(Débora Prado/Agência Patrícia Galvão, 25/07/2017) Reconhecer as vozes das mulheres negras como centro do diálogo sobre uma nova sociedade e um novo Estado é fundamental e urgente.
“Elas não estão dizendo alguma coisa que vá trazer seus filhos assassinados de volta, elas já os perderam e perderam para sempre. O que elas estão trazendo é uma proposta de como o Estado pode ser diferente, como a polícia pode ser diferente, como a sociedade pode ser diferente. Ou seja, é uma proposta extremamente generosa”. A explicação é da ativista antirracista Jurema Werneck, que na sua trajetória de vida e luta acumula décadas de experiência e respeitabilidade, como integrante da ONG Criola, médica, doutora em Comunicação e Cultura e atualmente diretora da Anistia Internacional no Brasil.
A voz de Jurema tem repetido, em ações, falas, textos e formulações eloquentes, aquilo que o racismo invisibiliza: são as vozes das mesmas mulheres negras que estão no centro da resistência ao racismo patriarcal – por serem justamente as mais intensamente expostas às suas consequências violentas e violadoras – que devem ser ouvidas pelo muito que têm a ensinar para a construção de uma sociedade mais justa e menos violenta.
Suas reflexões vão ao encontro das reivindicações da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo, que neste 25 de julho realiza o ato “Mulheres Negras e Indígenas por nós, por todas nós, pelo Bem Viver”. A manifestação acontece no Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e também Dia Nacional de Tereza de Benguela – uma data que une as mulheres negras internacionalmente (saiba mais).
Jurema Werneck esteve em São Paulo em 18 de julho, para uma participação no 11º Encontro Anual do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A entrevista foi concedida à Agência Patrícia Galvão após sua participação na conferência internacional realizada por Tracey Meares, professora de Direito na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, e também mulher negra, que falou sobre o tema ‘Atuação policial, legitimidade e confiança nas polícias‘.
Tracey Meares destacou em sua fala como a atuação policial impacta não só na relação da sociedade com o Estado, mas possui também um poder ‘educativo’ que impacta na relação dos membros da sociedade entre si. Ou seja, uma polícia violenta alimenta relações sociais violentas. Ao interagir com a conferencista, Jurema Werneck trouxe quatro casos de jovens negros assassinados por agentes de forças policiais, que são acompanhados pela Anistia Internacional: Maicon de Souza Silva, 2 anos, morto em 1996 durante uma operação policial na favela de Acari, Rio de Janeiro; Gary Hopkins, morto aos 19 anos em 1999 pela polícia de Maryland, nos Estados Unidos; Fabrício dos Santos, filho de Gláucia dos Santos, assassinado aos 17 anos por autoridades policiais em um posto de gasolina em Guadalupe (Rio de Janeiro) na virada de 2013 para 2014; e Nakiea Jackson, morto em 2014 pela polícia de Kingston, capital da Jamaica (leia mais sobre os casos).
“São quatro histórias de crianças e jovens negros mortos pela polícia, de familiares que se tornaram ativistas pelo fim da violência, pela punição dos assassinos e pela transformação da polícia. Nossa região, a americana, é extremamente violenta”, pontuou Jurema Werneck, ressaltando que as políticas públicas da região não atuam da mesma forma em relação à proteção da vida de brancos e negros. Nesse cenário, Jurema destaca que é preciso dar centralidade para a voz das mulheres negras, que muito têm a dizer para a construção de uma sociedade menos racista e violenta em um continente marcado pelo colonialismo, a escravidão e o seu nefasto legado: o racismo patriarcal.
Confira a entrevista:
Você disse durante a conferência que é preciso ouvir as vozes das mulheres negras, que elas têm muito a ensinar para uma polícia e um Estado mais humanizado. O que essas vozes estão repetindo que a sociedade não está ouvindo?
Primeiro, essas vozes estão falando bem alto que a polícia está matando meninos e meninas negros e negras nas favelas, nas periferias, em todos os lugares. Elas estão dizendo também que há um fenômeno escondido, ou pouco tratado pelo Estado, que é o racismo, o racismo patriarcal, que não apenas elimina os jovens e as jovens, mas também invisibiliza ou não ouve o que precisa ouvir das vozes das mulheres negras. Porque elas não estão dizendo alguma coisa que vá trazer seus filhos de volta, elas já os perderam e perderam para sempre. O que elas estão trazendo é uma proposta de como o Estado pode ser diferente, como a polícia pode ser diferente, como a sociedade pode ser diferente.
Ou seja, é uma proposta extremamente generosa, porque, como eu disse, o que elas já perderam não vão recuperar nunca mais, mas elas mostram que existe um caminho para além da vingança, tem um caminho que significa justiça, e fazer parte da justiça é dar centralidade a essas vozes, ouvir essas mulheres que são mulheres negras, que são em sua maioria mulheres de favela e da periferia, que têm uma proposta de um mundo diferente e que precisam ser ouvidas.
E qual é o papel das instituições no enfrentamento ao seu racismo institucional, que é quebrar de fato essa invisibilidade e se comprometer com essa pauta para além do discurso?
É fazer. Enfrentar o racismo institucional só se faz enfrentando. Primeiro, tem que reconhecer que o racismo está lá – em uma sociedade racista, um país racista, um continente racista, o racismo está lá. Então, é preciso enfrentar, e de diferentes formas. Reconhecer implica dizer que as autoridades, ou melhor, que a opinião institucional tem que ser abertamente e explicitamente colocada em favor do enfrentamento ao racismo. É preciso também criar mecanismos internos: diferentes setores, políticas e ações, diferentes formas de dialogar com a sociedade, informar e prestar contas do que está fazendo.
E, no caso das polícias, é preciso de fato interromper imediatamente esse confronto entre Estado e comunidade negra, em especial a população jovem negra. E, por fim, é preciso se juntar à luta que parte da sociedade já está fazendo. Os movimentos negros e os movimentos de mulheres negras, a população indígena, a população de favela já estão lutando. É preciso se juntar e não se opor a essas lutas. Tem que trazer essa inteligência, tem que trazer essas metodologias para dentro, para construir políticas que tenham mais a cara da população. Ou seja, tem que fazer muita coisa, mas é isso: tem que fazer.
E é importante respeitar esse protagonismo, certo?
Sim, com a mulher negra no centro, porque é a mulher negra que está fazendo esse movimento. Isso vale para o Brasil, a Jamaica, os Estados Unidos e vários países do continente: as mulheres negras estão fazendo. Então, é central, é fundamental e é urgente trazê-las para o diálogo e para informar as ações que as instituições têm que fazer.
Por fim, você comentou durante a conferência sobre a taxa de mortalidade da população negra e no Mapa da Violência 2015 vimos que também aumentou a morte violenta de mulheres negras – em 54%, enquanto a de brancas caiu 9,8% – mesmo com a Lei Maria da Penha em vigor no Brasil, que é considerada uma das mais avançadas do mundo. Esses números são reflexo do racismo estrutural e institucional no país?
Sim. O racismo está presente inclusive na Lei Maria da Penha, quando exclui o enfrentamento ao racismo dos seus mecanismos de proteção à vida das mulheres, que, assim, está deixando de fora esse contingente de mulheres que segue sendo extremamente vulnerável, que segue sendo assassinado apesar da Lei, apesar de uma política pública que foi construída com todas as mulheres. A Lei Maria da Penha foi construída no debate com todas as mulheres, mas na reta final a política pública acabou não incorporando aquelas que estão mais expostas, não incorporando o enfrentamento ao racismo institucional. O processo de criação e de implementação da Lei Maria da Penha tem muito a ensinar, mas a primeira lição é que é preciso enfrentar o racismo.
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