Meninas de 9 a 15 anos desconstroem mito do amor romântico e aprendem técnicas de autodefesa
MARSÍLEA GOMBATA 16 de março de 2016
A alma gêmea. A tampa da panela, a cara-metade. A parte firme que complementa a figura conciliadora da relação. O mito do amor romântico, uma entre as inúmeras fábulas que povoam o imaginário feminino desde a infância, tornou-se um dos alvos de uma oficina de “desprincesamento” para meninas em Iquique, no Chile.
O curso, dirigido a garotas de 9 a 15 anos, é o mais recente experimento da Oficina de Proteção dos Direitos da Infância (OPD) da cidade, apoiada pelo Serviço Nacional de Menores. O objetivo é ensinar as chilenitas a ter autossuficiência e que para ser feliz não é preciso um homem ao lado, bastam elas mesmas. Para tanto, explicam as psicólogas Lorena Cataldo e Jendery Jaldin, busca-se fortalecer valores como liberdade e exterminar preconceitos associados a gênero, a começar pela eterna procura pelo príncipe encantado, retratado há muito como sinônimo de felicidade em contos de fadas e filmes da Disney (nem mesmo as atuais versões de clássicos como Rapunzel fogem à regra, uma vez que em Enrolados (2011) ela só escapa da torre com o auxílio do fora da lei Flynn Rider).
Por que então trabalhar o desprincesamento se a ideia romanceada das relações afetivas existe há séculos? Coordenador da OPD de Iquique, Yuri Bustamante explica que, apesar de promoverem desde 2004 cursos sobre gênero para turmas mistas de meninos e meninas e há cinco anos as pequenas participarem das oficinas Promotoras de Direitos, nas quais debatem a incumbência dos afazeres domésticos, em 2014 uma urgência levou a mudanças nas prioridades. Com o terremoto de 8,2 graus em 1º de abril daquele ano, a cidade litorânea a 1.857 quilômetros ao norte de Santiago viu 464 famílias perderem suas casas e serem alojadas em cinco acampamentos de emergência, como o de El Mirador, onde moram 240 famílias com 268 crianças. “Considerando que nos acampamentos de emergência os índices de vulnerabilidade e de abuso sexual de meninas são altos, tínhamos diante de nós um contexto de grande risco”, explica Bustamante. “Eram 100 meninas entre 7 e 12 anos vivendo em El Mirador.”
A inspiração para a oficina de desprincesamento veio de um projeto dirigido a mulheres adultas na Espanha, o Faktoria Lila. O espaço de aprendizagem feminista em Bilbao ministra cursos como oSe Apaixone Pela Vida, no qual são pensadas formas de organização de vida fora do formato familiar, assim como o sexo desconectado do amor. “No caso de Iquique, entretanto, a ideia era mostrar às pequenas como estavam embebidas em estereótipos ligados a valores como delicadeza que limitam o desenvolvimento de sua identidade”, explica Cataldo. “O que fazemos é questionar esses limites e mostrar que podem ser meninas e mulheres também de outras maneiras.”
O curso de férias ocorreu em fevereiro em seis encontros, dos quais participaram 20 estudantes. Elas começaram a discutir valores inerentes ao ser feminino e passaram para uma segunda etapa, do desprincesamento propriamente dito. Nesta foram realizadas atividades como mudar letras de músicas populares – de Arroz con leche, me quiero casar para Arroz con leche, yo quiero jugar ou de Te esperaré para No te esperaré porque viene mi mamá a buscarme – e questionar o reflexo de padrões de beleza em seus corpos. Além disso, trataram do mito do amor romântico como algo que pode existir, mas não é eterno nem a única fonte de felicidade. “A ideia é entenderem que nem tudo está predeterminado e que elas não estão incompletas, não lhes falta a outra metade”, descreve a psicóloga.
As jovens tiveram ainda contato com figuras emblemáticas da América Latina, entre elas Frida Kahlo, e artistas atuais como ateen argentina Vicu Villanueva, autora da música Disney Miente, na qual afirma: a ideia de princesa é medieval, e hoje estamos no século XXI.
Na última fase as meninas aprenderam técnicas de autodefesa – em uma palestra intitulada Desprincesamento: Porque nós, meninas, podemos ser mais que “princesinhas” – e voltaram a responder à pergunta inaugural do curso: o que é ser menina? Se na primeira sessão as respostas deram conta de adjetivos como delicada, sensível, amável, tranquila e frágil, na última despontavam outras qualidades: forte, inteligente, capaz.
“O curso não pretende mudar suas identidades, mas ampliar as possibilidades do que é ser menina”, observa Bustamante, cuja equipe foi convidada a replicar a experiência em outras cidades chilenas e também em Lima, no Peru. “Não é uma oficina antiprincesas, mas de desprincesamento. Queremos livrá-las desse encarceramento.”
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