(Luciana Araújo/Agência Patrícia Galvão, 17/08/2017) Lançado no último final de semana pela editora Perspectiva, O Racismo e o Negro no Brasil: Questões para a psicanálise traz uma análise aprofundada do racismo ‘à brasileira’ – aquele que todo mundo até admite que existe mas ninguém admite que pratica; ou, como denunciou Abdias Nascimento, um racismo ‘dissimulado’, ‘mascarado’, ‘insidioso’ e, por isso, ainda mais efetivo no genocídio a que se propõe.
Organizado pelas psicólogas e psicanalistas Maria Lúcia da Silva, Noemi Moritz Kon e Cristiane Curi Abud, a coletânea de artigos aborda também como o racismo institucional afeta a categoria e compromete a própria efetividade do campo psicanalítico frente a uma população de maioria negra em um país historicamente estruturado sobre a base de um racismo que impacta todas as relações sociais e subjetividades.
O livro foi produzido a partir de um evento que teve o mesmo nome, realizado em 2012 após um ano de debates sobre um episódio de racismo ocorrido em sala de aula no Instituto Sedes Sapientiae (leia mais clicando na imagem disponibilizada mais abaixo nesta página).
Para saber mais sobre o livro e sobre esse debate, a Agência Patrícia Galvãoentrevistou Maria Lúcia da Silvia, ou Lucinha – como carinhosamente é conhecida a psicóloga, psicanalista e ativista de larga trajetória de atuação no movimento negro e no feminismo, integrante da coordenação executiva do Instituto AMMA Psique e Negritude e empreendedora social reconhecida pela Ashoka Brasil.
O livro mostra como o debate sobre o racismo estrutural na psicologia e na psicanálise brasileiras ainda é bastante incipiente. Na sua avaliação, como isso empobrece o exercício profissional em um país de maioria negra?
De fato, podemos pensar que uma psicanálise no Brasil que não pensa o Brasil – que não tenha em mente a construção histórica do país se deu e quais são os grupos alijados dentro dessa história – não está de acordo com a nossa realidade. Nesse sentido, ela se empobrece. Mas se pensarmos na manutenção dos privilégios e na ‘reserva de mercado’, isso com certeza favorece um grupo e uma classe, como acontece em qualquer tema, lugar ou setor. A psicanálise não está fora do contexto nacional do racismo estrutural.
A outra questão é que nós, ativistas e o movimento, devemos fazer – como vimos fazendo desde que o primeiro africano chegou ao Brasil – uma investida para que as instituições sejam mais democráticas, incorporem a realidade brasileira e, a partir daí, façam as devidas correções nas suas rotas, para que possam absorver uma população que está alijada há séculos dos espaços de visibilidade e intervenção.
Por outro lado, como são profissionais que recebem em seus consultórios, clínicas e instituições a população com seus diferentes pertencimentos, mais do que empobrecer, o que acontece é uma reedição do trauma que a população negra já vem sofrendo. A pessoa busca um lugar para trabalhar a dor psíquica provocada pelo percurso de vida como um todo – só que no caso dos negros esse percurso está atravessado pelo racismo – e encontra muitas vezes, na grande maioria dos casos, profissionais que, ao não considerarem o racismo como elemento promotor de sofrimento psíquico, negam a dor daquela pessoa.
Invisibilizar esse processo tão visível empobrece o exercício profissional na medida em que os profissionais negros não são reconhecidos e, mais do que empobrecer, abre espaço para um novo ataque no lugar onde a pessoa busca ajuda.
E como se construiu no Brasil esse percurso de deixar de lado a colonização e a escravidão, sendo que a psicologia e a psicanálise têm como pilares avaliar como o ambiente social influencia na formação e nos sofrimentos dos sujeitos?
Esse setor é dominado por brancos de classe média e média alta porque a formação em psicanálise é muito cara para dar conta das etapas exigidas, inclusive por demandar uma análise pessoal do profissional, além do processo de supervisão, nos espaços de aprendizagem, que também exige muitos recursos materiais. Então, vamos ficando de fora, porque do ponto de vista socioeconômico não temos recursos para fazer parte desse processo. É no aspecto econômico que vamos sendo tirados desse lugar, por isso são tão poucas as psicanalistas negras no Brasil.
E as que existem são muito pouco reconhecidas e difundidas.
Sim. Há poucas. Mas do ponto de vista histórico há esse apagamento. Por exemplo, Virgínia Bicudo, que foi a expoente da psicanálise no Brasil e, junto com Durval Marcondes, instalou a Sociedade de Psicanálise em São Paulo, que na década de 1950 participou da pesquisa da Unesco sobre a questão do racismo no Brasil, pela tonalidade clara de sua pele só foi reconhecida como mulher negra pela Sociedade Brasileira de Psicanálise há uns três anos, embora tenha atuado profundamente sobre esse tema. Sua tese na Escola de Sociologia e Política de São Paulo foi sobre o racismo.
Mas a visibilidade no campo da psicanálise é dada a partir da pertença às instituições e aos grupos que de alguma maneira visibilizam os temas a partir dos debates, construções, publicação de livros, o que nunca foi um espaço ‘permitido’ e no qual transitássemos. E mesmo quando transitamos nele, vamos fazê-lo com todas as precariedades que a nossa história como povo determina. A nossa mobilidade não é igual, é restrita. E mesmo que você tenha todas as condições para estar nesse lugar, os requisitos para fazer parte desse lugar são extremamente elitistas, os mecanismos instituídos vêm na direção de alijar.
O racismo é isso. Não está escrito em nenhum lugar. Mas os mecanismos de acesso, permanência e mobilidade nas instituições são impeditivos, porque há esquemas que não são necessariamente conscientes mas impossibilitam sua entrada ou filiação.
Que implicações traz para a psicanálise a definição do racismo como um “sintoma coletivo” – como apontado em um dos artigos do livro –, do ponto de vista do trabalho com quem busca o apoio profissional ante um sofrimento que é institucional, estrutural e estruturante?
Em primeiro lugar, quando falamos em “sintoma coletivo” é preciso investigar, do ponto de vista coletivo, como ele se materializa nas relações e no cotidiano. Em segundo lugar, ele precisa ser trabalhado no sentido de que o sintoma desapareça. Para a psicanálise, o investimento é na busca do conhecimento e da compreensão, para recuperar e se apropriar da sua própria história. Porque o sintoma faz com que você fique alienado da sua própria história, e aparece exatamente em um lugar que incomoda porque você precisa buscar conhecer, apropriando-se dele, para restituir seu espaço de mobilidade, emocionalidade.
Então, quando em uma instituição ou em uma sala de aula eu aponto uma expressão de racismo e afirmo que temos que olhar para ela, estou apontando que ali há um sintoma coletivo, de que ninguém se dá conta, mas existe. Quando começamos a desencadear o processo estamos desvelando o sintoma, dando a ele um nome e um lugar. Ao fazer isso, temos a possibilidade de que o coletivo trabalhe para se livrar do sintoma e passar a ter uma relação mais harmônica com a vida. A dinâmica é essa.
O livro surge de uma expressão concreta, que produz uma discussão em sala de aula. Essa discussão sai da sala de aula e vai para um debate mais amplo na instituição por meio do evento realizado em 2012, o que não acontece sem conflito, e depois se materializa em um livro que vai publicizar para o conjunto da categoria o racismo que existe e precisa ser enfrentado. Então, fazemos um caminho de identificar o sintoma e também como atacar esse sintoma para eliminá-lo. Mas isso não acontece sem resistência, não é simples e não é rápido. O fato aconteceu em 2011. Em 2012 fizemos o evento. E o tema ficou adormecido, embora saibamos que algumas discussões seguiram ocorrendo na instituição, porque nela adentraram duas mulheres negras fazendo essas provocações. E o livro sai em 2017. Veja o tempo de gestação, amadurecimento, mastigação que o tema exigiu para vir a público.
O seu artigo no livro trata muito de como os atributos e elementos ideológicos negativos historicamente acumulados impactam o indivíduo e também o coletivo social negro. E isso se combina também com a ideologia de uma negritude ‘forte’, que não precisaria de ajuda. Como se dão esses impactos e qual é a importância de a população negra buscar o direito de acesso à psicanálise e também o apoio dela?
O racismo nos coloca o tempo todo diante de contradições e ambiguidades. As humilhações vividas como frutos do racismo são marcas de muita profundidade porque as vivemos desde a concepção à morte. Não há descanso; há um dispêndio de energia cotidiana para que eu, de fato, possa fazer o enfrentamento ao que vou encontrar no dia a dia. Ao lado disso, o racismo vai me colocar efetivamente no lugar de nem sempre poder reconhecer que as minhas angústias são fruto de um imaginário que me coloca sempre no lugar do inferiorizado e que, na maioria das vezes, vou tomar para mim algo que é produzido pelo social.
Outra questão básica é que nem sempre conseguimos ligar a angústia e a dor com a dificuldade de mobilização, acesso e leitura das precariedades nas quais por vezes vivemos. Não porque não sou capaz, mas porque o outro não é capaz de me receber nas condições que tenho.
Outra questão que considero bastante impactante é a ambiguidade do ‘racismo à brasileira’, que atua constantemente e é negado constantemente. Isso também vai produzir, o tempo todo, uma dúvida sobre se o que você está vivendo é real ou é da sua cabeça. Então é fundamental abrir espaço para essa discussão e produzir literatura sobre isso, e de uma forma que o sujeito possa compreender – porque não considero o livro simples. Não é um livro para a população de um modo geral, mas para psicólogos e psicanalistas, porque há coisas que não se consegue aprofundar se faltam elementos que são da formação de um psicanalista.
Por outro lado, temos – como ativistas, psicólogos e psicanalistas comprometidos – que desencadear um processo para que a população negra tenha acesso a serviços de qualidade e possa se pensar e sair desse lugar de inferiorização. Porque é isso que mantém um país dividido entre privilegiados e ‘desprivilegiados’. Precisamos construir mais amplamente espaços de diálogo pensando a nossa psiquê. E precisamos convocar os psicanalistas brancos para colocarem seu conhecimento a serviço desse debate – e uma das tarefas da nossa organização é essa, em primeiro lugar porque não temos tantos profissionais negros que deem conta, mas há toda uma população que precisa de um analista com quem ela possa se identificar, porque suas experiências de vida são de negação e humilhação, então ela não quer mais procurar um lugar para se cuidar onde vai ser descuidada.
A psicanálise desde o seu nascimento é muito elitista – porque é o sujeito e seu analista, e isso não é barato para ninguém. Mas no nosso caso, como temos um sintoma coletivo, é muito importante o trabalho com os grupos, porque é neles que a pessoa vai perceber que ‘isso não acontece só comigo’ – guardadas as proporções das histórias particulares, das individualidades, porque o racismo também concorre com muitas outras violências em nosso cotidiano e não somos formados só pelo racismo, embora ele seja um elemento que nos atravessa de forma cabal. E isso já está acontecendo, com coletivos de psicólogos se juntando, querendo desencadear um processo em cascata mesmo, em que muitas pessoas estejam conversando sobre este tema.
E destacar como o racismo traz impactos ainda mais ‘específicos’ para as mulheres negras.
Não avalio que seja específico para as mulheres, mas que o racismo vai adquirindo especificidades com base no lugar que historicamente homens e mulheres negras ocuparam. Essa distinção é importante. Porque nós, mulheres negras, fomos sempre arrimo. Depois da abolição, basicamente, as mulheres negras têm trabalho e os homens, não. Então, temos uma história de arrimo, de grupo, família, coletividade, que está plantada em nós. Mesmo que nem precise, a gente é. Por outro lado, os homens negros têm uma história no processo de escravização em que eram reprodutores. E acho que, de alguma maneira, podemos pensar que isso acaba se repetindo ao longo do tempo, nisso de sair reproduzindo sem que muitas vezes sejam responsáveis pela sua prole. Isso não acontece por acaso, mas porque há uma transmissão geracional de determinados elementos históricos que nos afetam.
Então, ‘as mulheres negras são fortes’ e por serem ‘fortes” vão sofrendo toda sorte de coisas ao longo da vida: assumir a casa sozinha, ter menos anestesia no parto, viver um espaço de solidão muito grande.
É preciso reafirmar que esse conceito de que ‘mulher negra é forte’, que muitas vezes nos fez sentir honradas, não nos cabe mais. Nós temos potência. Porque ser forte o tempo todo implica inclusive não construir um espaço onde eu possa ser frágil. E todo mundo é frágil e fraco em determinados momentos e precisa de ajuda para superar esses momentos. E as mulheres negras têm vivido muito solitariamente isso. É contra esses estigmas que precisamos investir para que haja uma mudança coletiva. Precisamos olhar quais são as repetições históricas que nos colocam em um lugar de desvantagem, de reforçar estereótipos – que não são construídos à toa, mas para perpetuar uma realidade criada historicamente.
Temos que poder investir na compreensão teórica dos fatos para que esta se transforme em ações efetivas de desmobilização de concepções criadas há muito tempo e que são mantidas através de todos os esquemas, inclusive os midiáticos. Concepções que nos fazem por vezes cair na armadilha de brigar conosco mesmo sem compreender que por trás disso há uma construção que nos deixa aprisionadas. Então, há determinados temas que vamos precisar olhar para sair dessa prisão.
Agência Patrícia Galvão
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