Socióloga provocou intenso debate ao escrever sobre mães que se arrependem de ter filhos
A socióloga israelense Orna Donath sabia que estava colocando o dedo numa ferida quando ousou perguntar a um grupo de mães se elas se arrependiam de ter tido filhos. Mas nunca imaginou que iria provocar uma polêmica global que não dá sinais de trégua. Seu livro Regretting Motherhood (“arrependendo-se da maternidade”, inédito no Brasil) reúne depoimentos de 23 mulheres que sem dúvida amam seus filhos, mas, se pudessem decidir agora, sabendo o que a maternidade significa e implica, optariam por não tê-los. A tese de fundo que Donath desenvolve é que às mulheres precisam trilhar um caminho pré-determinado; que, apesar de se supor que decidimos ser mães livremente, a pressão social para ter filhos é enorme, e o resultado é que algumas acabam se arrependendo.
Donath é uma mulher jovem (40 anos), miúda e amável, que trabalha há anos na Universidade Ben-Gurion do Neguev, em Beerseba (Israel), pesquisando a maternidade e o papel das mulheres na sociedade. Vive num subúrbio de Tel Aviv e é uma feminista que já trabalhou com mulheres vítimas de abusos. Por sua maneira de encarar a vida, lembra os milhares de jovens israelenses cosmopolitas que pouco têm a ver com as minorias ultrarreligiosas e nacionalistas que condicionam o futuro de um país em eterno conflito com os palestinos. Sua luta é outra. Em 2008, cansada de ser advertida no trabalho que um dia se arrependeria de não querer ter filhos, Donath se lançou à pesquisa que fez dela o rosto global das mães arrependidas. Seu atrevimento com um tema altamente espinhoso lhe proporcionou fama e reconhecimento internacional, mas também acusações e insultos desumanos. Donath parece ter despertado alguma fera.
Pergunta. Já lhe chamaram de tudo...
Resposta. Já me chamaram de menina mimada, narcisista e egoísta por não querer ter filhos. Tem gente que escreveu comentários nas redes sociais dizendo que sem filhos eu seria uma mulher vazia, uma velha solitária rodeada de gatos.
P. Seu livro se centra no arrependimento materno. Ficar se lamentando serve de alguma coisa?
R. Sim. Do ponto de vista pessoal é importante. Reconhecer o que se passa com você alivia. Se você sofre e não sabe identificar o que acontece, pode acabar culpando os filhos em vez de culpar a circunstância de ser mãe. As pessoas costumam dizer: enterre seus sentimentos e siga em frente, mas acho que reconhecer as emoções pode ser um alívio. Do ponto de vista social, o fato de as mulheres reconhecerem seu arrependimento pode ser um sinal de alerta para que se deixe de pressioná-las a serem mães, de vender a ideia de que a maternidade vai valer a pena para cada uma delas. Pode ser que as mulheres sejam biologicamente iguais entre si, mas somos diferentes uma das outras. Algumas querem ser mães, e outras não.
P. Você entrevistou 23 mulheres para o seu livro, uma amostra diminuta, a qual não convém extrapolar. Até que ponto você calcula que seja difundido o arrependimento maternal?
R. Nunca saberemos. Certamente não afeta a maioria das mulheres, mas é mais comum do que pensamos. Na Alemanha fizeram recentemente uma pesquisa em que 8% das participantes diziam se arrepender. Mas mesmo que fossem só as 23 mulheres que entrevistei, já valeria o debate social.
“Na Internet já me disseram de tudo. Houve quem mencionasse que sem filhos eu seria uma mulher vazia, uma velha solitária rodeada de gatos.”
P. Por que acredita que seu trabalho fez tanto barulho?
R. Porque há uma percepção de que este debate é perigoso para o Estado e para a ordem social, que estabelece que a essência das mulheres na vida é serem mães. E eu proponho que é possível não ser mãe e também ser e depois se arrepender. O problema é que não há um roteiro alternativo. As pessoas não conseguem imaginar outras opções porque a imaginação está tomada por um discurso único, segundo o qual para ser feliz é preciso ter filhos. Eu não digo que a vida sem filhos será perfeita. Pode ser uma vida difícil, mas suficientemente boa.
P. A polêmica na Alemanha [onde o livro foi lançado inicialmente] foi descomunal.
R. Sim, foi uma grande surpresa. Meu plano era publicar primeiro o livro em Israel, mas, por causa de uma entrevista que saiu na Alemanha, há um ano e meio um debate fortíssimo surgiu por lá. É curioso que tenhamos a imagem da Alemanha como um país onde as mulheres não têm por que serem mães se não quiserem, mas a realidade social é muito mais complexa. Lá fui abordada por jovens que me disseram se sentir pressionadas para serem mães. Pode ser que na Alemanha seja frequente não ter filhos, mas há uma hierarquia social entre ser mãe e não ser. A pressão não é tão evidente como em Israel, mas, cutucando um pouco, ela existe.
P. É muito difícil decidir ser mãe ou não se você não tem como saber de antemão como vai se sentir depois que seu filho nascer.
R. É verdade. É uma aposta que se pode ganhar ou perder. O problema é que a sociedade promete a todas as mulheres que ganharão sendo mães, as empurram garantindo a vitória.
P. É possível que uma determinada etapa da maternidade seja mais difícil, mas que os sentimentos mudem à medida que as crianças cresçam.
R. No meu estudo participaram avós que ainda se arrependem. Pode ser que a relação mude, mas no fundo elas sabem que não desejam tê-la. Ser mãe é uma maneira de estar no mundo; mesmo que os filhos se tornem independentes, você sempre os tem na cabeça.
P. Existe o instinto maternal?
R. Não necessariamente. Tratamos, de fato, de proteger a vida do bebê, o alimentamos, é uma criatura indefesa, mas isso não precisa ser equivalente a instinto maternal. E, em todo caso, se existisse, não seria domínio exclusivo das mulheres. Os casais gays que adotam filhos são uma prova evidente.
P. Na sua opinião, por que a maternidade é supervalorizada?
R. Parece que o parto, a amamentação e a criação têm de ser experiências maravilhosas. A maternidade é uma relação humana como qualquer outra, não o reino mítico que vendem. Quando a experiência materna não é tão maravilhosa quanto se supõe que deveria ser, muitas mulheres se sentem monstros. Reduzir as expectativas faria com que se considerassem menos culpadas. É como o amor, nem sempre é cor de rosa.
P. Frequentemente é difícil ficar satisfeita quando a divisão de tarefas em casa é desigual e as jornadas de trabalho são intermináveis. Até que ponto as condições podem contribuir para o arrependimento?
R. As condições são importantes, mas não explicam tudo. Há muitas mães que têm de tudo: tempo, dinheiro…, e mesmo assim se arrependem de serem mães. Eu mesma, ainda que tivesse as condições ideais, ainda que fosse milionária, não iria querer ter filhos, e ponto.
P. Sim, mas quando as condições são hostis, muitas jogam a toalha, renunciam às suas carreiras profissionais para se dedicar à maternidade. Com o tempo, essa decisão gera uma enorme frustração.
R. Mas é que, para mim, não é uma questão de mães versus carreira profissional. Nem todas as mulheres desejam ter uma carreira profissional. Pede-se a elas que sejam a mãe perfeita ou que sejam como um homem, uma grande profissional, mas há muitas identidades de mulheres, que não querem ser mães nem ter sucesso profissional. Desejo viver numa sociedade em que eu possa não ser mãe e ir para minha casa depois do trabalho para ficar atirando aviõezinhos de papel. Não tenho por que ser doutora nem escritora. Não quero que o importante seja o que eu faço, e sim o que eu sou.
P. As mulheres são mais preparadas para cuidar?
R. Não. Não tem nada a ver com a natureza, é uma questão política. Há mulheres incapazes de cuidar de alguém, e o contrário, mas nos venderam que é uma questão de sexo. Os homens podem cuidar muito bem, mas para a sociedade este sistema é muito útil. Nós fazemos tudo sem ganhar nada, enquanto que eles ganham dinheiro, viajam e entram e saem do cuidado dos filhos quando bem entendem.
Não se trata, insiste Donath, na defensiva, de posições hostis ou viscerais, que alguns pretendem endossar. “Olha, frequentemente me interpretam mal. Dão a impressão de que meus estudos são propaganda contra a maternidade ou as crianças, e isso é falso. Há mulheres que querem ser mães e ficam satisfeitas com isso, mas eu gostaria que tivessem mais liberdade para decidir.”
El País
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