Romper com a ideia fixa de que existe apenas um tipo de família é crucial para combatermos de forma efetiva a onda de ódio e fundamentalismo que se espalha pelo mundo.
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Sacralizar um modelo único familiar e de vivência do afeto e sexualidade coloca as pessoas que não se enquadram neste modelo expostas à violência
Refletimos hoje sobre uma ideia que se apresenta aos nossos olhos como trivial e inofensiva: o modelo de “família”. Não as famílias reais, mas o modelo específico de família apregoado pelo discurso religioso conservador como “natural”, “correto” e “único”.
Silenciar, em nome de uma moral religiosa, diante de feminicídios como o de Mayara Amaral é ser cúmplice da violência
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Mayara Amaral, vítima do patriarcado
Mais uma foi tirada de nós… Seu nome era Mayara Amaral, jovem musicista brutalmente assassinada em 26 de julho em Campo Grande (MS) por três homens. O patriarcado matou Mayara.
Mas há quem ignore este fato. Basta ver o adendo na PEC 181, em tramitação no Congresso, que torna o crime de estupro menos grave do que um aborto
Tocar na problemática do início da vida sem dúvida é uma das tarefas mais complexas. Passássemos toda a existência, não só a nossa em particular, mas de toda a humanidade, utilizássemos todo o desenvolvimento científico, os aparatos tecnológicos para nos dedicar a essa questão, ainda assim não chegaríamos a uma conclusão consensual a respeito do momento em que a vida humana se inicia.
Nas múltiplas configurações das famílias na contemporaneidade é relevante a consciência do papel e responsabilidades exercidos em relações permeadas por intenso desequilíbrio de gênero. Afastar conceitos vistos como naturais exige questionamento dos padrões atuais em uma sociedade na qual a mulher é vista como cuidadora e o homem como provedor.
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palestra gravada em 4/8 | sex | 19h
As configurações familiares e a violência simbólica de gênero
com Maria Aglaé Tedesco Vilardo, juíza
A relação de gêneros no universo da família contemporânea, que abrange discriminação e violência simbólica, física e moral, nos obriga à reflexão seguida de ação, com modificação de procedimentos arraigados pela repetição e atitudes positivas para divisão de responsabilidades parentais e conjugais.
palestra gravada em 11/8 | sex | 19h
A violência contra a mulher no âmbito familiar
com Adriana Mello, juíza
A violência doméstica contra a mulher ganhou visibilidade, mas apesar de ser crime e grave violação de direitos humanos, segue vitimando milhares de brasileiras, pois 38,72% das mulheres em situação de violência sofrem agressões diariamente.
palestra gravada em 18/8 | sex | 19h
Sexualidade nas diferentes configurações familiares
com Maria Cristina Werner, psicóloga
No cenário contemporâneo, a morte do modelo familiar hegemônico fez surgir uma miríade de arranjos familiares possíveis, cada um com regras de funcionamento próprios. Os aspectos familiares que mais se modificaram foram as expressões dos afetos e da sexualidade dentro das relações conjugais e familiares.
palestra gravada em 25/8 | sex | 19h
A criança na família brasileira e a discriminação racial e social
com Ivone Ferreira Caetano, desembargadora
Há um conceito histórico na criação dos filhos no brasil apresentado de acordo com as classes sociais, especialmente dos excluídos, tendo em vista os segmentos étnicos e sociais, levando em consideração os grupos brancos, negros e indígenas. as transformações e sedimentações da personalidade na infância dependerão do ambiente familiar e social no qual as crianças transitarem.
A infância frequentemente é idealizada como um momento idílico da vida e a criança como alguém cujo único compromisso seria com o gozo de viver. Mas, a infância – ao caracterizar-se pelo crescimento, maturação desenvolvimento e constituição psíquica – implica um intenso trabalho da criança para situar-se e construir o seu vir a ser diante do outro familiar, escolar e social.
Daí que, mesmo com todas as legislações que protegem a infância, deparemos com o fato de que as crianças, tais como a infantaria de um exército, estão expostas na linha de frente dos impasses produzidos pela cultura e sociedade de cada época, diante dos quais elas tentam produzir respostas, se ocupando e se preocupando com aquilo que as cerca. Por isso é relevante escutarmos as respostas que as crianças têm produzido diante dos ideais e sintomas sociais de nossos tempos.
Vivemos tempos da virtualidade das relações. A web e a internet que, por um lado possibilitaram uma democratização do acesso à informação, também têm sido instrumento da sociedade pós-fática, na qual os acontecimentos que permeiam as notícias importam menos pelo seu compromisso com a verdade do que com o escândalo que causam; se por um lado possibilitam trocas simbólicas com aqueles que geograficamente estão longe, ao mesmo tempo, incrementam os dispositivos da sociedade de controle, de formações narcísicas do “parecer” e nos linchamentos virtuais produzidos nas redes sociais em uma gangorra entre a fama e a difamação; se por um lado permitem sustentar relações, por outro são instrumentos da supressão de bordas entre o público e o privado e entre o tempo de trabalho e de lazer, já que a exigência de estar permanentemente on-line traz como consequência um convívio no qual as pessoas passam a estar de corpo presente, mas, muitas vezes, psiquicamente ausentes, olhando cada um para sua janela virtual. Isso tem desencadeado intoxicações eletrônicas em pequenas crianças que ficam capturadas nas telas de seus gadgets eletrônicos, em lugar de entrarem em relação com os outros. Crianças um pouco maiores, por sua vez, passam a ter acesso a conhecimento supostamente pleno ao alcance de um clic no Dr. Google, mas, frequentemente carecem de ter com quem compartilhar as experiências para produzir um saber-viver singular.
Diante das transformações familiares, tais como uma menor estabilidade do laço conjugal, as crianças passam a circular entre casais separados com guarda compartilhada e famílias compostas por novos casamentos em que os filhos de cada um dos pais passam a ter o lugar de irmãos adquiridos tardiamente. A definição de família deixa de ser a composta pela prole de um casal heterossexual e passa a ser estabelecida por casais gays, com prole adotiva ou composta a partir de técnicas de fecundação. No entanto se bem isso produza a necessidade de elaboração psíquica por parte das crianças, bem sabemos que o tradicionalismo familiar nunca foi garantia de saúde psíquica e torna-se central colocar em relevo a maternidade e a paternidade como exercício de funções que pode ser realizada por diferentes agentes, assim como garantir os direitos sociais dos membros que pertencem a famílias com diversas configurações.
A polarização nos posicionamentos políticos tem sido vivida na atualidade, não como uma discussão necessária ao exercício da cidadania, mas atuada como rivalidade. Curioso resulta que, simultaneamente a isso, nas histórias infantis contemporâneas se suavizem tanto as manifestações do mal. Desde personagens como o lobo mau até musicas infantis ganham versões tais como “não atire o pau no gato” apresentando sua cínica faceta do politicamente correto, enquanto a realidade parece ser lida em um total maniqueísmo e vividas em uma total intolerância com o diferente. Desse modo deixam de se oferecer para as crianças os elementos simbólicos que lhe permitem alguma elaboração, enquanto uma crueldade cada vez mais deslavada parece impor-se diante de perdas de direitos humanos com crianças refugiadas, imigrantes ou filhos de minorias, tais como sociedades indígenas.
Estas questões colocam em relevo a importância de que seja possível às crianças terem acesso a narrativas que historizem as experiências de gerações anteriores, recuperando-as, não de modo idealizado, mas como testemunho de possibilidades e impasses vividos em outros tempos, considerando que os desafios de cada geração não são equivalentes aos da anterior, mas que justamente por isso tornam necessária uma transmissão com lugar à invenção.
02/06 | sex | 19h
Intoxicações eletrônicas na primeira infância
com Julieta Jerusalinsky, psicanalista
A virtualidade traz o ganho da dissociação do corpo. Mas como considerar esta dissociação em um tempo em que ainda o bebê não produziu tal apropriação? Abordaremos os impasses apresentados na constituição dos bebês e das pequenas crianças diante do modo de relação produzido na era virtual.
09/06 | sex | 19h
Infância e memória
com Antônio Prata, cientista social e escritor
A infância deixa marcas indeléveis a partir das quais cada um se torna quem é. Apesar de que muitas delas caiam na amnésia infantil, continuam vividas em nós. Fazer o exercício de recordar ajuda-nos a elaborar. Transmitir o vivido como uma experiência não idealizada à geração seguinte é decisivo para não condena-la a repetir.
As configurações familiares passam por transformações ao longo de cada época, exigindo modificações de sua inscrição jurídica. As famílias tentaculares da atualidade produzem novas questões às crianças que devem ser escutados considerando, ao mesmo tempo, que o tradicionalismo parental nunca foi garantia de saúde psíquica.
30/06 | sex | 19h
Infância e política
com Ilana Katz, psicanalista
O lugar que as crianças ocupam na cidade é uma experiência política que elas fazem na condição de participantes do laço social, sofrendo os efeitos do lugar simbólico que lhes é reservado, do tempo em que vivem e das formas e modos de laços dispostos em seu circuito social. E é sob este contexto que se tecerá sua subjetividade e sua participação na polis.
Diretora do ‘Como Nossos Pais’ falou a VEJA sobre o novo longa, família, feminismo e cinema
Por Mariana Oliveira
29 ago 2017
A cineasta Laís Bodanzki (Heitor Feitosa/VEJA.com)
Nas imagens dirigidas por Laís Bodanzky, muitas mulheres já foram protagonistas. A jogadora Fernanda, no curta-metragem Cartão Vermelho, por exemplo,representava uma resistência para entrar em um campo machista – o do futebol – no longínquo 1994. Elas também foram destaque no documentário Mulheres Olímpicas, de 2013.
Em Como Nossos Pais, filme que acaba de vencer o Festival de Gramado e estreia nesta quinta-feira nos cinemas, a diretora põe em cena Rosa, uma escritora que quer ser dramaturga, mas deixa suas ambições para ser perfeita aos olhos da mãe, das filhas e do marido, até que uma notícia chega para mudar as coisas. Frustração e questionamento são sentimentos que atingem a personagem – e também a muitas mulheres no mundo –, enquanto tenta se encaixar em padrões ultrapassados de uma perspectiva moderna.
Maria Ribeiro (como Rosa), Clarisse Abujamra, Paulo Vilhena, Felipe Rocha, Jorge Mautner, Herson Capri, Sophia Valverde e Annalara Prates estão no elenco da produção, já muito bem recebida no início do ano pela plateia do Festival Internacional de Cinema de Berlim e depois vencedora do prêmio de público no Festival de Cinema Brasileiro de Paris.
Assim como as vitórias e aplausos, as expectativas para o longa-metragem são grandes. Laís diz que inscreveu a obra para indicação nacional ao Oscar 2018. “Nunca tive um filme com tanta possibilidade de dialogar fora do Brasil”, apostou a diretora, que já embala uma nova produção. Em parceria com Portugal, um filme sobre Dom Pedro I terá a participação do Cauã Reymond.
Confira a entrevista da cineasta a VEJA e assista a uma cena de Como Nossos Pais:
Na sua opinião, o modelo tradicional de família se esgotou? Eu acho que sim. Mas isso não significa que a gente mude isso facilmente. O processo de mudança é complexo. Até porque não existe o modelo perfeito. Não combina mais na sociedade de hoje, em que, por exemplo, a gente compreende que é necessário uma sociedade ser igualitária e ter os direitos das minorias também sempre contemplados. O formato de família não corresponde a essa diversidade e oprime a mulher, principalmente. A mulher hoje está vinte passos à frente desse formato tradicional porque a sociedade foi formatada para que essa estrutura familiar funcione muito bem para o homem. Para a mulher, nem tanto. Pode até funcionar. Eu não acho que a família não deva existir, acho que não precisa ser o único formato considerado correto, e qualquer coisa fora disso vista como anomalia. Nesse sentido, acho que (o modelo tradicional de família) tem os dias contados, mas não que isso vá acontecer amanhã.
A opressão de gênero muitas vezes está na própria mulher que não é solidaria a outra mulher. E agora essa solidariedade está brotando
Laís Bodanzky
Você falou uma vez que, como cineasta, sabia que não contaria muitas histórias e por isso precisaria escolher muito bem quais contar. Por que a de Rosa? Claro que não sou tão racional quando escolho uma história. Os temas de alguma forma me emocionam, e fico com desejo de falar sobre aquele assunto. Eu já estava com muita vontade de falar sobre a minha geração. Talvez um pouco provocada pelas brincadeiras que muita gente fazia sobre eu já ter feito um filme sobre a terceira idade, que é o Chega de Saudade, e outro sobre adolescência, As Melhores Coisas do Mundo. Foi uma brincadeira que me fez refletir bastante. Ser mulher hoje, no caso da minha geração, é um momento sanduíche em que os meus pais estão vivos e os filhos já existem, e os papéis ficam misturados. Fui vendo o quanto o tema é sério, importante e totalmente contemporâneo, e percebi que o desejo de falar da minha geração do ponto de vista da mulher não era só meu, mas de tantas outras mulheres – não apenas cineastas. O tema é pauta na sociedade hoje. Existem reivindicações não só no Brasil, mas no mundo. A marcha das mulheres que teve em Washington, por exemplo, o que foi aquilo? Que surpresa! Ou seja, todas as mulheres estão querendo olhar umas para as outras e perceber que, sim, nós somos metade do planeta.
Rosa, a personagem principal do filme interpretada por Maria Ribeiro, começa a questionar muito a vida dela. A crise por que passa é algo que atinge todas as mulheres em algum momento? Eu acho que sim. Esse questionamento não pertence só à mulher, pertence aos homens, também. É um questionamento natural porque na vida, principalmente quando você forma uma família, você assume compromissos que vão além do seu próprio desejo e começa a viver muitas vezes para corresponder ao imaginário do que é essa família que todo mundo diz que é o padrão. Além disso você começa a acumular funções e, no caso da mulher, a tendência é acumular ainda mais sem nem se dar conta. Talvez esse questionamento que a Rosa faz sobre a vida dela é o que faz o filme universal. Ele está reverberando lá fora de um jeito que, para mim, ficou claro o quanto o tema não é local. Tenho notado que ele é um filme contemporâneo e que propõe debates deliciosos.
No caso da Rosa, a troca entre gerações acontece principalmente com a meia-irmã mais nova.Sim. Essa irmã veio para chacoalhar. E eu sinto que esse diálogo entre mulheres é o que está acontecendo hoje. Tem essa frase que com certeza você já viu, que é “Mexeu com uma, mexeu com todas”. Essa frase, para mim, simboliza uma novidade na história da humanidade, na história das mulheres, porque essa solidariedade é recente. A sociedade foi formatada de tal jeito que a mulher cresce achando que tem que seguir a trilha dela sozinha, e não esticando a mão para a outra que está do lado. Isso torna a vida mais cruel. Essa opressão de gênero muitas vezes está na própria mulher que não é solidaria a outra mulher. E agora essa solidariedade está brotando em pequenas coisas do dia a dia que eu acho que faz toda diferença. Eu até sinto, falando apenas enquanto Laís mulher, que está muito mais gostoso ser mulher hoje do que há cinco anos. E posso dizer mais: está mais gostoso ser mulher hoje do que há seis meses, do que na semana passada.
Como foi trabalhar com a Maria Ribeiro? Eu defino a Maria como uma mulher com tons, meio destemida. Mas um destemido não como se ela soubesse onde tudo aquilo vai dar. Destemido no sentido de “Eu posso mudar essa história, correndo riscos”. Mudar a história não significa que ela vai melhorar. Mas, a partir do momento em que a gente faz um diagnóstico e as coisas não estão bem, temos que fazer um movimento de mudança. Só que dá muito medo mudar. Poucas pessoas têm esse ímpeto e eu acho que a Maria tem, e que a Rosa tinha que ter também. Fiz esse convite para a Maria emprestar eu ímpeto para a protagonista, o que eu acho que ela fez.
E Jorge Mautner? Como é que surgiu a ideia da participação dele? Eu queria que Rosa fosse de uma família de intelectuais que viveu a contracultura, que viveu um momento fértil de criação e tivesse experimentando coisas pela primeira vez. Uma geração Woodstock que também experimentou formas de viver fora do padrão. E o Mautner faz parte dessa geração, ele é um livre pensador. Assisti sem querer ao documentário do Bial sobre ele, que é interessantíssimo, e tem um momento lindo dele com a Amora, sua filha. Ela conta coisas da infância e como via o Mautner naquele momento. Não que tudo que eles falem ali seja fácil de falar e fácil de ouvir, porém, havia muito amor, e eu queria isso na relação da Rosa com o Pai. Então o Mautner ficou como uma referência, apesar de o personagem do filme ser um perdedor e tudo que o Mautner faz dá certo (risos).
Ele topou de imediato? Sim. A gente conversou e eu expliquei a forma de trabalhar. Ele estava muito preocupado se tinha que decorar texto. Eu falei que ele podia mexer no diálogo e emprestar alguns dos seus pensamentos que tivessem a ver com as cenas. Então, algumas das frases do filme são do próprio Mautner.
Na sua opinião, a visão de fora do país sobre o cinema brasileiro mudou desde que você rodou o mundo com O Bicho de Sete Cabeças? Mudou muito. Na época do Bicho, era mesmo o filme do terceiro mundo – uma expressão que a gente nem usa mais, ficou velha. Naquele momento, ele vinha com este carimbo, quando não era “o resto do mundo”. Nesses 17 anos, isso mudou. Mostramos quem somos com a nossa cultura, através da música… Das várias expressões artísticas, e o cinema é muito importante para contribuir para esse imaginário. O Brasil também é a violência, também é a favela, também é o Carnaval. E lá fora as pessoas sempre ficavam um pouco “Ah, filme brasileiro que não fala sobre esses temas? Não deve ser bom”. E o Como o Nossos Pais não é um filme dentro do imaginário do que é Brasil. Conta a história de uma mulher que poderia estar em Berlim ou em qualquer canto do mundo. É uma história universal, e eles receberam sem preconceito. Nós tememos hoje uma política cinematográfica muito sólida através da Ancine (Agência Nacional do Cinema) que fez o nosso cinema amadurecer, e hoje as pessoas olham para cá com curiosidade sobre o que está acontecendo com o nosso cinema.
Aumentou o movimento de mulheres dentro do audiovisual brasileiro? Aumentou. Eu acho que mulheres sempre fizeram parte do audiovisual. Mas no lugar do discurso, que é na escrita do roteiro e na direção, ainda é uma participação muito pequena e desproporcional. Eu acho que com essa tomada de consciência da mulher na sociedade como um todo, as mulheres estão se sentindo mais encorajadas a assumir o discurso e a questionar: por que não têm projetos de mulheres sendo contemplados? Não só reivindicar, como também entender onde é que rolou o filtro. Porque em algum momento existe um filtro. Onde esse filtro aconteceu e como é que a gente faz para mudar? Com isso, novas mulheres estão surgindo nesse espaço importante do discurso.
No mês passado, eu me tornei um tipo estranho de avô - uma das minhas enteadas deu à luz pela primeira vez. Agora, de uma certa maneira, eu tenho um neto.
Olhando de uma perspectiva masculina, o processo de gravidez parece uma inconveniência sem tamanho. Mas ela adorou - e me contou uma coisa que já ouvi de várias mulheres: ela gostava de estar grávida porque se sentia importante.
É uma declaração ao mesmo tempo tocante e preocupante. Tocante porque é uma homenagem ao milagre da vida. Preocupante, numa visão mais ampla, por causa do contexto social.
Uma das grandes medidas de uma sociedade são as oportunidades que ela oferece para suas mulheres - as chances de elas exercerem outras coisas na vida além do papel doméstico. Qualquer sociedade que não faz isso larga com uma desvantagem tremenda, desperdiçando de cara 50% ou mais do seu potencial.
Se, entre outras opções, a mulher quer ter filhos cedo, perfeito. Mas se ela não tiver outras opções que não essa, temos um problema que pode se tornar algo grave.
"Ninguém quer tratar da natalidade", declarou o excelente e sábio médico Drauzio Varella em uma entrevista recente. "Mais da metade da natalidade brasileira vem das classes D e E."
Isso em si não é necessariamente um problema, mas se torna um dentro da realidade do país. "Nasce hoje", diz Varella, "uma massa de crianças que encontrará escolas de má qualidade, habitação inadequada, estrutura familiar desorganizada e que conviverá com pessoas sem estudo. É uma guerra perdida. A desigualdade só vai piorar".
Podemos adicionar mais dois fatores.
Um é global: o capitalismo está em uma fase perigosa. É sempre instável, e a inquietude do sistema é um dos seus pontos fortes. Sempre destruiu meios de vida, mas historicamente os substituiu com empregos que pagam mais do que os antigos.
Agora, pela primeira vez, isso não acontece. A revolução digital simplifica e barateia a produção, destruindo valor porque não precisa de tanta gente. Como, então, o mercado de trabalho vai absorver essas pessoas?
O segundo fator é local: o avanço da precariedade dos postos de trabalho. A reforma trabalhista foi comemorada pelo setor empresarial brasileiro, agindo com uma miopia preocupante, privilegiando facilidades no curto prazo sobre a estabilidade no longo.
Uma consequência das mudanças é que mais jovens mulheres das classes D e E serão relegadas à precariedade, a empregos não somente de baixa renda, mas sem garantias de horários e sem qualquer vínculo fixo.
Elas vão formar um exército de reserva de mão de obra, para serem aproveitadas ou abandonadas conforme as circunstâncias.
A mulher de classe média consegue se proteger disso, investindo em estudos ou treinamento para se desenvolver profissionalmente. A jovem das camadas mais modestas não tem as mesmas chances.
Ela busca a própria identidade, uma forma de se afirmar, de dar sentido à vida - e, em muitos casos, na ausência de opções, a biologia vai ganhar.
Ela vai engravidar - é um modo de se sentir importante.
Já que não se pode, e nunca se deve, negar a ela esse direito, resta somente uma saída: uma restruturação social de tal maneira que os benefícios e a capacidade produtiva de uma economia moderna ficassem ao alcance de todos.
Vai ser o grande desafio que a geração do meu recém-nascido neto, e dos netos dos outros, terá que enfrentar.
*Tim Vickery é colunista da BBC Brasil e formado em História e Política pela Universidade de Warwick.
Mariana Schreiber Enviada especial da BBC Brasil a Manaus e Autazes (AM)
24 agosto 2017
Aos 13 anos de idade, Maria entendia pouco sobre seu próprio corpo. Demorou quatro meses para descobrir que esperava um filho - fruto da primeira relação sexual que teve na vida, com um homem de 21 anos. Até receber a notícia da gravidez, Maria não sabia como ocorre uma gestação - jamais tinha recebido qualquer orientação em casa ou na escola. Tampouco sabia que a lei brasileira configura situações como a dela como estupro de vulnerável.
No posto de saúde de Autazes (AM), município a quatro horas de distância de lancha e carro de Manaus, Maria recebeu um único atendimento psicológico. O objetivo do profissional, conta ela, foi explicar o que era ser mãe.
"Quando entendi que estava grávida, senti muito nervosismo. Pensei: não vou ser mais criança, agora eu vou cuidar de outra criança", lembra ela, com a fala tímida, enquanto o filho, hoje com três anos, circula pela casa simples onde moram.
Maria e a criança são sustentadas pelos minguados rendimentos que a mãe dela recebe com bicos em serviços domésticos e o Bolsa Família. Sua condição não é exceção na cidade de Autazes onde, segundo o IBGE, quase metade dos domicílios tem renda total de no máximo um salário mínimo. Maria teve que deixar a escola - perguntada sobre o que gostaria de fazer no futuro, respondeu que não sabe.
Sente saudade de ser criança? "Sinto. Eu jogava bola na rua, bola de gude". E agora? "Não…. Fico em casa e vou à igreja", diz, enquanto revê na televisão o filme Esqueceram de Mim 3.
Aos 15 anos, dois anos após o ter o primeiro filho, ela sofreu um aborto, e agora, aos 16, acaba de dar à luz uma menina, que mama em seus braços. Depois do último parto, quis fazer uma laqueadura, mas o procedimento não é permitido para mulheres tão jovens.
Hoje, cria os filhos sozinha. O pai da primeira criança morreu assassinado. O da recém-nascida, de 23 anos, mora em uma comunidade afastada do centro de Autazes e só soube que seria pai quando a gravidez estava no sexto mês. Os dois já não estão juntos - Maria diz que ele ajuda a comprar fraldas ou talco, mas não costuma cuidar da filha. "O que pedir, ele dá, mas tem medo de pegar porque ela é muito pequenininha".
GRAVIDEZ NA INFÂNCIA
Taxa de bebês de mães muito jovens se mantém estável enquanto, nas outras faixas etárias, houve queda nos últimos 10 anos
Nascidos vivos de mães de 10-14 anos a cada mil meninas nesta faixa etária
Nascidos vivos de mães de 15-49 anos de idade a cada mil mulheres nesta faixa etária
Datasus (Ministério da Saúde)
Maria - cujo nome verdadeiro foi preservado para não expô-la, assim como o das demais entrevistadas - é uma das quase 305 mil brasileiras de 10 a 14 anos que tiveram filhos entre 2005 e 2015, segundo o Datasus (banco de dados do Ministério da Saúde), que reúne os registros de maternidades e cartórios.
Os números mostram que a gravidez entre meninas dessa idade ocorre em todo o país, principalmente nas áreas mais pobres, alcançando os piores índices na região Norte. O mais grave é que a taxa de fecundidade entre garotas nessa faixa etária não tem caído, ao contrário da tendência geral do país, em que se observa queda nos nascimentos tanto entre adolescentes (mulheres de 15 a 19 anos), quanto entre adultas (a partir de 20 anos).
Com a ajuda da demógrafa Suzana Cavenaghi, a BBC Brasil calculou que o número de nascidos vivos a cada mil mulheres entre 15 e 49 anos caiu de 58,9 bebês em 2005 para 53,6 em 2015. Enquanto isso, a taxa para meninas entre 10 e 14 anos ficou em 3,2 bebês nos mesmos anos.
Não há um banco de dados que permita ampla comparação internacional para gravidez entre meninas dessa idade. No caso dos Estados Unidos, por exemplo, a gestação nesse grupo etário é bem mais baixa e está em contínua queda: segundo o relatório mais recente do Departamento de Saúde americano, a taxa de nascimentos por mil garotas de 10 a 14 anos caiu de 0,6 em 2007 para 0,2 em 2015. Em 1991, era de 1,4.
Retrocesso na educação sexual
Ouvidos pela BBC Brasil, especialistas das áreas de saúde, educação e direito que acompanham o tema apontam para diversos fatores que podem explicar a persistência desse quadro, com destaque para a falta de orientação sexual em casa e nas escolas.
Segundo a Unesco, o ensino sobre os temas sexualidade e prevenção à gravidez sofreu enorme retrocesso no Brasil desde 2011, quando a polêmica envolvendo o material educativo Escola sem Homofobia (que ficou tachado de "kit gay") acabou levando ao recolhimento de todo o suporte didático para educação sexual, que era distribuído desde 2003 para crianças a partir dos 12 anos, no âmbito do Programa Saúde na Escola.
"Hoje, nessa faixa etária de 10 a 14, nada tem sido feito no campo das políticas públicas de educação e sexualidade. Não existe uma diretriz nacional. Isso acaba virando um tabu e, como consequência, temos as crianças engravidando", critica Rebeca Otero, coordenadora de Educação da Unesco no Brasil.
Para o órgão da ONU, a educação sobre sexualidade e gênero deve começar desde os cinco anos, para meninas e meninos. Isso nunca foi implementado no Brasil, diz Otero.
"A orientação da Unesco é que os assuntos sejam adaptados a cada faixa etária: o conhecimento do corpo, por que sente o desejo, o que é abuso sexual. Tendo essa informação, a criança vai saber como se proteger de uma gravidez, como postergar sua vida sexual, caso queira".
Sem orientação, as meninas de menor renda são as mais vulneráveis, nota Maria Helena Vilela, diretora do Instituto Kaplan, especializado em sexualidade.
"Muitas vezes, nas casas mais pobres, a família inteira é obrigada a viver num mesmo ambiente. Então, pais fazem sexo e elas não só assistem, como passa a ser algo muito natural ainda cedo", observa.
"E hoje há também muito mais mães e pais separados, em busca de novos parceiros. Essas meninas convivem em ambiente muito mais sensualizado do que antigamente, também pela mídia, músicas, televisão, internet. Mas, ao mesmo tempo em que vivem num mundo social com muita liberdade, há um despreparo da escola, da família, para encarar que elas já podem ser sexualmente ativas. Elas ficam vulneráveis pela ignorância", afirma.
'Já vai abrindo as pernas'
E se a escola e a sociedade não educam para evitar a gravidez, em geral também não estão preparadas para acolher as meninas gestantes, ressalta Otero.
Grávida aos 14 anos de um namorado de 19 em uma comunidade pobre de Autazes, Lúcia sofreu represálias na escola e na igreja evangélica. "Já vai abrindo as pernas, depois fica sem condição", disse ter ouvido de um professor.
Ela não queria um filho, mas, religiosa, nem cogitou o aborto. "Sabia que era uma vida, não podia matar."
A filha nasceu há um mês e agora ela só pode ir à igreja se ficar isolada. Foi excluída do grupo de jovens, em que participava do coral, sua principal distração. O pastor quer que ela case com o pai da criança "para voltar à comunhão e participar do grupo de senhoras".
"Eu não sou senhora. Tenho que ter responsabilidade por causa dela, mas não tenho que ser senhora. Me senti abandonada, senti revolta", contou.
Lúcia sente saudade do seu corpo. Os seios ficaram bem maiores, a barriga ganhou estrias. Está traumatizada com a gravidez e diz que não quer mais ter filhos. O processo de parto foi difícil, com duas hemorragias, e acabou em cesárea. "Achei que tinha morrido. Minha vista escureceu, perdi o movimento do corpo. Dor de parto vai quebrando tudo dentro da gente", relembra.
Lúcia decidiu ter uma segunda chance na vida: vai se mudar no próximo ano para Presidente Figueiredo, outra cidade do Amazonas, onde terá o suporte de uma tia. A filha vai ficar com a mãe de Lúcia em Autazes - ela, que também teve o primeiro filho aos 14 e foi obrigada ao matrimônio, apoia a decisão da menina.
"Casamento cedo tira a liberdade. Eu vou sentir saudades da minha filha, mas lá a escola é melhor. Quero ser arquiteta, pegar ela quando eu tiver faculdade e condição de criar", planeja Lúcia.
Abusos por trás da gravidez
Especialistas no tema acreditam também que a violência sexual e a tolerância com relações supostamente consentidas entre adultos e menores de idade estão por trás da maioria dos casos de gravidez na pré-adolescência.
"Nem todos os casos nessa faixa são resultado de estupro, mas o que vemos muitas vezes são meninas que sofrem abusos sexuais durante a infância e isso acaba estimulando sua sexualidade, levando essas meninas a namorarem mais cedo, o que acaba desembocando nessa gravidez", afirma Ana Carolina Araújo, conselheira tutelar em Ceilândia, cidade satélite de Brasília.
A polícia do Distrito Federal registrou 832 estupros de vulneráveis (menores de 14 anos) em 2016, mas Araújo acredita que a maioria dos casos não chega a ser denunciada. Essa é a mesma impressão da delegada Juliana Tuma, titular da única Delegacia Especializada em Proteção a Criança e ao Adolescente de Manaus. Ela diz que chegam para ser investigados por dia, em média, de seis a sete suspeitas de estupros de vulneráveis.
No Amazonas, a quantidade de nascidos vivos de mães de 10 a 14 anos cresceu 40% desde 2005 (maior alta entre os Estados), chegando a 1.432 em 2015.
Para o promotor de Autazes, Cláudio Sampaio, que já atuou também em outras cidades do Estado, a redução do problema virá "somente com projetos sociais, um debate maior da própria sociedade, que seja incentivado por órgãos públicos ou por igrejas, pra poder fortalecer o respeito à sexualidade da mulher e o respeito à criança".
"Aqui no Norte, vejo uma cultura, digo no sentido de hábitos que estão enraizados na sociedade, de aceitação das relações sexuais entre crianças e adultos. Isso é considerado normal, infelizmente, e acontece até no próprio núcleo familiar, com padrastos, com irmãos, com tios", afirma.
Mas essa solução proposta pelo promotor esbarra em outro problema que ele próprio identifica: a "ausência do poder público" em uma região distante do restante do país, de grande extensão e com enormes desafios logísticos devido à floresta.
Ele ressalta a necessidade de maior presença do governo federal, já que é comum autoridades locais estarem envolvidas em abusos. O caso mais famoso é o de Coari, cujo ex-prefeito Adail Pinheiro chegou a ser condenado a 11 anos e 10 meses de prisão por exploração sexual infantil, mas esse ano recebeu indulto (perdão) da pena e foi solto.
"O governo federal precisa cuidar das pessoas daqui, e isso não é propriamente dar dinheiro, dar um Bolsa Floresta. É preciso que o poder público venha e capacite as pessoas, para que possam desempenhar profissões, para que entendam a necessidade de respeito às mulheres", cobra.
As três garotas com quem a BBC Brasil conversou no Amazonas relataram ter sofrido algum tipo de abuso sexual durante suas vidas, casos que seguem sem punição. Maria foi estuprada por um comerciante aos 13, quando já estava grávida. Lúcia teve a coxa acariciada por um funcionário do posto de saúde aos 12 - ele depois estuprou a irmã dela, que tinha 14.
Em Manaus, Joana, hoje com 17 anos e mãe de dois filhos, contou que sofreu seu primeiro abuso aos 5. O estuprador foi um vizinho, que pagou R$ 50 a sua mãe, viciada em drogas. Com muito sangramento, foi parar num hospital. "Meu útero saiu do lugar, até hoje sinto dores por isso". Nada aconteceu com ele, que a abusou novamente cinco anos depois, dessa vez por R$ 100.
Joana saiu de casa para um abrigo depois de se cortar "todinha com uma gilete". Passou por vários. "Depois do meu segundo estupro, com 11 anos, comecei a ser putinha", conta. Sua primeira gravidez, aos 13 anos, foi interrompida com quatro comprimidos de um remédio abortivo. Na segunda, aos 14, decidiu ter o filho. O pai era seu namorado, então com 21 anos, homem que a explorava sexualmente e a induzia a se drogar junto com sua mãe.
"Passei duas semanas pensando com Deus se abortava. Pensei: vai atrapalhar minha vida, vai acabar minha vida de puta."
A gravidez na pré-adolescência em geral traz efeitos negativos para as meninas e seus bebês: estudos mostram maior incidência de evasão escolar, de depressão pós-parto e de nascimentos de bebês prematuros e com baixo peso.
Entre elas, o acompanhamento pré-natal e a amamentação costumam durar menos tempo do que entre as mães adultas. São consequências da pouca maturidade e das condições sociais precárias.
No caso de Joana, a gravidez acabou tendo impacto positivo. O acompanhamento pré-natal a levou ao Serviço de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual de Manaus, onde recebeu apoio psicológico e conseguiu interromper a venda do seu corpo e, gradualmente, o uso de drogas.
Hoje ela está casada e tem uma boa relação com o pai de sua segunda filha, de sete meses. Ele tem 21 anos e trabalha com manutenção de ar-condicionado - item onipresente na fervente Manaus.
"Depois que meus filhos nasceram, veio um amor muito grande. Eu quis deixar a vida velha pra lá. Mas às vezes eu choro, quando meus filhos estão dormindo. Fica um reflexo (lembrança) na minha cabeça. Eu fico lendo a Bíblia, fico lendo, fico lendo, e só assim eu acalmo. Se eu for começar a pensar, eu fico doida", diz ela, que é evangélica.
"Eu tenho muito sonho de que mato ele (o abusador, que segue morando no bairro da infância de Joana). Eu quero matar ele, mas se eu for pra cadeia, o que vai ser dos meus filhos? Eu penso muito nisso."
A BBC Brasil questionou os ministérios da Educação e Saúde sobre as críticas quanto à falta de políticas públicas para enfrentar a gravidez de garotas e saber o que o governo pretende fazer para enfrentar o problema. A pasta da Educação não se manifestou. Já a pasta da Saúde se limitou a comentar as causas do problema e minimizar sua gravidade, destacando que os nascimentos nesse grupo representam 0,9% do total de nascidos vivos no país.
"A leve tendência de aumento, (da gravidez) na faixa de 10 a 14 anos, pode estar associada a vários fatores tais como violência sexual, aspectos culturais, iniquidades, falta de oportunidades, dentre outros; além disso, esse é um percentual muito pequeno, quando considerada todas as faixas etárias", respondeu o ministério.