01/08/2017 por Luciene Félix
O que causa mais dano: luxúria ou ressentimento? Há tanto ressentimento entre os “justos” e os “corretos”. Há tanto julgamento, condenação e preconceito entre os “santos”. Henri J.M. Nouwen
Mitos, parábolas, lendas, alegorias, enfim, são muitos os clássicos relatos que preveem e revelam no que culminam nossas emoções ao nos compararmos com nossos “homói” (iguais): raiva, ódio, inveja, ciúme, desprezo, mágoa, amargura, vingança, ressentimentos, etc.
Na sublime obra de Rembrandt “A Volta do Filho Pródigo” (1606-1669), que está no Hermitage, em São Petersburgo (Rússia), está retratado o momento em que o pai acolhe o filho pródigo (esbanjador) sob o olhar do filho mais velho (confira a análise desse magnífico quadro em meu blog).
É famosa essa parábola bíblica narrada por Lucas, que conta a história de dois irmãos: o mais velho, correto, trabalhador, obediente, sempre junto ao lar; e o mais novo, que no afã de ganhar o mundo, apressa-se a pedir logo ao pai sua parte na herança e viaja para, longe de casa, desfrutar de suas aventuras.
Depois de dissipar todo o dinheiro numa vida de devassidão, o filho mais novo cai em desgraça, começa a passar privações e, lembrando-se de que até mesmo os empregados de seu pai possuem mais do que ele, se arrepende e volta em busca de perdão: “Pai, pequei contra o Céu e contra ti; já não sou mais digno de ser chamado teu filho. Trata-me como um dos teus empregados”.
Repleto de compaixão e generoso, mais do que perdoá-lo, de braços abertos, o pai o recebe em festa, cobrindo-o de beijos: “Ide depressa, trazei a melhor túnica e revesti-o com ela, pondo-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés. Trazei o novilho cevado e matai-o; comamos e festejemos, pois, este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado! ”
Já o filho mais velho, que estava no campo, ao se aproximar da casa paterna, indagando a um servo o porquê de tanta festa que escutara de longe, ouve que é por causa do retorno de seu irmão, que muito alegra ao pai.
Indignado, o filho mais velho recusa-se a adentrar ao lar; seu pai então sai para suplicar-lhe, mas ele lhe responde; “Há tantos anos que eu te sirvo, e jamais transgredi um só dos teus mandamentos, e nunca me deste um cabrito para festejar com meus amigos. Contudo, veio esse teu filho [aqui ele já se distancia do irmão], que devorou teus bens com prostitutas, e para eles matas o novilho cevado! ”
Foi quando o pai lhe disse: “Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Mas era preciso que festejássemos e nos alegrássemos, pois, esse teu irmão estava morto e tornou a viver; ele estava perdido e foi encontrado! ”.
É fácil identificar aqueles que se encaixam no perfil do filho pródigo (gastador): trata-se do perdulário, do fanfarrão, inconsequente; daquele que se esquece que dinheiro não leva desaforo e, não demora muito, se vê rodeado de dívidas, em penúria, na miséria. É um “bon-vivant”, tal qual a cigarra da fábula, um hedonista, enredado por uma vida de prazeres, que pensa ser eterna.
Analisando este comportamento, o padre holandês Henri J.M. Nouwen afirma: “Há algo de claramente definido a respeito de sua má conduta. Depois, tendo visto que esse procedimento errado não levava senão à miséria, o filho mais jovem recobrou o bom senso, deu a volta e pediu perdão. Temos aqui uma falha humana clássica, com uma decisão acertada. Fácil de entender e fácil de aceitar. ”
Sabemos que, mais dia, menos dia, se mal-empregado, o dinheiro acaba, os amigos interesseiros se vão, e lá está a pessoa, arrasada, endividada, arrependida. Qual pai – ou mãe – não perdoaria, não acolheria em seus braços, saltitando de alegria pela recuperação do desregrado degradado? E por que assim, pronta e efusivamente procedem?
Saltitam de alegria pura e simplesmente porque amam. O amor é sempre a resposta. Esse amor filial é como – para os que creem – como o de Deus: incondicional. Não importa o que façam ou o quanto deixem de fazer, filhos – sobretudo os distantes – são muito amados e ansiados por seus pais.
Mas, e o irmão? Revoltado, é envenenado pela raiva e profundamente ressentido que ele protesta: “Há tantos anos que eu te sirvo, e jamais transgredi um só de teus mandamentos, e nunca me deste um cabrito para festejar com meus amigos. ”
Nessa reivindicação, condenando a alegria do pai pela chegada do irmão mais jovem, entrevemos que a obediência e o dever foram um peso, e o trabalho, uma escravidão. Ele cumpriu o seu dever, trabalhou duro, deu conta de suas obrigações, mas se tornou amargo, sentiu inveja da vida desfrutada pelo irmão mais novo. Por acalentar tais sentimentos, ele também se tornou um perdido.
Ambos precisam de cura e de perdão, mas a conversão mais difícil, o resgate mais árduo é justamente o desse irmão mais velho, que se tornou um ressentido.
Nouwen esclarece que essa queixa íntima é sombria, pesada, faz com que a pessoa se ache a mais incompreendida, rejeitada, negligenciada e desprezada do mundo: “Essa experiência de não poder partilhar da alegria [do próximo] é a experiência de um coração ressentido. O filho mais velho não podia entrar na casa e partilhar da felicidade de seu pai. Sua mágoa íntima o paralisava e o deixava taciturno [quieto, calado]. ”
Essa parábola lega a preciosa lição de aprendermos a reagir ao amor de Deus sobre os outros.
Vaidoso, ferido em seu orgulho, será que o irmão mais velho está disposto a admitir que não é melhor que seu irmão mais jovem, o filho pródigo?
Convém abandonarmos toda comparação, rivalidade, competições, enfim, buscar a luz, pois fora da luz, diz Nouwen, os outros sempre parecem ser mais amados pelo Pai do que eu; de fato, fora da luz, não posso mesmo vê-lo como meu próprio irmão. Na escuridão, prossegue, irmãos e irmãs, maridos e esposas, amantes e amigos se tornam rivais e mesmo inimigos, cada um eternamente empestado de ciúmes, suspeitas, ressentimentos.
E, nessa categoria de dor, afirma Nouwen, tudo perde sua espontaneidade: “Tudo se torna suspeito, constrangedor, calculado e cheio de segundas intenções. Não há confiança. Cada pequeno passo requer uma retribuição; cada pequena observação pede uma análise; o menor gesto tem de ser medido. Esta é a patologia da escuridão, daqueles que estão perdidos, precisam ser encontrados e trazidos para casa. ”
Sentir medo ou mostrar desprezo, submeter-se ou controlar, oprimir ou vitimar-se... Assim vivem, nessa luta contra a auto rejeição e o desprezo, os que optam por comparar-se. Trata-se de um combate ferrenho, árduo, contínuo, pois o mundo e seus demônios conspiram para que – nos comparando – nos consideremos sem valor, incapazes e insignificantes.
Como atesta Henri Nouwen, nem ganância, nem raiva, nem luxúria, nem ressentimento, frivolidades ou ciúmes estão totalmente ausentes em nós; nossa imperfeição pode ser vivenciada de muitas maneiras, não há ofensa, ciúme ou guerra que não tenha raízes em nossos próprios corações. Por isso é tão importante cultivarmos a gratidão, atitude que não coexiste com o ressentimento. Ao que de bom e benéfico ocorrer a um irmão, sejamos gratos.
É difícil admitir, mas talvez esse amargo e ressentido filho mais velho esteja psiquicamente muito mais perto de nós do que gostaríamos. Os “pharmakons” para esses sentimentos é a confiança e a gratidão, essas são as matérias para a conversão.
Podemos escolher, sempre podemos optar por viver nas trevas –, nos queixando, mesmo que em silêncio, cultivando o ressentimento –, ou partir em busca da luz –, alegrarmo-nos pelas bênçãos aos nossos semelhantes.
Dedicado ao inestimável e inesquecível Mestre Marcelo Perine.
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Luciene Felix Lamy
Professora de Filosofia e Mitologia Greco-romana.
Lucienefelix.blogspot.com
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