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terça-feira, 25 de outubro de 2016

Covardia consensual: sobre a energia psíquica de nossa época

Sábado, 22 de outubro de 2016
Cada época possui um “pathos”, uma espécie de “energia psíquica” que vem à tona nas obras de arte, nos livros, na cultura como um todo. Essa energia psíquica também está nos gestos e na fala das pessoas, no modo como elas se expressam. Mesmo quando não são artistas ou intelectuais, quando são pessoas comuns exercendo suas atividades diárias, todos os cidadãos estão envolvidos pelo miasma do pathos de sua época.
Antes de seguirmos, é importante saber que com o termo pathos não devemos nos referir a um sentimento somente, a um afeto único. Pathos quer dizer mais um modo de sentir que revela algo de uma época. Talvez seus anseios, talvez sua agonia. Não apenas o desejo, mas inclusive ele. A palavra miasma nos ajuda, porque ela remete a algo físico, um cheiro apodrecido, mas também a algo metafísico, como as sombras de um fantasma. Talvez também possamos traduzir pathos por “clima”, por atmosfera, assim, todo mundo entende fácil. Mas tem algo mais nessa ideia.
Muitos filósofos vêm falando há tempos da existência de “afetos autoritários”, no entanto, quando falamos em “energia psíquica”, talvez fique claro que, no conjunto dos afetos, provavelmente exista um que é mais de base, que funciona como um lastro, um que faça o papel de fio a alinhar todos os demais. Um afeto que dá o tom, um afeto-unificador. Nessa época em que manipulam-se os afetos, em que os meios de produção dos afetos estão nas mãos das instituições (a mídia, a justiça, a religião) que dominam a ordem do discurso e das práticas em geral, tudo o que se pensa, tudo o que se sente e se faz passa por mediações invisíveis. Não somos donos do que sentimos. Podemos estar sentindo ódio, por exemplo, e ele não ser nosso. Isso quer dizer que os afetos não são naturais, quer dizer que são inventados e somos contagiados por eles. Depois do contágio, a manipulação fica fácil. Qualquer vendedor, qualquer publicitário, qualquer autor de novela, qualquer pastor, qualquer político, qualquer juiz e quem mais queira mistificar com o povo, sabe disso.
O afeto que alinha ocultamente todos os demais e que vem regendo nosso tempo é a covardia. Sendo um afeto, não sabemos se ele é causa ou consequência do que vivemos, mas ele está aí. Podíamos dizer que a covardia é um efeito do medo, assim como é o ódio, mas não seria suficiente. A covardia não apenas faz par com o medo e, poderia até parecer um vício se ainda pudéssemos opô-lo à virtude da coragem, mas ela se tornou algo mais. Assim como o ódio, assim como o medo, não sabemos se ela é causa ou consequência, mas ela tomou a dimensão do pathos de uma época e, podemos dizer que, de um modo muito interessante, ela fede como um miasma.
Não é um afeto novo, a covardia está sempre presente em tempos de autoritarismo. Impossível pensar, por exemplo, o alinhamento dos alemães ao projeto nazista sem reconhecer a presença da covardia, tanto daqueles que se lançaram de forma espontânea na tentativa de agradar o poder triunfante na busca de favores do regime quanto daqueles que se calaram ou que se dedicaram a assuntos em que não precisavam tomar partido em relação ao novo poder, em especial aqueles que fingiam não ver o que se anunciava. Hoje, em meio a mais uma escalada do autoritarismo, a covardia retorna com nova feição.
A covardia que nos importa agora não é aquela que se reduz ao indivíduo tomado pelo medo. É verdade que o medo faz parte da vida e quando o enfrentamos temos a coragem. E poderíamos também dizer, como alguém que segue uma definição de dicionário, que ao não enfrentar o medo, temos a covardia. De fato, se a questão fosse apenas individual nosso problema seria pequeno e solucionável ao nível das individualidades questionáveis, das terapias, ou dos exorcismos (cada vez mais vendidos aos pobres nas religiões neoliberais, elas mesmas muito covardes).
Mas a covardia se tornou bem mais do que isso. Hoje ela é um pathos com frequência visível nas falas humanas. A quantidade de pessoas que dizem às outras “como você é corajosa”, “como vc é corajoso” quando essas pessoas assim denominadas não fizeram nada além de respeitar outras pessoas, causas justas, ideais ou mesmo se limitaram a cumprir a Constituição, quando essas pessoas não fizeram nada além de realizar seu próprio dever ético ou legal, nos faz pensar que a covardia é, entre nós, uma acordo tácito, prévio e que, os “corajosos” se tornaram “exceções”.
Em épocas autoritárias política e eticamente, torna-se normal que os que não se submetem à regra da falta de regras, à regra do desrespeito aos valores da dignidade, da verdade, da justiça, sejam tratados como inimigos do sistema, em uma palavra, como bruxas que devem ser perseguidas. Cada ato corajoso humilha o covarde e a covardia elevada a patamar ético-político e institucional induz também ao ódio.
A covardia se tornou um estranho calibrador social. É de bom tom não romper o pacto da covardia. É de bom tom submeter-se à tendência dominante.
Nos tempos do estado de exceção, em que o direito está suspenso, a tendência dominante gerou esse novo consenso, o da covardia, assumido por cada um que não dá a cara a tapa, que não rompe com a inércia e o senso comum.
Em nossos dias, a covardia assume várias expressões. Está também naquele que acredita que seu voto nulo ou branco é melhor do que a política. Esse tipo de covarde faz a pior política: a da omissão, a de deixar que os outros decidam por ele. Deixou-se docilizar perdendo o discernimento, acreditando que está livre das responsabilidades políticas, dos preços que todos vão pagar nesse campo, querendo ou não.
Os covardes são corpos e mentes docilizados, mas que fingem uma certa força: pode ser a da aparência, a do dinheiro, a da toga, a do carteiraço, a da arma apontada para fora da viatura, a do fiu-fiu, a do texto jornalístico falso, a da maledicência pelas costas. Pode ser a força da ignorância para mistificar com o povo, pode ser a estratégia de pedir votos em Igrejas aos fiéis, pode ser a de aplicar penas altas em sentenças que desconsideram o contexto social. O covarde pode ser um cara-de-pau bem comunzinho, pode ser um pastor diabólico, pode ser um promotor de justiça preocupado em encarcerar ladrões de galinha, pode ser um homem que bate em mulher, pode ser um linchador concreto ou virtual, pode ser alguém que vive de aparências, pode ser um boçal atrás de um computador gritando baboseiras fascistas, pode ser aquele que mata um índio ou chuta alguém em situação de rua.
O covarde não está muito distante do otário ou do burro, mas tem um grau de consciência um pouco maior. O burro se omite porque não sabe; o covarde sabe, mas finge desconhecer. Em nossa época o covarde anda próximo do cínico, mas ainda pode ser salvo dependendo da grau de desenvolvimento de sua covardia (ao covarde resta a esperança de que, submetido a determinadas condições, crie coragem).
Repare que a covardia pode andar junto com a violência. Não raro, demonstra mais coragem aquele que não recorre à violência do que o indivíduo que a usa para resolver todos os seus problemas. O covarde também é seletivo: escolhe seus algozes e suas vítimas.
Nas péssimas condições da cruz, Jesus Cristo pedia que Deus perdoasse aquelas pessoas, pois eram ignorantes quanto ao que estavam fazendo. Eram, sabemos desde sempre, covardes. Também Deus teve seu momento de covardia aos olhos de seu filho (“Pai, por que me abandonaste?”). Também Deus abandonou o barco seguindo a tendência dominante e deixou que Cristo fosse até o fim. Também ele foi vítima de um pathos (ora o que é a paixão?).
Deus consentiu na covardia generalizada. De algum modo também está na origem da covardia consensual.
Marcia Tiburi é Graduada em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, graduação em Artes Plásticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul com ênfase em Filosofia Contemporânea. Pós-doutorado em Artes pelo Instituto de Artes da UNICAMP. É professora da UNI-RIO.
Rubens Casara é Doutor em Direito, Mestre em Ciências Penais, Juiz de Direito do TJ/RJ, Coordenador de Processo Penal da EMERJ e escreve a Coluna ContraCorrentes, aos sábados, com Giane Alvares, Marcelo Semer, Marcio Sotelo Felippe e Patrick Mariano.

Justificando

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