Daniela Valle
Juíza do Trabalho
26 de julho de 2017
Quem é a pessoa que tem coragem de cortar e depois costurar a vagina de uma mulher sem dar anestesia? Quem é capaz de simular uma emergência ou forjar exames para obrigar um parto por cesárea contra a vontade da gestante? Quem nega atendimento digno a uma adolescente por considerá-la “negra, tatuada e drogada” [1]? Enfim, quem são os profissionais que praticam a violência obstétrica?
Considerando que o parto virou um evento hospitalar, para 98,4% da população brasileira o nascimento acontece dentro de clínicas e hospitais, lugares que nos últimos anos passaram a ter “clientes” ao invés de pacientes [2], evidenciando que a saúde, cada vez mais, deixa de ser um direito universal e um dever do Estado, para se tornar um produto [3], com foco no lucro do empreendimento e não no bem-estar.
Como produto, mercadoria, o serviço de saúde passa a seguir a lógica da eficiência econômica. Esse caráter financeiro se revela, entre outros aspectos, na substituição dos médicos por administradores de empresa, na gestão das unidades de saúde.
Seguindo a lógica do mercado, esses administradores terceirizam todas as atividades possíveis, cumprem as rotinas com o menor número de trabalhadores que conseguir dar conta do recado, estabelecem e cobram metas, enfim, suam a camisa para enxugar gastos e garantir a lucratividade da “sua” empresa.
Essas clínicas e hospitais são empregadores de uma enorme massa de trabalhadoras, estimando-se que cerca de 80% dos profissionais de cuidado à saúde (enfermeiras, auxiliares e técnicas de enfermagem) são mulheres. Nota-se que essa maioria de mulheres não é por acaso [5]:
“É a noção de cuidado (de saúde à família), enquanto ação concebida como feminina e produto das “qualidades naturais” das mulheres, que fornece atributos e coerência ao seu exercício no espaço formal das relações de trabalho na saúde. (…) O que queremos mostrar é que o fato de se associar (funcionalmente) essas práticas no campo do trabalho, sobretudo hospitalar, às “qualidades” (e não qualificação) femininas condena essas ações ao status de tarefas intermediárias, destituídas de valor científico no processo terapêutico.”
Para a prestação do serviço de saúde são necessárias tanto as práticas do tratar, relacionadas à atuação médica, identificadas como masculinas, científicas, portadoras de valores de verdadeira qualificação profissional, quanto as práticas do cuidar, relacionadas às atividades de enfermagem e nutrição, associadas às qualidades femininas e empíricas, divisão que justifica a desvalorização social e econômica das atividades do cuidar, onde se concentra a mão-de-obra feminina.
Apropriando-se dessas concepções e a qualificação (competências e valores), o empregador define as práticas que sustentam a rigorosa hierarquia e os baixos níveis salariais aos que respondem pelas atividades do cuidar. Na área da saúde só resta a esses profissionais cumprir o trabalho massivo, rotineiro, taylorista, que exige sua atenção constante e intensiva durante a toda a jornada de trabalho, sem qualquer espaço para uma reflexão sobre as rígidas e pesadas rotinas e onde dificilmente os empregadores investem na formação continuada e/ou reciclagem dessas trabalhadoras.
Essas profissionais cumprem, em regra, plantões de 12 horas e quase nunca descansam nas 36 horas subsequentes, como pressupõe a escala, pois precisam de outra fonte de renda para complementar os baixos salários e, por isso, costumam manter dois postos de trabalho ou mais. Portanto, a rotina dessas trabalhadoras é “dobrar” o plantão, cumprindo jornadas diárias de 12 horas, praticamente sem folga, além de assumirem a maior parte dos trabalhos domésticos, lembrando que as mulheres gastam nessas atividades 25,3 horas por semana, contra as 10,9 horas gastas pelos homens nos cuidados com os filhos e o lar.
Temos, assim, uma enorme massa de mulheres mal remuneradas, desvalorizadas pela atividade que exercem, exaustas de tanto trabalhar dentro e fora de casa, submetidas a rotinas intensas de trabalho, onde a última coisa que podem fazer é refletir sobre a realidade onde estão inseridas.
Essas trabalhadoras, responsáveis por receber a gestante para internação e dela cuidar até a alta hospitalar, não têm tempo para o afeto, para ouvir a paciente, olhar individualmente para cada mulher que ali chega para se tornar mãe, pois o importante é entregar o produto tal qual foi vendido: separar direitinho quem é atendido pelo SUS e por convênio particular, no último caso verificar qual o convênio e a validade, separar o material usado por cada convênio (sem errar!) além de preencher corretamente formulários e relatórios, cumprindo à risca as rotinas pré-determinadas, sem sentir, sem pensar, sem olhar ao redor.
Mesmo os médicos, apesar de melhor remunerados, em comparação aos profissionais de apoio, também vivem o extenuante acúmulo de diversos vínculos de trabalho, para garantir um patamar salarial razoável. Além disso, estão cada vez mais doutrinados por conhecimentos extraídos de pesquisas financiadas por grandes laboratórios e empresas médicas, que pautam e direcionam essas pesquisas de acordo com seus interesses econômicos e não em prol do bem-estar humano, o que tem gerado uma formação e uma rotina médica onde igualmente resta pouco espaço para um olhar mais crítico e humano em relação às rotinas hospitalares, especialmente as praticadas no parto.
É nesse ambiente hospitalar que encontramos mulheres submetidas aos maus tratos, aos cotidianos e repetidos casos de violência obstétrica que, não raro, são praticados por outras mulheres.
Curiosamente, o fato de a mão-de-obra ser predominantemente feminina não impede a rotina de desrespeito às parturientes. Qual a razão da passividade dessas trabalhadoras diante da violência obstétrica?
A razão é que, em regra, não há espaço para sororidade nas maternidades hospitalares; ao contrário, o parto hospitalar rompeu os vínculos de solidariedade feminina que existiam quando o nascimento era um evento doméstico [10], guiado por parteiras e comadres. Pior do que isso, a lógica mercantilista aliada às rígidas e incontestáveis verdades científicas praticadas nos hospitais, a estrutura extremamente hierarquizada, geram um ambiente onde as condições do pensamento se esvaziam, as rotinas de trabalho estimulam uma ação mecânica, onde não se pensa, apenas se executam ordens.
Nesse contexto, atos contra a integridade física e moral da parturiente são praticados muitas vezes sem que o profissional da saúde se dê conta da violação que ali ocorre, das consequências traumáticas para a mãe e bebê, pois as práticas são naturalizadas, dentro da lógica do mercado e sem e se refletir sobre o seu impacto humano ou mesmo se seriam as melhores condutas para a saúde física e psíquica da paciente.
Nasce, assim, uma categoria profissional incapaz de fazer julgamentos morais, esvaziada de reflexão, que aceita e cumpre rotinas e ordens sem questionar, como fruto da massificação, da imposição de rígida hierarquia e de procedimentos padronizados, onde não há espaço para reflexão sobre o sentido daquele trabalho.
O mais chocante é perceber que os atos de violência obstétrica são praticados por funcionários comuns, pessoas dedicadas ao trabalho, cumpridoras de suas obrigações, a tal ponto que repetem, sem refletir, rotinas médicas impregnadas de preconceito e machismo, que pressupõe um corpo feminino “doente” e que, por isso mesmo, só funcionará com as intervenções e procedimentos por eles ditados.
Ou seja, não é um monstro perverso quem pratica os atos classificados como violência obstétrica, a exemplo da episiotomia como rotina e sem autorização [7], o “ponto do marido” [8] e a imposição de parto por cesárea [9], por exemplo, são pessoas “assim como você e o seu vizinho”, enfim, uma pessoa comum, como você e eu.
Trabalhadoras desvalorizadas e oprimidas pela rotina de trabalho atendem mulheres igualmente desvalorizadas na atividade reprodutiva.
É nas maternidades hospitalares que as esferas produtiva e reprodutiva se interpenetram, se entrecruzam, na definição da situação do trabalho feminino, visto para além do mercado de trabalho.
Com isso não se quer retirar a eventual responsabilidade individual de algum profissional da área de saúde nos casos concretos, a intenção é tentar enxergar a engrenagem que torna tão comuns e corriqueiras os atos de violência praticados no momento em que a mulher se torna mãe, questão que está inserida no trabalho reprodutivo do ser humano, cujo ônus é essencialmente assumido pelas mulheres [11]:
“O capitalismo oculta o nexo econômico entre o trabalho doméstico e o chamado trabalho reprodutivo (…) [o que] implica toda uma utilização da divisão sexual do trabalho das mulheres como aquelas que vão sustentar nos seus ombros boa parte desse trabalho de reprodução da vida. (…) O que as economistas feministas defendem é o seguinte: no centro do modelo econômico deve estar o bem-estar, isso significa que o trabalho reprodutivo e de cuidados tem que ser considerados como uma prioridade”.
Apenas com essa mudança de foco é que se enfrentará por inteiro a questão da violência obstétrica, colocar o bem-estar no centro do serviço de saúde ao invés do simples lucro mercadológico.
A precarização proposta pela recente alteração das Leis Trabalhistas, que inclusive institui de vez a escala 12×36, tende a agravar o quadro ora constatado, pois ao permitir condições mais precárias do que as hoje existentes, inclusive liberando o trabalho de mulheres grávidas em atividades insalubres, tende a intensificar o quadro de exploração das profissionais da área de saúde e alienação delas em relação ao resultado do trabalho, o que torna ainda mais propício o ambiente para perpetuação das práticas de violência obstétrica.
Se quisermos realmente enfrentar a violência obstétrica temos que olhar, urgentemente, para a realidade de trabalho das profissionais e começar a entender que as regras contidas na CLT regulam relações que impactam diretamente na vida de todos e não apenas dos trabalhadores que perdem proteções e garantias legais.
Daniela Valle da Rocha Müller é membra da AJD (Associação Juízes para a Democracia). Foi advogada na área de Direitos Humanos e também trabalhista, já foi Juíza do Trabalho na 10ª Região e desde 2001 é Juíza do Trabalho da 01ª Região, Rio de Janeiro. Atualmente é diretora de Direitos Humanos da AMATRA-1, vegetariana, mas não todos os dias, mãe, cozinheira e entusiasta da produção orgânica, vai se virando no meio da luta de classes e sonha com a eficácia plena da legislação social.
[1] – “Tinha que ser! Olha aí, pobre, preta, tatuada e drogada! Isso não é eclampsia, é droga!”, fala atribuída ao anestesista que foi chamado durante a madrugada (plantão de sobreaviso) para atender a uma cesárea de emergência de uma gestante adolescente com eclâmpsia, cujo parceiro estava preso por tráfico de drogas. Maternidade Pró-Matre, Vitória-ES (Fragmentos do dossiê elaborado pela Rede Parto do Princípio para a CPMI da Violência Contra as Mulheres).
[2] – relato de profissionais da área de saúde – Seminário sobre Violência Obstétrica realizado em 14.07.2017 na sede da FEESSERS.
[3] – Frei Betto
[4] – A violência obstétrica caracteriza-se pela apropriação do corpo e processos reprodutivos das mulheres pelos profissionais de saúde, através do tratamento desumanizado, abuso de medicalização e patologização dos processos naturais, causando a perda de autonomia e a capacidade de decidir sobre seus corpos e sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres (“Violência obstétrica e o viés racial” – Emanuelle Goes – Blogueira, Enfermeira, Coordenadora do Programa de Saúde das Mulheres Negras – Odara Instituto da Mulher Negra, Doutoranda em Saúde Pública (ISC/UFBA). Email: emanuellegoes@gmail.com)
[5] – “A feminização persistente na qualificação profissional da enfermagem brasileira” Marta Júlia Marques Lopes e Sandra Maria Cezar Leal – cadernos pagu (24), janeiro-junho de 2005, pp.105-125.
[7] – episiotomia é uma cirurgia realizada na vulva, cortando a entrada da vagina. Com uma tesoura ou bisturi, algumas vezes sem anestesia, e que afeta a estrutura do períneo, como músculos e tendões, responsáveis pela sustentação de alguns órgãos, pela continência urinária e fecal e ainda tem ligações importantes com o clitóris.
[8] – “Num determinado momento da sutura, ele disse que ia dar dois pontos que iam doer um pouco mais, depois comentou que era o “ponto do marido”. Perguntei a ele o que era isso e ele disse que era um ponto que era dado para que “as coisas voltassem a ser parecidas com o que era antes” e que, se eles não fizessem isso, depois o marido voltava para reclamar. Como a referência ao marido é uma constante, perguntamos se eles já viram um marido reclamar, ao que responderam que não, uma vez que esse ponto era sempre feito. (DINIZ)
“E o médico, depois de ter cortado a minha vagina, e depois do bebê ter nascido, ele foi me costurar. E disse: ‘Pode ficar tranquila que vou costurar a senhora para ficar igual a uma mocinha!’. Agora sinto dores insuportáveis para ter relação sexual (relatos extraídos do Dossiê elaborado pela Rede Parto do Princípio para a CPMI da Violência Contra as Mulheres, 2012)
[9] – “Conforme revelou a Folha ontem, a mulher, grávida de 42 semanas, foi levada por policiais ao hospital para passar pela cirurgia depois de a Justiça acatar um pedido do hospital e da Promotoria que alegavam “risco iminente de morte” da mãe e da criança. (…) “Quis ouvir uma segunda opinião de fora do hospital, mas negaram”, disse. “Não fui irresponsável. Sabia aquilo que era melhor para nós.” (…) Mãe também de um menino de 7 anos e de uma menina de 2, ela afirmou que se sentiu “enganada” por médicos nas gestações anteriores, quando passou por cesáreas”. Folha de São Paulo 03/04/2014
[10] – http://justificando.cartacapital.com.br/2016/08/31/meu-corpo-suas-regras/ ehttp://justificando.cartacapital.com.br/2016/10/20/quando-o-parto-nao-e-exatamente-do-jeito-que-voce-imagina/
[11] Nalu Faria (revista Cult nº224, ano 20, junho 2017)
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