Enquanto as mulheres com filhos pequenos lutam para obter a prisão domiciliar, direito previsto por lei, presos da Lava Jato gozam desse benefício sem amparo da legislação penal
A pequena casa de dois cômodos onde moram Vitória*, seu bebê e sua mãe, Laura, no Jardim Guarani, na periferia da zona norte de São Paulo, em nada se parece com as mansões luxuosas onde vivem em prisão domiciliar alguns réus delatores da operação Lava Jato – uma até com vista para o mar. Em contraste com as áreas verdes, piscinas e academias, como mostrou em abril deste ano uma reportagem do Fantástico sobre os presos domiciliares da Lava Jato, Vitória nos recebe para um café em uma pequena cozinha que também faz as vezes de sala. Ao fundo, o quarto com um beliche onde os três dormem e guardam seus pertences frequentemente é inundado pela água que transborda do banheiro, conta Vitória enquanto amamenta o filho. É algo a mais para resolver na lista da família, que tenta sem sucesso uma vaga para Lucas na creche do bairro e tem como renda apenas o dinheiro que dona Laura ganha trabalhando com limpeza em três empregos diferentes.
Na Venezuela, a mãe de Vitória era professora primária, mas sem fluência no português tudo aqui é mais difícil. Quando soube da prisão da filha grávida, dona Laura deixou a família e veio correndo ao auxílio dos dois. Não descansou até conseguir alugar essa casa e por a documentação da filha em ordem para, junto ao Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), que trabalha com mulheres estrangeiras presas, tentar o habeas corpus para a prisão domiciliar. Vitória foi presa com cocaína no aeroporto de Guarulhos e levada para a Penitenciária Feminina da Capital (PFC), onde descobriu a gravidez e permaneceu por pouco mais de um ano, até que seu filho completasse 6 meses. Apesar da vida difícil, ela se sente aliviada por ter deixado o presídio e se sente “privilegiada” entre as tantas mães que conheceu no cárcere que continuam sem previsão de mudança de rumo. “Quando saí, deixei tudo que tinha para as mães com os bebês de lá. Porque é muito difícil, tem gente que não tem família, não tem nada. Eu mesma lavava roupa para outras mulheres para conseguir maços de cigarro que trocava por sabonete e fraldas para o Lucas até minha mãe chegar”, lembra.
Na verdade, Vitória poderia ter saído mais cedo e evitado as três quedas que teve, já em trabalho de parto, no banheiro da penitenciária, ou o tempo que o filho passou na incubadora por causa de sofrimento fetal decorrente da demora para ser levada ao hospital. O artigo 318 do Código de Processo Penal determina que o juiz pode substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando, entre outras razões, o agente for “gestante”, “imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência” e, a partir de 2016, com o Marco Legal da Primeira Infância, a Lei 13.257, “mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos”. O Brasil é signatário da Convenção de Bangcoc que determina, entre outras condições para a mulher mãe encarcerada, que ela possa responder ao processo em liberdade. Mas essa não é nem de longe a regra, como aponta a pesquisa “Quando a casa é a prisão: uma análise de decisões de prisão domiciliar de grávidas e mães após a Lei 12.403/2011”, de Ana Gabriela Braga e Naila Ingrid Chaves Franklin. Elas analisaram sentenças em casos de pedidos de prisão domiciliar de 2011 a 2013, enfocando mulheres pobres, negras e jovens, com base nos dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). A conclusão do trabalho é que as prisões domiciliares são concedidas às mães por múltiplos fatores, mas que “a discriminação negativa incide sobre o gênero feminino, fazendo com que as figuras de ‘mãe’ e ‘criminosa’ sejam socialmente irreconciliáveis”.
“A prisão domiciliar é um gênero que comporta duas espécies. Uma está prevista no Código de Processo Penal como medida cautelar, quando a pessoa ainda não foi julgada. De outro lado, você tem a prisão domiciliar no âmbito da Lei de Execução Penal, prisão pena. Uma serve para garantir o regular curso do processo, a ordem pública e aquelas condições para a prisão preventiva. E a prisão domiciliar no âmbito da execução penal, quando a pessoa já foi condenada, é um modo de cumprimento da pena”, explica o advogado criminalista Lucas Sada. “Os requisitos são mais ou menos parecidos nos dois casos: para pessoas maiores de 80 anos, pessoas muito debilitadas por doença grave, pessoas imprescindíveis ao cuidado de menores de 6 anos ou com deficiência e gestantes, e uma regra nova que é para mulher com filhos com até 12 anos e para o homem caso seja o único responsável pelo cuidado desse filho. O que está na LEP [Lei de Execuções Penais] fala em condenados maiores de 70 anos com doença grave, com filho menor ou deficiente físico, mental ou gestantes”, acrescenta.
Ainda assim a prisão domiciliar, que tem sido aplicada frequentemente aos delatores da Lava Jato, encontra forte resistência do Judiciário quando os réus são “pessoas comuns”. Segundo Patrick Cacicedo, defensor público do Núcleo Especializado de Situação Carcerária, de 70% a 80% das mulheres em prisão preventiva hoje em São Paulo deveriam estar em casa: “É muito difícil conseguir. Os juízes arrumam subterfúgios interpretativos para manter a prisão, e a grande maioria das mulheres está presa por tráfico de drogas, um tráfico muito pequeno, sem violência e sem armas. Nos casos de cumprimento de pena, então, como os aplicados na Lava Jato, eu pessoalmente não me lembro de ver um caso em São Paulo”.
A Agência Pública entrou em contato com o Ministério da Justiça, com o Depen, com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e com cada estado do país para obter – inclusive mediante a Lei de Acesso à Informação – o número atualizado de pessoas em prisão domiciliar como medida cautelar e como pena, mas novamente deparou com a falta de dados sobre o sistema prisional brasileiro. De todos os estados, apenas o Distrito Federal, Santa Catarina e o Rio Grande do Sul responderam, e os órgãos federais informaram que não há esse número consolidado. O dado mais atualizado do CNJ é de 2014, quando havia no país uma população carcerária de 711.463 pessoas, 147.937 mil em prisão domiciliar, pouco mais de 20%. Não há na pesquisa recorte de gênero ou dados sobre se essas pessoas estão aguardando o julgamento ou cumprindo pena. É importante lembrar que já na época, com esse número total, o Brasil ocupava o terceiro lugar no ranking mundial de países com a maior população carcerária e que o percentual de presos provisórios (ainda não julgados) nas prisões era de mais de 40% e o déficit de vagas, 206.307.
Privilegiados
Na planilha de processos da Lava Jato atualizada em 4 de julho, fornecida à Pública pela assessoria de imprensa da Justiça Federal do Paraná, constam apenas sete pessoas em prisão domiciliar, 17 com tornozeleira eletrônica e duas com tornozeleira em prisão domiciliar (veja box com os nomes no fim da reportagem). Mas esses também são números confusos já que os processos gerados pela operação se desdobraram em centenas de outros, que mudam a cada minuto. O empresário Eike Batista, por exemplo, que aguarda julgamento em prisão domiciliar desde abril deste ano, não consta dessa lista porque é investigado da operação Eficiência, um desdobramento da Calicute, braço da Lava Jato que investiga crimes de lavagem de dinheiro e prendeu também o ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral. Além disso, a prisão domiciliar e o uso de tornozeleira eletrônica são medidas diferentes, como explica Sada: “No Código de Processo Penal, existe uma lista de medidas cautelares não prisionais, que o juiz pode tomar durante a investigação, que tem como objetivo resguardar o processo de influências externas que prejudiquem seu curso normal. Uma delas é monitoramento eletrônico.
A pessoa que responde ao processo pode ser apenas monitorada eletronicamente para se saber aonde ela vai, para garantir que não se aproxime de alguém ou de algum lugar. Ela pode ser aplicada isoladamente. Ou pode ser combinada com outra medida, como, por exemplo, a prisão domiciliar. Mas a prisão domiciliar é outra medida. O fato de o sujeito estar com tornozeleira não quer dizer necessariamente que ele está em prisão domiciliar, e vice-versa”. Na domiciliar, as pessoas podem ainda ter autorização para trabalhar fora e voltar para casa à noite ou não, precisam ficar o tempo todo em casa. Podem receber visitas-surpresa da fiscalização e devem comparecer diante do juiz periodicamente. De qualquer forma, devem arcar com os próprios custos e se ajustar às determinações do juiz, o que, como explica Michele Rosa, servidora do Núcleo Especializado de Situação Carcerária responsável pelo programa Mães em Cárcere, da Defensoria Pública de São Paulo, é uma questão complicada para as poucas mulheres que conseguem a medida e que são mães solteiras sem rede de apoio, sem reserva financeira e sem nenhuma alternativa a não ser trabalhar pelo sustento da família. Ela diz que recentemente, para autorizar uma moça em prisão domiciliar com três filhos a trabalhar, o juiz determinou que precisaria de uma carta de intenções da futura empresa. Isso para que ela participasse do processo seletivo. “Que empresa vai fazer algo assim? Se já é difícil para elas trabalharem, ainda mais respondendo a processo, quem dirá com tantas exigências”, questiona Michele. “O juiz entende a domiciliar como a dada para a Adriana Ancelmo [esposa do ex-governador do Rio Sérgio Cabral, que cumpre prisão domiciliar em seu apartamento, no Leblon, sem poder sair, usar a internet ou o telefone]. Não enxerga que as mulheres precisam trabalhar, levar o filho na escola, levar para tomar vacina, no médico. Eles acham que as mulheres têm uma rede de apoio que elas não têm. Geralmente são mulheres sozinhas responsáveis pelo sustento e cuidado dos filhos. Também não conseguem vaga em creche porque quem tem que pleitear é o responsável direto pela criança.”
Michele compara o caso de Adriana – que tem infraestrutura e condições financeiras abastadas – com as possibilidades bem inferiores que tem a maioria das mulheres presas, mas a esposa de Cabral é um dos raros casos de investigados da Lava Jato que de fato se enquadram na lei por ter filho menor de 12 anos, ao contrário de outros réus que obtiveram a cautelar apenas como prêmio em acordos de delação, como diz Sada: “O regime domiciliar, na Lei de Execuções Penais, fala em situações específicas. A não ser que os delatores tenham mais de 70 anos, tenham alguma doença grave etc., a lei não se aplica a eles. De igual modo, a Lei 12.850, que regulamenta a colaboração premiada, não prevê a possibilidade de o juiz aplicar essa pena em regime inicial domiciliar. Então isso não existe. O juiz tem algumas possibilidades a partir da delação, e o artigo 4o fala dos prêmios que os delatores podem receber. Eles podem ter o perdão judicial, ter a pena reduzida em até dois terços ou substituir essa pena por uma pena restritiva de direitos, entre outras coisas. A prisão domiciliar não está aqui. Portanto sua aplicação é claramente ilegal. Essa é uma das ilegalidades da Lava Jato. O primeiro acordo de delação, que é o do Paulo Roberto Costa, prevê uma imunidade material de investigação para os familiares dele. Isso não está previsto em lugar nenhum! E o Ministério Público Federal tem admitido esse comportamento criativo nas delações: a possibilidade de o delator receber uma parte do dinheiro que ele vai ajudar a devolver, o cumprimento de pena antes homologação do acordo, como no caso da Odebrecht. A prisão domiciliar como cumprimento de pena, cinco ou dez anos em regime domiciliar, e depois progredindo para um semiaberto, isso não tem previsão legal nenhuma. Essa é a grande crítica que se faz às delações hoje no Brasil”.
Sada compara os acordos a casos pequenos de tráfico de droga, que são o grosso das prisões no país e que, com roubo e furto, são as acusações que mais encarceram, com quase 80% das condenações. “Eu trabalho com o caso do Rafael Braga [jovem catador e morador de rua que foi preso durante uma manifestação em 2013, acusado de portar material explosivo porque estava com uma garrafa de Pinho Sol e outra de desinfetante, que causou grande mobilização das organizações de direitos humanos e que logo após ser finalmente solto, foi novamente preso pela PM que alegou encontrar com ele 0,6g de maconha, 9,3g de cocaína] e com assistência jurídica a outros presos provisórios acusados de tráfico ou associação ao tráfico. São acusações muito menos graves, com muito menos poder para influenciar ou interferir no curso do processo ou possibilidade de fugir para outro país, mas ainda assim eles permanecem presos durante todo o tempo. No caso do Rafael, o crime é sem violência ou grave ameaça, que é o tráfico. Ele estava com quantidade inferior a 1 grama de maconha e inferior a 10 gramas de cocaína e um foguete. Na verdade, foi um flagrante forjado, mas, supondo que a acusação fosse verdadeira [Ele está preso desde 2013 e recentemente foi condenado a mais de 11 anos de prisão], se a gente pensar que tem pessoas acusadas de desviar milhões, bilhões de reais, e causarem prejuízo desproporcional, pessoas que têm poder para intimidar outras ou obstruir o processo, fica muito desigual.”
Ele lembra que o último habeas corpus pedido para Rafael falava justamente nesse tratamento diferenciado, tendo como paradigma o caso de José Dirceu. “Porque o Dirceu também é uma pessoa que já tinha uma condenação criminal, assim como o Rafael, e o argumento é mais ou menos o mesmo: essa pessoa voltou a praticar crimes, então ela precisa ficar presa durante o processo para que se interrompa essa ação criminal, porque é perigosa. E o Dirceu foi condenado em primeira instância assim como o Rafael. O Dirceu conseguiu sair com tornozeleira eletrônica com a condição de não deixar sua cidade. Então, se a pessoa de um grupo econômico ou político poderoso, acusada de causar dano social ou ao erário enorme, pode aguardar um recurso em prisão domiciliar, por que o Rafael ou outros milhares de pessoas não têm também esse direito?”, questiona.
Neste vídeo do site Justificando, o advogado Igor Leone apresenta uma hipótese: “Quando você é o homem branco empresário e rico, você delata todo mundo, é elogiado na imprensa e cumpre penas diferenciadas. Isso porque a delação é para o homem branco. Ela cumpre o principal requisito que o sistema penal exige, que é a manutenção dos privilégios. A delação está aí para isso: reforçar a missão histórica do encarceramento, que é fazer a regulação da miséria”.
*O nome foi trocado a pedido da entrevistada
Colaborou Guilherme Peters
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