Henrique Restier da Costa Souza
Sociólogo Quarta-feira, 16 de agosto de 2017
Sociólogo Quarta-feira, 16 de agosto de 2017
“O problema do negro na América é o problema do homem negro.”
(Glazer and Moynihan 1970:38).[1]
Esse texto parte de um sentimento. Um mal-estar, que muito provavelmente não atinge todos os homens negros, mas com certeza uma parcela razoável. Logo, é um texto de homem negro para homem negro, embora todos sejam bem vindos. Existe uma sensação em nós, de falta, uma incompletude existencial, difícil de ser explicada, mas fácil de ser sentida.
É como se não fôssemos homens integralmente, mas sim negros, e apenas isso, pois segundo Franz Fanon[2] (2008), seríamos reféns da nossa aparição, aprisionados ao nosso corpo melaninado que sempre chega antes de nós, e junto dele, uma torrente de estereótipos. Na verdade, somos em grande medida invisíveis, vivendo em uma linha tênue entre o que somos e o que as pessoas pensam que somos, numa espécie de “encarceramento simbólico”. Existimos entre diagnósticos essencializantes e prescrições de como devemos ser.
Alguns atributos do masculino
Penso que esse mal-estar tem um forte vínculo com a formação da masculinidade negra em um ambiente de boicote, hostilidade e medo. Consideramos masculinidade um processo de socialização em que homens buscam se legitimar perante seus pares, na busca pelas prerrogativas patriarcais de uma determinada sociedade e que esse processo não só é relacional (envolvendo homens e mulheres), mas varia de acordo com o contexto social e dos marcadores sociais (raça, classe, etnia, região, sexualidade, etc.) que compõem o indivíduo.
Nesse sentido, não há uma masculinidade, mas sim, masculinidades, em constante negociação e enfrentamento. Por ter dificuldades em atender alguns dos pré-requisitos básicos da masculinidade prestigiada (e aqui a cor é um deles), a masculinidade negra se configura como uma masculinidade subordinada, enfrentando questões complexas para se estabelecer. Sendo assim, dois aspectos centrais da formação dos homens em nossa sociedade – gostemos ou não – merecem destaque: o provimento e a virilidade.
O papel do provedor é muito importante para os homens (independente das relações afetivo-sexuais), pois envolve a sua capacidade de “sustentar” a família, satisfazer suas próprias demandas e de seus interdependentes. E aqui, o provimento não se circunscreve apenas ao quesito renda (apesar da sua inegável importância), envolve segurança, cuidado, proteção e capacidade de realização. Podendo com isso oferecer aos seus, uma vida mais abundante, atraente, confortável, leve e plena de possibilidades. E isso, o homem negro tem historicamente dificuldade de proporcionar devido ao terror e sabotagem da supremacia masculina branca (com a colaboração feminina), que enxerga nesse processo a possibilidade de deterioração das fronteiras sociais e o colapso das hierarquias raciais.
Já o antropólogo Waldemir Rosa[3] reconhece a virilidade como um dos valores fundamentais da masculinidade e que por sua vez está ligada à noção de independência, sendo assim, o cientista social se pergunta:
Nesse caso, grande parte da virilidade do homem negro se resume às suas capacidades físicas e talentos sexuais, em um flagrante processo de animalização, em que é reduzida sua “capacidade de controle sobre si e sobre o social”. Em ambos os casos nos tornarmos um “homem” construído a partir do olhar e ações da branquitude.
Nessa dinâmica ao ter reduzida suas opções de exercício masculino e, portanto, seu status social, estimula-se que sejam sobrevalorizadas formas mais rudes e rígidas de masculinidade, enfatizando seus atributos mais distintivos em relação às mulheres, não à toa homens negros são retratados como hipermasculinos e superviris. Segundo o sociólogo Deivison Nkosi Faustino[4]:
“O homem negro deve ser “macho ao quadrado” em todas as situações exigidas, e só a partir desses atributos será reconhecido… a própria afirmação do subalterno não prescinde dos atributos oferecidos pelo opressor, a ausência ou a deficiência de algum elemento relacionado ao corpo terá consequências catastróficas para a identidade deste homem”.
Isto é, existe uma série de expectativas em torno do desempenho corporal dos homens negros, inclusive de nós mesmos, que faz com que a não correspondência com essas prerrogativas raciais prejudique a nossa própria constituição identitária. Contudo, essa hipotética potência corporal é “irmã gêmea” da suposta incapacidade intelectual do negro, ou seja, de qualquer forma ficamos fixados no pênis e músculos, enclausurados “na geografia da pele e da cor” (PINHO[5], 2004, p. 67).
E quem não tem tanto pênis nem tantos músculos, mas tem a pele preta, é homem, é negro, é o quê? Como ser alguém fora da lógica racista e sexista? Vamos nos reconhecer? De que maneira podemos existir no mundo sem corresponder a nenhum dos modelos criados pela ideologia racista? Ou como “… levar o negro a não ser mais escravo de seus arquétipos”?
Ressignificando as masculinidades negras
Ao mesmo tempo em que há esse processo de internalização de chavões raciais e desestabilização de uma identidade negra positiva, o movimento inverso também é verdadeiro, quer dizer, o questionamento desses atributos racistas e sexistas é inerente à própria formação do homem negro no Brasil. Este sujeito criou estratégias complexas de reelaboração de sua identidade com o objetivo de reafirmar sua masculinidade sob suas próprias regras e valores, ou mesmo, subvertendo os códigos da masculinidade “hegemônica”, adaptando-os aos seus interesses e contextos.
Para isso, a cultura, a religião, a luta, a arte e a música são repertórios simbólicos negros imprescindíveis. Além do mais, pode-se constatar na história do Brasil um conjunto de movimentos sociais em que os homens negros lideraram, como na Imprensa Negra, na Frente Negra Brasileira, na União dos Homens de Cor, no Teatro Experimental do Negro, dentre outros. Quebrando estereótipos e sendo aquilo que o mundo branco não previu e não queria: senhores de si. Todos com forte e indispensável presença das mulheres negras.
Não estamos sozinhos nessa caminhada, somos Abdias do Nascimento, João Cândido, Luiz Gama, Milton Santos, Guerreiro Ramos, Candeia, Joaquim Barbosa, Lima Barreto, Lázaro Ramos, Grande Otelo, Solano Trindade, Benjamim de Oliveira, Xangô, Machado de Assis, Mano Brown, Zumbi dos Palmares. Somos os patriarcas da Humanidade, genitores dos Homo sapiens sapiens, o homem original. Não menos que isso.
“Meu nome é Ébano…” Luiz Melodia[6]
Henrique Restier da Costa Souza é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre em Relações Étnico-raciais pelo Centro Federal Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ) e Doutorando em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP/UERJ).
[1] The problem of the Negro in America is the problem of the Negro men. (Glazer and Moynihan apud GORDON, 1997, p.36). (Tradução livre). Ver: GORDON, Edmund. Cultural politics of black masculinity. Transforming Anthropology, V.6, N. 1,1997. pp. 36-53.
[2] FANON, Franz. Pele negra máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
[3] ROSA, Waldemir. Observando uma masculinidade subalterna: homens negros em uma democracia racial. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero VII – Gênero e Preconceitos, 2006, Florianópolis. Anais Fazendo Gênero VII. Florianópolis: Editora Mulheres, v. 1. p. 1-7, 2006.
[4] FAUSTINO, (NKOSI) Deivison F. (2014). O pênis sem o falo: algumas reflexões sobre homens negros, masculinidades e racismo. In: BLAY, Eva Alterman (Org.). (2014). Feminismos e masculinidades: novos caminhos para enfrentar a violência contra a mulher. São Paulo: Cultura Acadêmica, p. 75-104.
[5] PINHO, Osmundo. Qual é a identidade do homem negro? Revista Democracia Viva n. 22, p. 64-69, jun /jul 2004.
[6] Em homenagem a Luiz Melodia. Trecho da música Ébano.
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