25 DE OUTUBRO DE 2016
Reportagem na Fundação Casa: como os garotos e garotas que alguns veem como “perdidos” aprendem, conscientizam-se, ingressam na universidade e querem mudar o mundo
Por Peu Araújo, na Vice
Reportagem na Fundação Casa: como os garotos e garotas que alguns veem como “perdidos” aprendem, conscientizam-se, ingressam na universidade e querem mudar o mundo
Por Peu Araújo, na Vice
Numa sala apertada, uma dúzia de jovens assiste A Lenda de Tarzan, remake da clássica história criada por Edgar Rice Burroughs. O longa metragem é ferramenta para uma aula sobre o imperialismo na África. Ao fundo, discreto, o professor Antonio Davi Costa Junior, 35 anos, tira algumas dúvidas mais pontuais. “Um filme prende mais atenção do que uma lousa. E ele ajuda os alunos a prestar atenção, a se concentrar. É importante trabalhar temas trazendo para a realidade. Falar de imperialismo na África é muito vago, mas quando você traz a discussão para falar do racismo, da exclusão no Brasil, quando começa a mostrar que aquilo interfere no nosso dia a dia aí eles começam a se interessar e prestar mais atenção”, explica o educador.
Em outra sala, um pouco maior, outros dez meninos debatem com Juliana Maria de Almeida Carvalho, de 26 anos, detalhes políticos, econômicos e sociais do período romano. Ela, questionadora, traz o pão e circo aos dias de hoje e discute com os adolescentes o entretenimento como forma de alienação. Eles se empolgam na conversa, citam situações, como o futebol e o excesso de propagandas com o qual somos bombardeados e enriquecem a discussão. “Essa dinâmica que vocês observaram em sala de aula é uma constante nas aulas de História. É muito gratificante dar aula aqui justamente por isso, por dar voz a eles e não uma voz por meio da violência, mas uma voz por meio da crítica”, comenta a professora.
As duas turmas em questão estão do lado de dentro do portão de metal azul escuro da unidade Sorocaba III da Fundação Casa, no interior do estado de São Paulo à beira da Rodovia Senador José Ermírio de Moraes, a Castelinho, no bairro de Aparecidinha.
Com 110 internos, a unidade recebe jovens com níveis escolares que vão do analfabetismo ao ensino médio quase finalizado. Para quem está no terceiro ano há um esforço da área pedagógica para o Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem — que acontece nos dias 5 e 6 de novembro. Entre esses jovens está L.C.R, de 18 anos. Privado de liberdade pela segunda vez há 14 meses, o adolescente da cidade de São Roque começa a colocar em prática o sonho antigo de ser advogado. “Não pensava em fazer faculdade fora da Fundação”, afirma.
O menor infrator fala sobre as mudanças no ensino dentro da Fundação: “Não tem nenhuma diferença da escola lá fora ou aqui dentro, a diferença é que aqui eu me dedico e lá fora eu não me dedicava”. Sobre a escolha acadêmica e profissional, ele comenta: “Eu gosto de Direito, porque acho que posso ajudar outras pessoas. Assim como o meu caso, tem mais gente que precisa ver o que querem na vida. Se eu conseguir, outras pessoas podem conseguir.”
A máxima do pedagogo e educador brasileiro Paulo Freire que diz “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor” serve como uma espécie de guia para Juliana. “Eu particularmente tento seguir uma abordagem freiriana, porque eu acredito muito nesta perspectiva pedagógica na questão do diálogo, de temas geradores, em buscar romper com suas contradições, em usar o conteúdo como um meio e não como um fim.”
Aos 17 anos, P.V.O.P está em sua quinta passagem dentro das grades. O menor de Pilar do Sul fala sobre sua escolha acadêmica: “Eu pretendo cursar Arquitetura, porque eu gosto de desenhar, senhor, e também sou bom em matemática”. Ele revela ainda como encontrou sua aptidão. “Eu descobri o que é um arquiteto recentemente e foi conversando com uma professora daqui de dentro. Ela começou a explicar como é que era [a profissão] e eu me interessei.” O adolescente revela ainda seus pontos fracos para o Enem. “Eu tenho que melhorar em química e um pouco de português, mas nas outras matérias eu me saio bem.”
A faculdade que os dois jovens almejam não parece ser, no entanto, um sonho distante e inalcançável. Eles têm um exemplo ali do lado de é possível ingressar na universidade. V.H.S, de 19 anos, sai da unidade de segunda a sexta bem cedo, troca de roupa e assiste a aulas do segundo semestre do curso de Engenharia. Acompanhado de um agente penitenciário, que fica distante o suficiente para não constranger o adolescente nem seus colegas de sala que não sabem de sua situação, o jovem acaba de passar por uma semana de provas bimestrais, mas garante que seu desempenho está satisfatório.
O interno de Sorocaba III fala sobre um trecho do seu caminho até à universidade. “Quando eu tava lá fora eu tinha abandonado a escola, voltei a estudar aqui dentro. E pra ser sincero eu não acreditava que funcionava o vestibular, nem que eu ia conseguir alguma coisa com o Enem, eu fiz por fazer só.”
V.H.S olha nos olhos, tem segurança no que diz e analisa seu status atual: “Eu tive tempo pra pensar aqui e percebi que não era o futuro que eu tava seguindo lá fora nem o que eu quero pra mim. Eu tenho um filho de 1 ano e 3 meses e eu quero cuidar dessa criança. Pra isso eu preciso ter uma profissão, preciso ter um emprego, preciso ter formas para cuidar dele”, revela.
Quieto, o jovem acadêmico entre os internos é admirado no pátio pelos outros presos. Sua saída diária não deixa de ser uma regalia, um voto de confiança da coordenação. O diretor da unidade Moisés Adriano Martins, funcionário da instituição há 15 anos fala sobre o universitário e os futuros acadêmicos. “É importante pensarmos fora da muralha. Eu preciso falar pro cara viver a vida lá fora, explicar que aqui dentro é só um período de passagem.”
Luciana Monteiro dos Santos, coordenadora pedagógica da unidade, vai além. Ela relembra que o primeiro universitário da unidade iniciou os estudos em 2011 e terminou o curso em liberdade. Fala ainda sobre a importância das salas de aula. “Eu vejo na educação várias possibilidades e dentro do contexto que eles vivem hoje eu acho que é o principal caminho para que eles consigam mudar, pra que eles consigam ter uma nova oportunidade.”
Para que os adolescentes tenham êxito em suas aspirações o trabalho de professores como Antonio e Juliana é fundamental. A disposição dos educadores é o motor de toda essa engrenagem e eles demonstram que se depender deles todo mundo ali entrará na faculdade. “Eu escolhi dar aulas nesse sistema, eu poderia estar dando aula numa outra escola, como já dei aula na prefeitura, mas eu decidi e optei trabalhar com esse pessoal realmente, porque é aonde eu vejo que tem uma necessidade maior dos benefícios da educação, tanto a parte prática, como ter um diploma para se inserir no mercado de trabalho, quanto a questão do conhecimento, da crítica, do aprendizado”, comenta Antonio. Juliana corrobora: “Eu também tô dando aula aqui, porque eu escolhi. Eu poderia tá dando aula em outras escolas, mas eu entendo a importância da educação para esses meninos. Eu vejo como a única saída correta entre as escolhas que eles têm”.
Na administração há a ficha com os crimes que cada um dos 110 internos cometeu. Homicídio, tráfico de drogas, entre outras infrações estão ali registrados em sua trajetória, mas em sala de aula, debatendo o imperialismo na África ou o período romano eles são só adolescentes com sonhos e planos. Provavelmente neste Dia do Professor, Antonio e Juliana não ganharão maçã de presente, mas irão se contentar em dar perspectiva. Antonio define: “Muitas vezes eles nunca tenham sido olhados com um olhar de que podem, de que são capazes de fazer uma faculdade. A gente, de alguma forma oferece isso”.
Outras Palavras
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