É difícil descrever a agonia de encontrar um filho desmaiado dentro de casa. A família de Gustavo Riveiros Detter, de 13 anos, deparou com cena ainda pior na noite de sábado, dia 15 de outubro deste ano. Amarrada ao redor do pescoço do menino estava a corda que sustentava um saco de boxe no teto do quarto. Um tio de Gustavo declarou que o sobrinho jogava videogame pelo computador com outros três colegas conectados pela rede. Por perder a partida, Gustavo foi desafiado a “brincar de novo de se enforcar”, nas palavras de um dos jogadores. O menino não resistiu aos danos neurológicos e morreu horas depois na UTI do Hospital Ana Costa, em Santos, cidade litorânea de São Paulo. Foi ali no hospital, pelo médico Luiz Henrique Guerra, que a família e os amigos souberam da existência do jogo do desmaio. Guerra entregou à família, impressa em duas folhas brancas, a descrição de um passatempo macabro que se tornou “febre” entre crianças e adolescentes. O participante, em busca de uma sensação alucinógena ou de euforia, prende a respiração com as mãos ou com o auxílio de um acessório (lenço, cordão ou cinto) até desmaiar. A postagem sobre o alerta com fotos do documento, feita por uma amiga da família, viralizou no Facebook. O dado mais apavorante: só os adultos não conheciam a brincadeira.
Em uma mensagem na rede social, um primo de Gustavo, de 25 anos, escreveu ter se arriscado com a prática na adolescência e pediu aos jovens que nunca mais jogassem. Uma das enfermeiras que atenderam Gustavo surpreendeu-se ao levar o debate para casa. Os filhos pré-adolescentes tinham até visto colegas de escola perder o fôlego. O mesmo relato veio por uma professora amiga da família, cujos alunos afirmaram ter participado do jogo da asfixia. A facilidade com que se encontra o passo a passo da prática na internet deixa os jovens mais expostos a cometer um ato que pode terminar em tragédia. Em 2010 eram menos de 500 os vídeos relacionados ao jogo do desmaio no canal YouTube. No início deste ano, mais de 16 mil. Esse é um dos resultados preliminares de uma pesquisa da Universidade Federal de São Paulo e da Paris Ouest (na França). “Não imaginava que a prática era tão difundida entre as crianças do Brasil”, diz a psicóloga brasileira Juliana Guilheri, coordenadora do estudo.
Alguns países já estão tomando medidas para enfrentar o problema. Em 2002, a francesa Françoise Cochet, que perdeu um filho na brincadeira, fundou a associação Accompagner-Prévenir-Éduquer Agir Sauver (Apeas, ou Acompanhar-Prevenir-Educar Agir Salvar, em tradução livre). Graças à pressão da associação, o governo francês aprovou uma lei, em 2013, proibindo sites com busca, como YouTube e Google, de mostrar conteúdo em francês sobre as brincadeiras. Campanhas de prevenção miram pais, médicos, educadores e estudantes. Inspirada em Françoise, a americana Judy Rogg criou a instituição Eric’s Cause (A Causa do Eric, em tradução livre) depois da morte do filho. Ela mantém um mapa colaborativo com notificações de mortes e pessoas com sequela no mundo todo causadas pelas brincadeiras. Já são 1.256 casos notificados, com 11% sequelados.
No Brasil, há esforços semelhantes. O empresário do mercado imobiliário Demetrio Jereissati, parte distante da família dos políticos Jereissati, voltava de viagem com a mulher. Era 8 de junho de 2014. Uma das expectativas era entregar um arco e flecha “da largura da mala” para o filho caçula, Dimi. “Ele queria tanto que ligou para me ensinar a acomodar com segurança dentro da mala”, diz. Aos 16 anos, Dimi gostava de aventura e sonhava com a faculdade de engenharia. Mas ao chegar em casa Demetrio encontrou o filho sem vida, com um cinto em volta do pescoço. “Não sei dizer o que passa na cabeça de um pai numa situação dessas. A gente sai do ar, fica anestesiado.” Dias depois, Demetrio e a mulher conheceram Françoise pessoalmente. Em dois meses, o instituto DimiCuida nasceu. “Descobrimos que, enquanto os adultos desconhecem, os jovens praticam. A palavra desafio tem de ser um sinal de alerta”, diz.
Um dos obstáculos para dimensionar o problema é a dificuldade em identificar se o jovem foi vítima da brincadeira de asfixia ou de suicídio. É o que diz Maria de Fátima Franco dos Santos, da PUC-Campinas. Ela é especialista em autópsia forense, uma investigação sobre a vida pregressa da vítima em caso de morte duvidosa. A busca inclui entrevistas com amigos e familiares, médicos e pesquisas on-line. “Poucos no Brasil conhecem as brincadeiras perigosas e uma minoria faz autópsia psicológica. É mais fácil dizer que foi suicídio”, diz.
A hipótese de suicídio não se encaixava no perfil do filho de Jane do Carmo, de 50 anos, uma inglesa que morava em São Paulo. Depois de procurar por Thomas em todos os cômodos da casa, Jane encontrou-o sentado no vaso sanitário. Uma ponta da faixa de caratê do menino estava presa ao pescoço. A outra, no registro do banheiro. “Tentei tirar o nó, mas logo vi que não adiantaria. Imaginei que ele estava tentando fazer alguma experiência... Mas não me lembro de nada daquela noite, não quero voltar”, continua, em longas pausas. Nos dias seguintes, amigos e familiares aflitos alcançaram informações sobre as brincadeiras perigosas. Só depois Jane lembrou que Thomas tinha falado de amigos que ficavam dando socos uns no peito dos outros para provocar desmaio. Também recordou das queixas de enxaqueca e dos olhos avermelhados do filho. “Eu conversava com meu filho sobre tudo, nossa família era unida. Você não tem como proteger um filho do que desconhece. Isso precisa mudar”, diz Jane.
A psicóloga Fabiana Vasconcelos, coordenadora da área de educação do DimiCuida, descobriu que um argumento para sensibilizar os jovens é falar das sequelas do jogo. Na falta de oxigênio, funções importantes começam a parar e neurônios morrem. Em alguns casos, o praticante que sobrevive pode desenvolver cegueira, ficar paraplégico, perder o controle dos esfíncteres (para evacuar e fazer xixi). Ao ouvir essas descrições, os jovens ficam visivelmente incomodados. Foi numa dessas conversas que a atendente Denise Farias, de 27 anos, descobriu que a brincadeira que conhecera na adolescência era perigosa. Denise tinha 14 anos quando começou a praticar com amigos, dentro e fora da escola. Ela era a responsável por pressionar o tórax dos que desejavam desmaiar. Numa das ocasiões, uma prima, de 8 anos, voluntariou-se. Logo após desmaiar, a menina teve convulsões. A família nunca soube da história. “Fiquei com um medo tão grande que nunca mais brinquei”, diz. E continua: “Eu não sabia que podia ter matado alguém”.
Época
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