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domingo, 23 de julho de 2017

Gilles Lipovetsky: “Nos últimos 50 anos, a condição feminina mudou mais do que a soma dos últimos milênios"

12.04.2017 | Gilles Lipovetsky

Ano de 1960, início da segunda onda feminista. É nessa época que filósofo francês Gilles Lipovetsky coloca o surgimento da “terceira mulher": aquela que é dona de seu destino, de seu corpo e de sua posição social.
O conceito, criado por Gilles em 1997, traduz esta nova mulher -- uma mulher que deixou de ser uma invenção do homem. “A mulher objeto finalmente passou a ter um futuro aberto, a ser determinado por suas práticas, escolhas, acertos e erros, e não mais pelas decisões dos homens ou pela tradição."
Diferentemente da primeira fase do feminismo, quando se postulava uma ruptura total com o imaginário anterior (um mundo sem distinções sexuais, ao menos funcionais), Lipovetsky esclarece que, hoje, “as mulheres não rejeitam mais uma ascendência sobre coisas como a educação das crianças, uma postura existencial mais amorosa, a ênfase na relação entre amor e sexualidade. Elas recusam o que impede a autonomia."
Na obra A terceira mulher, Lipovetsky explica que Eva foi a “primeira", pecadora e diabolizada na tradição judaico-cristã. Era ela a responsável pela infelicidade do homem.
Já na Idade Média, a visão do sexo feminino é oposta à anterior. Uma espécie de anjo que acalenta e seduz com sua beleza o macho dominante.

Foram séculos de opressão feminina que marcaram a “mulher-objeto e que, até hoje, deixam resquícios. Só a partir da emancipação foi possível afugentar alguns desses fantasmas e dar espaço “à mulher-sujeito", como o filósofo define. De qualquer forma, ainda há uma longa estrada a percorrer. 

Porém, contrário a pensadores franceses que sugerem que, apesar de todas as transformações no imaginário ocidental do século 20, a condição da mulher teria permanecido a mesma (crítica de Lipovetsky a Pierre Bourdieu), Lipovetsky reconhece e celebra as grandes transformações que ocorreram, seu significado para o relacionamento entre mulheres e homens, como se refletem no amor, na família, no trabalho. “Nos últimos 50 anos, a condição feminina mudou mais do que a soma dos últimos milênios".
O que eles têm que elas não querem | Diana Corso
Vivemos, segundo o sociólogo francês Gilles Lipovetsky, os tempos da terceira mulher. A primeira foi recoberta nas trevas dos tempos primitivos, mais mulher que feminina, a segunda, feminina e submissa, fundou o que nos acostumamos a chamar de mulher, a terceira, herdeira de algumas já consolidadas conquistas das lutas feministas, insiste em ser feminina. Para surpresa de muitos o fim da opressão às mulheres não baniu o feminino. 
A politização das queixas das mulheres ensinou-nos a identificar e combater o sofrimento feminino. Fica a dúvida de se a vocação ao amor, à maternidade, à sensibilidade, não passariam de restos do passado, velhos clichês.
Trocando em miúdos: se você tem uma filha mulher é provável que lhe dê bonecas, mais do que bolas e chuteiras, mas além disso você lhe fará entender que é esperado que ela estude, trabalhe, viaje, fale línguas, faça esportes, seja culta e ganhe dinheiro (só isso?); você certamente não dirá à sua filha que vai se contentar com um bom casamento, porque seria mentira. Você desejará que ela vença no território que seria esperado de um filho homem, mas também que se realize no amor e na maternidade… Ela também esperará isto.
Serão restos de velhas ideias, as filhas e netas de sua filha já não se importarão com estas pautas femininas clássicas? Lipovetsky pensa que os tempos lapidaram a feminilidade, não a apagaram e com o tempo talvez sua face mais delicada vá expondo suas feições: liberta, o que quererá ela levar consigo?
A primeira mulher já trabalhava, lavrava, cozia, paria, vendia, criava os bichos, os filhos, as plantas, movimentava a máquina doméstica, mas brilhava sempre sob as trevas: bruxas, feiticeiras, nobres ardilosas, perigosas sereias. 
A segunda mulher, exaltada em sua beleza pueril, pintada e cantada enquanto a virginal mãe de Jesus, encontra no amor cortês um espaço onde o encanto feminino não é mais tão perigoso. 
Este segundo momento da mulher seria o princípio de um estatuto social inédito, talvez o primeiro da feminilidade.
É importante esta constatação: não se trata apenas de um papel social novo para a mulher, membro sempre ativo da comunidade humana, trata-se de um lugar social novo para o feminino, cujas manifestações agora podem ser absorvidas de forma não paranoide.
Nos últimos séculos do milênio, assuntos antes femininos como a puericultura e a harmonia doméstica tornaram-se uma preocupação social relevante, uma questão científica e ideológica. Trata-se de uma conquista de espaço para o feminino, mas a mulher propriamente dita segue ainda muito presa ao ambiente doméstico.
Agora ela quer a circulação pública, o reconhecimento social não apenas através da prole, do marido, o nome próprio pede passagem. A outrora “senhora fulano de tal" ganha novos espaços: trabalha e estuda, faz política, ciência, esportes, domando deficiências e fragilidades que pareciam estruturais.
A dita terceira mulher rompe com a reclusão doméstica, mas o faz sem perder o reinado do lar, assume o controle de seu corpo sem abrir mão do direito à sedução, exercita ativamente a sexualidade e a procriação sem abrir mão de projetos individuais de estudo e trabalho.
Os psicanalistas habituaram o público a falar em “inveja do pênis", ou seja, tudo o que elas quereriam é ser como eles. Discursos simplórios impulsionaram, compreensivelmente, muitos a questionar o que haveria no órgão masculino que o tornasse um bem universal. 
É preciso observar que, desde sempre, a teoria analítica utiliza o conceito de “falo", atributo que transcende a carne, tornando-se a articulação de um valor. Na verdade, se há algo que no masculino instiga alguma inveja nas mulheres é esta certeza de que aquele pedaço de carne faz diferença.
O masculino constitui-se numa identidade positiva, o feminino num questionamento interminável. Tanto quanto ao masculino satisfaz uma conquista, o feminino a torna relativa, a incerteza é a regra.
Se o masculino tornou-se paradigma da certeza de uma identidade possível, o feminino é a melhor tradução de como conviver com uma identidade insegura, mutante. Outrora, berço era destino, a hierarquia social determinava a história de uma vida.
Hoje, a história é pessoal e intransferível e a inquietação a respeito de como escrevê-la é constante. O indivíduo é um eterno viajante que coça a cabeça frente a uma mala aberta. O que levar? O que adquirir na viagem? O que levar e descartar no caminho? Isso sem falar nas incertezas relativas ao roteiro… A cena é algo parecida com a de uma mulher em frente ao espelho: olha-se de frente e verso, tenta captar a essência de uma imagem fugidia que possa informar algo sobre sua identidade. Por isso no discurso feminino o amor é tão presente: quando amados sabemos que somos algo importante para alguém, já é uma certeza.
A maternidade é um porto seguro para a mulher. Grávida ela se faz centro de expectativas e olhares, carrega inseparavelmente em si o vultuoso fruto, prova de um desejo que suscitou. Ao parir, vê nascer aquele que se saberá concernente a ela mesmo que cresça a more na Conchinchina. Enquanto mãe, a mulher liberta-se, mesmo que por fases, das incertezas nas quais navega.
Convém, no entanto, esclarecer que a mulher não é vítima de sua feminilidade, o que nos levaria a pensar que a felicidade residiria nas certezas que o ser masculino pensa que tem.
O olhar feminino é especialista em expor as fragilidades do “poder" e do “ter", contribui com um certo ceticismo. Neste sentido, talvez todo o pensamento filosófico tenha sido essencialmente feminino! A mulher mais facilmente sabe ou intui do vazio do ser.
O discurso feminista teve que denunciar as armadilhas de se fazer escrava da beleza, do jogo do amor e da maternidade compulsória.
Porém, em sua versão sexista, elevou as pautas masculinas de poder e conquista a um padrão de bem universal, como se a solução para as mulheres fosse levar vida de homens… Uma leitura possível das posições de Lipovetsky é trabalhar masculinidade e feminilidade como discursos que se movimentam, não necessariamente atrelados a homens e mulheres.
A ideia da “terceira mulher" constitui numa bela reflexão sobre o futuro possível da feminilidade. Em sintonia com seu objeto, o autor se furta de quaisquer certezas, procura apenas ser multifacetado e sensível. Consegue.
(Com informações de FolhaDelas e blog da Diana Corso)

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