverá no próximo dia 13 um "treinão", chamado "Lugar de Mulher é na Corrida", em diversas capitais do país, de maneira a celebrar os 10 anos da Lei.

Confira a entrevista concedida ao Justificando na íntegra.

Just: Há quanto tempo você trabalha com os direitos das mulheres?

Gabriela: Sou promotora de justiça há 13 anos. Mas venho de uma família árabe, conservadora, e assim como eu, as mulheres da minha geração tiveram que quebrar paradigmas, lutar contra comportamentos impostos e ir à luta. Desde cedo lutei por minha independência, meus direitos e minha liberdade de expressão e ideologia, sem controle. Portanto, sempre lutei pelos meus direitos e de outras mulheres. Acredito que as mulheres não nascem feministas e, sim, se tornam feministas a partir do momento em que todas nós estamos sujeitas a desigualdades e injustiças. Quando isso bate à nossa porta e a gente se dispõe a mudar esse quadro, nasce uma feminista.

"Acredito que as mulheres não nascem feministas e, sim, se tornam feministas a partir do momento em que todas nós estamos sujeitas a desigualdades e injustiças"

J: Quais são os maiores problemas enfrentados pelas mulheres que procuram a Promotoria? Quais são os trabalhos da Promotoria junto dessas mulheres? Falta algo?

G: A maioria relata casos de violência, lesão corporal, ameaça e injúria. Atualmente tem crescido também o número de casos de injúria e difamação cometidos por meio digital, mais conhecidos como pornografia de revanche. Por não se conformar com o fim do relacionamento e para se vingar, o agressor expõe fotos, vídeos, conversas íntimas com a vítima, levando a danos morais graves e irreparáveis.
Entre os maiores problemas enfrentados pelas mulheres que procuram a promotoria estão: falta de equipamento próprio; estrutura com equipe técnica especializada para atendimento às mulheres; espaço reservado para que façam seus relatos, sem constrangimento, interferências externas e pressão para relatar a violência pela qual estão passando; promotorias especializadas e exclusivamente para a matéria (violência contra a mulher).
Há também a necessidade de uma maior articulação entre a promotoria de justiça e os serviços oferecidos pela rede de acolhimento e protetiva de direitos (centro de referência e atendimento à mulher, coordenadoria dos direitos da mulher). Vale ressaltar que, quando a mulher chega ao Ministério Público, já percorreu uma rota crítica em que não recebeu atendimento adequado, especializado ou encaminhamento devido. Muitas mulheres chegam à promotoria e, além do termo de declarações que colhemos para início da investigação criminal, há necessidade de encaminhamento para esses serviços. Muitas vezes a equipe não sabe para onde encaminhar essas mulheres. Falta informação, mas acredito que há ainda muita boa vontade.

J: A Lei Maria da Penha tem efetivamente ajudado na punição do agressor?

G: Sim. Conforme falado acima, nos locais em que há varas especializadas de violência doméstica com olhar de gênero dos operadores de direito e integração da equipe multidisciplinar, temos conseguido a resposta adequada e proporcional à violação do bem jurídico tutelado: direitos humanos das mulheres. Seja violência física, psicológica, moral, sexual ou patrimonial, a mulher em situação de violência tem encontrado as portas do sistema de justiça abertas para recebê-la com dignidade e respeito.
Por outro lado, não posso deixar de criticar que as penas a todas as violências mencionadas – principalmente em casos de lesão corporal, de abalo à saúde psíquica, contravenções penais, ameaça, injúria, calúnia e difamação – são muito baixas e totalmente desproporcionais à gravidade dos fatos.
Um dos avanços – em minha opinião o maior –, é a possibilidade de concessão de medidas protetivas de urgência no prazo de 48 horas. Isso dá certa segurança imediata para mulher em situação de violência, com responsabilidade do autor dos fatos pelo seu descumprimento, como sua prisão. Ainda sobre medidas protetivas, gostaria de mencionar que é um desafio para o Estado o desenvolvimento de mecanismos para assegurar o cumprimento das medidas protetivas e sua fiscalização, pois o ônus não pode recair sobre os ombros da vítima.

J: Quais outros caminhos podemos trilhar além de uma medida punitiva nesse campo?

G: A própria Lei Maria da Penha prevê nos artigos 35 e 45 a possibilidade de programas voltados ao agressor para sua responsabilização, conscientização e reflexão sobre os fatos cometidos. A partir de um estudo realizado na promotoria de Taboão da Serra, onde atuei por quatro anos, percebi que 50% das mulheres retomam o relacionamento e pedem de alguma forma a retirada da denúncia, revogação das protetivas e que a promotoria dê apenas um “susto” no agressor. Por outro lado, muitas mulheres, em média 20%, deixam de procurar ajuda ou denunciar por acreditarem que podem mudar o comportamento do autor dos fatos. E mais um dado: uma pesquisa feita pelo instituto Avon, de 2014, aponta que 56% dos homens entrevistados já cometeram um ato de violência contra suas parceiras. Fazendo um conjunto de todos esses dados mencionados, conclui-se a necessidade de desenvolver grupos reflexivos com autores de violência, com propósito de transformação comportamental e prevenção a novas situações de violência que eles provavelmente irão se envolver. De fato, desenvolvemos o Projeto Tempo de Despertar em Taboão da Serra, para ressocialização do agressor, obtendo queda de 65% para 1% de reincidência. Para concluir, a Lei Maria da Penha tem esse caráter tridimensional e não só puramente penal: prevê acolhimento da mulher, punição do autor dos fatos e ressocialização do agressor.

J: Por muitas vezes, se fala numa "revitimização" da mulher que procura os órgãos de Justiça e acaba por ter sua palavra confrontada pelos operadores. Você viu/vê casos assim? O que falta para melhorarmos essa questão?

G: A Lei Maria da Penha retirou a violência doméstica de dentro de quatro paredes, tornando-a questão de ordem pública a ser enfrentada pelo sistema de justiça com eficácia, rapidez e proteção às mulheres. Ou seja, a Lei Maria da Penha deu voz às mulheres que muitas vezes estão paralisadas, amedrontadas, ameaçadas e não tinham condições de reagir. Ela é o grito da liberdade. Porém, as vozes dessas mulheres estão sendo ouvidas? A palavra da vítima tem sido fundamento exclusivo de condenação? É dada a credibilidade e o valor probatório necessário essencial ao que diz a mulher em situação de violência? Infelizmente a resposta é negativa.
Deparo-me com isso na minha rotina, não só como promotora de justiça, mas também como mulher ativista, feminista, idealista e ousada. A palavra da vítima muitas vezes é colocada em xeque. A causa da mulher, por mais que tenha sido colocada em evidência nesses 10 anos, ainda não é prioridade. Mas deixou de ser apenas um eco distante, graças à lei Maria da Penha. Hoje as mulheres estão muito mais conscientes de seus direitos, vão às ruas lutar por eles – inclusive as mais jovens já têm essa luta no DNA e não se sentem envergonhadas em se declararem feministas.
Na semana passada, tive um resultado extremamente positivo de um caso de estupro em que obtivemos a condenação do agressor com base unicamente no depoimento da vítima e no laudo psicológico, que levou em consideração os traumas relatados por ela após abuso sexual. Chorei de emoção porque, em um primeiro momento, a palavra dessa menina, como acontece em vários outros casos, tinha sido posta em dúvida. Foi um grande avanço, uma conquista para as mulheres – e assim como a tocha das Olimpíadas, reacendeu no coração de muitas mulheres a esperança na justiça. Para mim, uma simples ameaça baseada unicamente na palavra da vítima é tão importante quanto uma tentativa de feminicídio, onde há laudo pericial atestando, por exemplo, que a vítima foi agredida por faca. Pois o que quer se proteger pela Lei Maria da Penha – e ela deve ser aplicada em todas as esferas do Direito – é a dignidade e a vida da mulher. E com a proteção da vida não há qualquer possibilidade de acordo, de vacilo. Nossa missão sempre é a proteção da mulher. Nosso maior desafio para os próximos 10 anos? Fazer com que a voz das mulheres seja ouvida.

Justificando

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