Diretora Ava DuVernay compreende e executa com extrema sensibilidade a ideia de que o cinema é um ato político
por Virgílio Souza
9.fev.2015
Dentre os muitos méritos de “Selma: Uma Luta Pela Igualdade”, o maior talvez seja o de compreender e executar com extrema sensibilidade a ideia de que o cinema é um ato político. Iniciado com um discurso de Martin Luther King, seguido por um estranhamente gráfico atentado a bomba, e encerrado ao som de uma canção que, entre outras coisas, cita as marchas de Ferguson, após a morte do jovem negro Michael Brown, em 2014, o filme é ainda capaz de articular suas posições sem se desligar da construção dos personagens em cena e se mantendo, em tempo e espaço, historicamente preciso.
O primeiro elemento que salta aos olhos é o trabalho de David Oyelowo no papel do protagonista. Existe sempre um equilíbrio bastante sólido entre o aspecto pessoal e sua atuação como ativista político, sem que jamais seja traçada uma linha firmemente determinada entre os dois lados – ao contrário, o que se sugere com alguma frequência é a interferência da vida pública na vida privada e vice-versa.
O Dr. King que discursa com autoridade nas ruas, reunião e capelas se recolhe ao entrar em casa, abaixa os olhos e as sobrancelhas, aquieta a voz e mergulha em longas pausas e silêncio, como na cena em que discute infidelidade com a esposa, ou quando reage às constantes ameaças feitas por telefone.
Este traço, embora pouco frequente e fotografado de modo interessante – variando entre a penumbra e a luz baixa que isolam o protagonista -, inquieta por sua representação invariavelmente simbólica, como se qualquer gesto de MLK, por mais banal e rotineiro, fosse um ato grandioso, digno de ser filmado de perto e iluminado por trás. O roteiro escrito por Paul Webb parece mais eficiente e econômico na afirmação deste elo entre público e privado por meio de diálogos, uma vez que o sintetiza em frases diretas e objetivas, como:
“Eles vão me arruinar para arruinar o movimento”.
A figura central também surge melhor composta na sequências em que reflete sobre acertos e erros e avalia estratégias, quando a câmera o tira de um pedestal e desce ao rumo de seus olhos sem se esquecer de seu caráter extraordinário e da retórica irretocável. Ainda, há um ponto fundamental da trama em que o que King chama de “certeza moral” acaba confirmado em uma ação coletiva, ao passo que ele, o propulsor daquele movimento, assume a própria incerteza com relação ao ato – aqui, sim, um trecho em que a aproximação da câmera e a elevação do tom surtem efeito.
Se por um lado a abordagem direta de Ava DuVernay é relativamente problemática, principalmente ao filmar violência em longos planos em câmera lenta, como na mencionada sequência de explosão do princípio do filme, há qualidade na forma como a diretora trata a ideia de não-unanimidade na narrativa. Com exatidão, ela compõe planos que revelam, à distância, a tensão daquele contexto – são os casos de um soldado com o cassetete em punho em um momento de suposto alívio na turbulenta relação com os manifestantes e de alguns congressistas que se recusam a aplaudir a introdução, pelo presidente Lyndon Johnson (Tom Wilkinson, ótimo), da lei que amplia os direitos dos negros no país.
É essa atenção a figuras secundárias que garante o rigor histórico da obra, por meio de menções e aparições de personagens que vão desde os amplamente conhecidos J. Edgar Hoover (Dylan Baker) e Malcolm X (Nigél Thatch) a nomes como os dos xerifes Bull Connor, Laurie Pritchett e Jim Clark (Stan Houston), os quais não vão muito além de tipos trabalhados com simplicidade, mas que oferecem maior profundidade apenas por terem uma imagem ou característica associados a eles.
O FILME É CAPAZ DE ARTICULAR POSIÇÕES SEM SE DESLIGAR DA CONSTRUÇÃO DOS PERSONAGENS E SE MANTENDO HISTORICAMENTE PRECISO
O mesmo vale para a presença de Viola Liuzzo (Tara Ochs), de início somente um rosto feminino branco comovido pelo massacre promovido contra os negros, talvez apenas um acessório para o discurso geral do filme, mas a seguir desenvolvida com competência no formato de um recorte importante daquele tempo e contexto – o que gera desdobramentos até mesmo no desfecho do longa.
A dedicação aos coadjuvantes assegura também a apresentação de determinados efeitos do símbolo centralizador que foi Luther King, como a relação com a esposa, Coretta (Carmen Ejogo), entre a turbulência e a serenidade, e a sempre pendente ruptura entre os jovens James (Trai Byers) e John (Stephan James), contrastados pelo maiores ou menores graus de confiança, devoção e gratidão em relação ao protagonista.
Nesse sentido, é acertada a decisão de ladear os discursos políticos feitos de cima da tribuna e a reação das pessoas a eles: as lentes frequentemente partem dos gestos de Oyelowo para os diferentes rostos da plateia, permanecendo constantes somente suas palavras – maneira inteligente inclusive para driblar as restrições de direitos autorais que impedem a reprodução dos áudios originais de MLK.
UM EXERCÍCIO DRAMÁTICO, SEJA DE MEMÓRIA OU DESCOBERTA, PODEROSO E INCRIVELMENTE GENUÍNO
A habilidade de DuVernay e Webb ao trabalhar o discurso político também se revela em certas rimas e ecos entre as ações e falas de seus personagens. Exemplo é a relação que se estabelece entre a preocupação do personagem principal com seu legado (“[Depois,] o que acontece com as pessoas que ele liderou?”), referindo-se à possibilidade de sua morte levar seus seguidores à condição de órfãos, e a fala do presidente Johnson a instantes do fim, se apropriando dos conselhos de King em nova menção a “ocupar um lugar [positivo] na história”.
“Selma”, portanto, combina com inteligência a observação cuidadosa de um personagem e um recorte de sua luta histórica – e tudo o que ela envolve, até mesmo sacrifícios pessoais – e um discurso categórico que se evidencia extremamente atual, envoltos em um retrato certeiro da organização que antecedeu a marcha mais importante da trajetória de conquista dos direitos civis nos Estados Unidos. A receita não resulta apenas em um filme politicamente edificante e apropriado em termos históricos, mas em um exercício dramático, de memória ou descoberta, poderoso e incrivelmente genuíno.
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