por Tory Oliveira — publicado 20/07/2017
Idealizado por promotora, Tempo de Despertar cria grupos reflexivos de homens que agrediram mulheres para combater a reincidência da violência doméstica
Em uma grande roda de conversa masculina, um homem de meia idade, que chamava a atenção por sua compleição de fisioculturista, expõe seu drama. Ele foi acusado de agressão física contra filha, que hoje está grávida, devido a um relacionamento do qual ele discordava. O namorado, segundo ele, veio buscar uma aproximação.
“Eu queria a orientação de vocês, colegas, sobre o que fazer”, pede, temendo um novo episódio de descontrole, mas, ao mesmo tempo, demonstrando revolta. Os demais o aconselham a se acalmar e a, talvez, só conversar posteriormente. “É como a gente aprendeu aqui”, resume outro.
Todos os participantes da conversa respondem na Justiça por agressão a mulheres. Enquadrados na Lei Maria da Penha (11340/06), participam de uma iniciativa que aposta no diálogo reflexivo para ressocializar os autores de violência doméstica.
Idealizada em 2010 e aplicado pela primeira vez em 2014 na Promotoria de Taboão na Serra (SP), o projeto Tempo de Despertar envolve promotores, juízes, psicólogos, assistentes sociais e voluntários na discussão sobre masculinidade e violência.
Durante quatro meses, os autores de violência contra a mulher reúnem-se a cada 15 dias para assistir a palestras com especialistas, sentam-se em rodas de discussão e, principalmente, são provocados a refletir sobre as questões de gênero, os direitos da mulher e os caminhos para desconstruir sua própria masculinidade agressiva. Além disso, fala-se sobre paternidade, direitos humanos, DST/AIDS, drogas e álcool.
Embora tenha uma das legislações mais avançadas no tema, a violência de gênero segue endêmica no Brasil. O País ocupa o quinto lugar no ranking de 83 nações em número de feminicídios, isto é, de assassinato de mulheres por menosprezo ou discriminação à sua condição de mulher.
Além disso, uma em cada cinco brasileiras já sofreu algum tipo de agressão na esfera doméstica ou familiar. Registra-se um estupro a cada 11 minutos e cinco espancamentos a cada 2. Na maior parte dos casos, as agressões acontecem dentro de casa, cometidas por um parceiro.
“Eles chegam muito bravos, resistentes, sinto até que têm raiva de mim no começo por estar coordenando o projeto e, de certa forma, obrigando-os a participar”, conta a promotora de justiça Gabriela Manssur, idealizadora do Tempo de Despertar. Os grupos reflexivos, conta ela, diminuíram de 65% para 2% a taxa de reincidência de violência de gênero.
Bem sucedido em evitar a repetição do crime, o projeto virou lei em Taboão da Serra (SP), onde nasceu, e foi replicado em São Paulo. A reportagem de CartaCapital acompanhou, em julho, dois desses encontros.
A iniciativa nasceu das inquietações de Gabriela diante de uma violência contra a mulher que parecia não diminuir. “Embora eu tenha trabalhado muito com as mulheres, percebia que os casos de violência não diminuíam. Há quatro anos, mudei a estratégia e foquei na responsabilização e ressocialização do autor da violência”, explica ela, que é formada em Direito pela PUC-SP e membro do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica (GEVID), do Ministério Público Estadual de São Paulo.
A luta contra a violência de gênero ultrapassa o trabalho com a Justiça. Gabriela é figura constante em programas de televisão e também mantém o site Justiça de Saia, onde compartilha notícias sobre direitos da mulher e escreve sobre o Tempo de Despertar .
Os participantes do Tempo de Despertar são selecionados por Gabriela e uma equipe multidisciplinar em meio aos casos que chegam até suas mãos. Muitos ainda estão sob investigação, outros cumprem medidas protetivas e aguardam um desfecho para o episódio que os levou até lá. São vetados os que praticaram crimes sexuais ou contra a vida, dependentes químicos e aqueles com problemas psiquiátricos.
A presença é obrigatória e pode significar um atenuante na sentença final. Ao menos 120 já passaram pelo projeto desde 2014. No grupo acompanhado pela reportagem, dos 28 intimados, 17 compareceram a todos os encontros.
“Quero deixar claro que o Tempo de Despertar, de forma alguma representa um perdão judicial ao crime cometido. É um complemento, um momento de reflexão e responsabilização dos fatos cometidos”, ressalta Gabriela.
Embora seja prevista pela Lei Maria da Penha, a criação de centros de educação e reabilitação para autores de violência ainda é pontual no Brasil. O pioneiro é o "Grupo Reflexivo de Homens: Por uma Atitude de Paz", criado em 2012 no Rio Grande do Norte.
Criado pela promotora Erica Canuto, do Núcleo de Apoio à Mulher Vítima de Violência Doméstica (NAMVID) do Ministério Público do Rio Grande do Norte, o projeto também comemora a taxa zero de reincidência no crime. Há também iniciativas semelhantes no Mato Grosso e em Brasília.
As experiências chegaram até o Senado Federal, que aprovou, em abril de 2016, o estabelecimento da frequência em grupos reflexivos como parte das medidas protetivas de urgência que podem ser adotadas pelos juízes nos casos de violência doméstica. Com o agravamento da crise política, porém, o projeto está parado na Câmara dos Deputados.
Mesmo com o sucesso dos resultados apresentados pelo projeto Tempo de Despertar, em São Paulo, ele é frequentemente alvo de críticas, em especial, quando é divulgado na imprensa.
A principal questão é, diante da gravidade da violenta situação enfrentada pelas brasileiras e dos desafios intrínsecos a esse quadro, cabe um olhar para os homens?
“A verba, os esforços e as equipes técnicas devem ser destinadas às mulheres, já que são as vítimas. No entanto, quem comete essa violência é o homem. A protagonista dos direitos da mulher continua sendo a mulher. Mas o protagonista da violência é o homem”, defende Gabriela Manssur, para quem a a punição prevista pela Lei Maria da Penha, isoladamente, não basta para cessar a violência e proteger as mulheres.
Machismo e pobreza de repertório
O Fórum Regional onde ocorrem os encontros fica no bairro Penha de França, em São Paulo, espremido em uma movimentada rua com lojas populares e intenso trânsito.
Nos dias dos encontros, marcados para as 9h, os homens chegam cedo e discretamente se sentam nos bancos de madeira do lado de fora. Conversando em voz baixa, uns reclamam do frio do inverno paulistano, outros falam da violência urbana e criticam os políticos. Um outro, deixa escapar: “O projeto é bom, mas perder um dia de trabalho para isso...”, suspira, reticente.
Do outro lado da rua, ironicamente, uma loja de roupas femininas carrega o nome “Maria da Penha”, uma alusão ao bairro em que está instalada, mas uma lembrança do motivo que os levou até lá.
Já no espaço reservado ao projeto, em frente aos homens sentados em cadeiras azuis, a promotora Gabriela Mansssur é firme em sua mensagem final:
“Daqui pra frente, está na mão de vocês. Espero que consigam transformar o comportamento. É difícil mudar, mas a mudança está dentro de nós. Se você não muda, perde muita coisa, inclusive pessoas queridas”, diz.
Para o psicólogo e filósofo Sérgio Barbosa, coordenador do grupo reflexivo no Tempo de Despertar, o perfil dos agressores é heterogêneo. Nos encontros, vê-se empresários, autônomos, senhores de cabelos brancos, jovens de dreadlock, de diferentes origens e classes sociais. A única coisa em comum, segundo Barbosa, é a “pobreza de repertório”.
“São homens inseguros, frustrados por não saberem lidar com conflitos e não entenderem que a mulher, na sociedade atual, tem um papel distinto daquele projetado como uma mulher ideal”, afirma ele, que já trabalhava com grupos reflexivos e masculinidades desde o final da década de 1990.
“Eu era um cara nervoso, agitado, mal minha mulher falava eu já gritava, não tinha diálogo”, conta o microempreendedor J., de 46 anos, enquadrado na Lei Maria da Penha por agressões verbais contra a ex-mulher. “Eu era agressivo, fazia ela de prisioneira, levava e buscava no trabalho e não deixava ela ter amigos”. Após uma pequena pausa, admite: “Isso era um machismo meu”.
Nos primeiros encontros, relata Barbosa, é comum a negação e a culpabilização da vítima. “Chegam reativos, com sangue nos olhos. Aos poucos, vamos desconstruindo essa armadura e desfazendo o muro que separa a fantasia da realidade”, explica o psicólogo, para quem até a escolha de palavras faz diferença.
“Quando você fala homem agressor, parece que ele é agressor 24 horas por dia. Usando ‘homem autor de violência’ damos a possibilidade de desconstruir o estereótipo”, afirma.
O caminhoneiro F., de 55 anos, também agrediu verbalmente a companheira por 20 anos, com quem tinha dois filhos. “Eu xinguei e ofendi muito ela. Nós brigamos, ela queria separar. Foi uma explosão, por ciúmes também”, conta ele. “Infelizmente aconteceu, mas o curso é muito bom. A gente reflete melhor e vai pensar duas vezes antes de agredir, não só ela como qualquer outra mulher ou pessoa”, reitera.
No encontro final, todos os participantes fazem um relato do que aprenderam no grupo e, na maioria das falas, repetem-se os elogios à iniciativa e as promessas de mudança.
“Sei que muito da fala de 50% deles é para ganhar o certificado e receber um parecer positivo. Mas a outra metade, acredito que realmente tiveram um momento de reflexão, de abrir a cabeça e o coração para os direitos da mulher”, reflete Gabriela. “Ao menos, sabem agora que cometeram um crime e que precisam mudar, do contrário serão processados novamente”.
A promotora diz que o seu trabalho é para as mulheres, e não para os homens, mas reconhece que os últimos não estão preparados para lidar com os novos papéis de gênero. “Nada justifica a violência, mas é preciso que eles recebam uma nova educação para lidar com os direitos da mulher. Não podemos falar mais apenas para elas, é com os homens que precisamos falar”, conclui Gabriela.
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