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quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Debate sobre aborto chega ao STF e mobiliza opiniões pró e contra descriminalização

3 DE AGOSTO DE 2017

Ação propõe que aborto até o terceiro mês de gestação deixe de ser crime. A Gênero e Número ouviu diversos especialistas e reuniu os principais argumentos que sustentam os dois lados do debate.

Por Alessandra Monnerat*

No Brasil de hoje, a mulher que pratica um aborto pode ser punida com até três anos de prisão, segundo o Código Penal. As exceções são em casos de estupro, de feto anencéfalo e de gravidez que oferece risco à vida da gestante. Ainda assim, pelo menos uma em cada cinco brasileiras já abortou, o que equivale a cerca de  503 mil brasileiras em 2015, segundo dados da Pesquisa Nacional do Aborto, publicada pelo Anis – Instituto de Bioética e pela Universidade de Brasília (UnB) em 2016. Quase 1,3 mil por dia. Praticamente um aborto por minuto.

Desde março deste ano tramita no Supremo Tribunal Federal (STF), sob a relatoria da ministra Rosa Weber, um processo que pode descriminalizar a prática de aborto até a 12ª semana de gestação. O processo vem na esteira de uma decisão inédita do Supremo que em 2016 decidiu revogar a prisão de funcionários e médicos de uma clínica de aborto de Duque de Caxias (RJ). Os profissionais haviam sido flagrados realizando um procedimento em uma gestante de primeiro trimestre. A Gênero e Número conversou com especialistas e representantes do debate pró e contra a descriminalização para entender o que está em jogo.

A ação que corre no STF é movida pelo PSOL e pelo Anis. Uma das autoras da peça inicial, a professora do Departamento de Direito da UFRJ Luciana Boiteux, explica que a argumentação está centrada nos conceitos de dignidade – a autonomia de tomar suas próprias decisões – e de cidadania, ou seja, ter as condições necessárias para viver uma vida digna.

Nesse sentido, o Código Penal de 1940 violaria o que está previsto na Constituição de 1988: além dos direitos das mulheres à cidadania e à dignidade, os direitos à vida, à igualdade, à liberdade, de não ser discriminada, de não sofrer tortura ou tratamento desumano, degradante ou cruel à saúde e ao planejamento familiar.

“O Código Penal é de uma época em que as mulheres não tinham nem direito ao divórcio”, diz Luciana, que concorreu no ano passado a vice-prefeita do Rio de Janeiro pelo PSOL, na chapa encabeçada pelo deputado estadual Marcelo Freixo. “A mulher era vista, na perspectiva machista e patriarcal, como a garantia da reprodução da espécie e não como uma mulher sujeita de direitos. Quando a gente olha a Constituição de 1988, a perspectiva muda radicalmente: temos direitos e garantias individuais, especialmente a perspectiva da dignidade da pessoa e a igualdade de homens e mulheres”.

Quem se opõe a essa posição se autointitula ‘pró-vida’ – isso porque um dos principais argumentos desse movimento se baseia na inviolabilidade do direito à vida, descrita no artigo 5º da Constituição Federal de 1988. Este direito também está no artigo 3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pelas Nações Unidas em 1948. Maria José da Silva, coordenadora estadual no Rio de Janeiro do Movimento da Cidadania pela Vida – Brasil sem Aborto, bate na tecla que é indissociável dos discursos contra a interrupção da  gravidez: a vida começaria na concepção e, por isso, estaria protegida legalmente.

“A vida é a nossa primeira garantia, é um direito universal. Se você deixa de defender esse direito, você pode matar e está tudo certo. Não concordamos que o aborto seja uma escolha da mulher sobre o seu próprio corpo”, explicou ela. “O bebê não é parte do corpo da mulher, a vida humana que está sendo gestada é uma segunda vida. O bebê não vai fazer mal nenhum para essa mulher."

Maria José cita ainda a Convenção Americana de Direitos Humanos – o Pacto de San José da Costa Rica, de 1969. O documento, assinado pelo Brasil em 1992, coloca no artigo 4º que “toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”.

Para Luciana, no entanto, utilizar esses documentos legais para defender a continuidade da criminalização do aborto é fazer uma leitura enviesada. Ela pontua que o direito à vida está previsto abstratamente na Constituição, que regulamenta direitos da pessoa já nascida. A advogada defende o argumento jurídico da proporcionalidade – segundo o qual os direitos do feto, um ser ainda em formação, sem capacidade autônoma de existência, não se sobrepõem aos da mãe, uma pessoa humana adulta.

“Eu acho que quem melhor caracteriza a posição desses grupos conservadores é o cantor Caetano Veloso na música ‘Haiti’: ‘Vê a alma no feto e não vê no marginal’. Esse foco no nascituro na verdade é um falso foco. A gente não nega que aquele embrião em formação tem expectativa de direito, sim, mas que nesse caso a gente não pode ver só um lado e não ver o lado da mãe, o lado da mulher. Sobrepor o direito do feto a ponto de submeter a mãe a torturas ou a uma privação de direitos não me parece razoável do ponto de vista racional”.
Nos primórdios do debate

A discussão é antiga. No século XIII, São Tomás de Aquino (1225-1274) refletiu sobre o desenvolvimento da consciência como critério para o estabelecimento de uma pessoa humana. Isso o levou a não classificar o aborto como homicídio, se feito nos primeiros dias de gestação. A alma racional, dizia o teólogo, só estaria presente após 40 dias da concepção. No caso de fetos femininos, o tempo de desenvolvimento seria dobrado: 80 dias.

O debate ético em torno do que pode ser considerado o começo da vida humana não é o único a entrar em pauta. Argumentos legais, sociológicos e de saúde pública também compõem as conversas sobre a prática.

Aborto clandestino continua a matar, especialmente mulheres negras e pobres
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a cada ano, são realizados 22 milhões de abortamentos inseguros, quase todos (98%) em países em desenvolvimento. Em 2008, a prática representou 13% das mortes maternas e 20% do total de casos de mortalidade e deficiências por gravidez e parto. Em 2011, o Ministério da Saúde registrou 135 mortes maternas por aborto no Brasil. E a clandestinidade pode significar que o número seja ainda maior.

Ao todo, a Pesquisa Nacional de Aborto 2016 estima que 4,7 milhões de mulheres entre 18 e 39 anos no Brasil já tenham feito um aborto ao menos uma vez na vida. Destas, 67% já têm filhos e 88% têm religião, sendo que 56% são católicas.

Os métodos abortivos recomendados pela Organização Mundial de Saúde, principalmente os realizados por meio de medicamentos, são mais seguros e têm eficácia de até 98%. Nos Estados Unidos, por exemplo, a taxa de mortalidade é de 0,7 a cada 100 mil abortamentos legais, segundo publicou a OMS em 2012. Em quase todos os países desenvolvidos (segundo a classificação do Fundo de População das Nações Unidas), é possível interromper a gravidez de forma segura e sem restrição legal.

Para o médico Thomaz Gollop, livre docente em Genética Médica pela USP, professor associado de Ginecologia da Faculdade de Medicina de Jundiaí e coordenador do GEA – Grupo de Estudos Sobre o Aborto, a discussão sobre o tema deve se pautar não pelo questionamento do início da vida humana, mas pela segurança e saúde da mulher.

“O limite de 12 semanas [proposto pela OMS e ecoado no processo de descriminalização no STF] foi estabelecido por uma razão médica muito clara: as interrupções de gravidez são muito mais seguras nesse período, com risco quase zero para a mulher. Depois desse tempo, há uma ossificação maior do feto e, em consequência, um risco maior”, afirma.

As opiniões na sociedade brasileira a respeito do assunto são contraditórias. Uma pesquisa Ipsos do ano passado indicou o Brasil como o segundo entre 23 países do mundo com a maior taxa de rejeição ao aborto, atrás apenas do Peru. Aqui, apenas 16% são favoráveis ao direito de interrupção da gravidez por desejo da mulher. A média global foi de 45%. Já um levantamento da ONG feminista Católicas pelo Direito de Decidir em parceria com o Ibope encontrou outros resultados com uma pergunta diferente: “quem deve decidir sobre o aborto?” Pelo menos 64% dos entrevistados responderam que é a mulher.

Pesquisadora do Anis – Instituto de Bioética, a antropóloga, documentarista e professora da UnB Débora Diniz prefere manter o debate sobre o aborto focado nas consequências que a ilegalidade da prática traz para as mulheres, que acabam por se submeterem a procedimentos de alto risco.

“As pesquisas de opinião respondem a perguntas pré-estabelecidas. Uma delas é ‘Você é contra ou a favor do aborto?’. Você conseguiria imaginar alguém fazer a pergunta ‘Você é contra ou a favor das religiões’? Essa pergunta não faz sentido porque ela está em um campo daquilo que as pessoas não têm que ser ‘contra’ ou ‘a favor’. Elas têm que escolher se vão ou não ter uma concepção religiosa”, reflete Débora. “O aborto é uma experiência de vida exclusiva de mulheres. Os efeitos da criminalização são diretamente para as mulheres mais pobres, para aquelas que não estão sendo representadas, inclusive entre nós. São mulheres com necessidades urgentes de vida”.

De fato, os riscos do aborto inseguro têm classe, cor e região. Estudo feito por pesquisadores do Instituto de Medicina Social da Uerj e da ONG Ipas Brasil apontou que as mulheres negras, analfabetas e da região Norte têm chances maiores de morrer em decorrência da prática. As negras têm 2,5 vezes mais chances de morrer do que as brancas. E, para as analfabetas, o risco é 5,5 vezes maior em relação àquelas com maior escolaridade.

“É uma lei ineficaz. As mulheres mais ricas interrompem a gestação em clínicas e não têm problema nenhum. São as mulheres negras e mais pobres que se expõem a riscos como perfuração de útero, de intestino e, possivelmente, até a esterilidade. Ninguém é a favor do aborto. O que não queremos é penalizar as mulheres. O Código Penal é ultrapassado e muita gente nem sabe que aborto dá cadeia”, elucida Thomaz.

A ginecologista-obstetra e coordenadora de assuntos bioéticos e científicos do Movimento Brasil sem Aborto Luciana Lopes Lemos, professora do Instituto Municipal da Mulher Fernando Magalhães da UFRJ, ressalta que procedimentos clínicos para interrupção da gravidez contêm riscos tanto em situações ilegais quanto legais. As consequências de uma curetagem, por exemplo, vão desde infecções, até perfurações uterinas, infertilidade em gravidezes posteriores e morte.

Na visão de Maria José, o movimento pró-vida, ao se colocar contra o aborto, também olha para a saúde da mulher, que fica sujeita a consequências como depressão e ansiedade. Ela cita um estudo feito no Hospital das Clínicas, da Faculdade de Medicina da USP, em 2009, que entrevistou 100 mulheres com sintomas de abortamento, tanto provocado quanto espontâneo. Os resultados apontaram que, embora as mulheres que provocaram o aborto tenham apresentado menos sentimentos de culpa e arrependimento, elas tinham mais sintomas de ansiedade e depressão do que as que viveram um abortamento espontâneo.

Uma análise subsequente foi publicada em 2011 com 156 mulheres no mesmo hospital de São Paulo e com 150 mulheres na Maternidade Escola Januário Cicco, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em Natal. A taxa de mulheres com depressão pós-aborto em Natal foi de 50,7%, e em São Paulo, de 32,5%.

“Existe uma cultura muito patrocinada pela mídia de que violentar o próprio corpo e o próprio útero é bom para si. Isso é consequente de uma sociedade patriarcal, da opressão à mulher, da manipulação do corpo da mulher. Existe uma inversão de valores nesse sentido. Se meu corpo tem valor, ele não vai ser lesado por ninguém, nem por uma estrutura patriarcal nem por homens que não querem ter filhos. À medida que as pessoas têm atividade sexual, elas sabem dos riscos. Por isso eu digo, prevenir sim, abortar não”.

Segundo ela, a assistência social seria a melhor alternativa para evitar o aborto e suas consequências. “Mesmo nos casos de estupro, quando falamos às gestantes das consequências pós-aborto, as mulheres desistem de fazer o procedimento. No Centro Social Nossa Senhora do Parto, em São Paulo, e em muitas outras instituições, é feito um trabalho em que as mães atendidas conseguem enxergar opções além”, conta.

No Parlamento, homens contra o direito das mulheres decidirem
Instado pela ministra Rosa Weber a se posicionar sobre o tema, o presidente Michel Temer enviou uma nota técnica à Advocacia Geral da União no dia 27 de março, opinando que “entre o sacrifício da existência de um nascituro e o sacrifício dos desejos (ou interesses ou vontades) da gestante, a opção que melhor atende à moralidade social e à ética política é aquela que preserva a expectativa de nascer do feto (ou de existir do nascituro) em desfavor dos interesses da mulher”.

O governo sugeriu que o tema não fosse discutido pela via judicial, mas sim na Câmara dos Deputados, pelo “poder competente que representa toda a sociedade, qual seja, o Poder Legislativo”. Atualmente, há duas frentes parlamentares pró-vida: a Frente em Defesa da Vida e da Família, com 236 deputados; e a Frente Mista da Família e Apoio à Vida, com 209 deputados e 6 senadores. Os dois grupos são liderados por homens: Alan Rick (PRB-AC) e Ronaldo Fonseca (PROS-DF), respectivamente. Atualmente, 37 projetos que tratam do tema estão em tramitação na Câmara, incluindo quatro que tipificam o crime de aborto como hediondo.

Um dos partidos mais vocais a respeito do assunto é o PSC. A legenda da família Bolsonaro entrou com um pedido no processo de descriminalização para se tornar ‘amicus curiae’, um ‘amigo da corte’ que entraria na ação para fornecer subsídios à decisão do STF. Flávio Bolsonaro, deputado estadual no Rio pela sigla, compactua com a ideia de Temer: caberia ao Parlamento, “casa do povo”, o papel de discutir o tema.

O deputado criou e preside na Assembleia Legislativa do Rio, a Alerj, a Comissão Especial de Planejamento Familiar – para tratar do tema que, segundo ele, deveria ser discutido pelas mulheres, mas também, e principalmente, pelos homens, para que não haja necessidade de abortar. Segundo ele, a ação do PSOL no STF seria “uma pedalada na democracia”, já que a proposta não encontraria maioria na Câmara.

Luciana Boiteux, no entanto, ressalta que há apenas 45 mulheres deputadas, menos de 10% de um Congresso que representa um eleitorado majoritariamente feminino. “Esse Parlamento nos torna minoria. Há projetos de descriminalização do aborto que são freados por posições políticas não republicanas, baseadas em uma moral religiosa que não pode se estender a uma política de Estado. Não foi uma escolha do PSOL, mas uma ausência de possibilidade do debate democrático no Parlamento”, explica.

A advogada reitera a defesa da escolha da via judiciária, adotada em países como os Estados Unidos, onde o aborto foi reconhecido como direito em 1973 pela Suprema Corte, no caso Roe v. Wade. “Em uma democracia, o papel do STF é justamente o de defender os direitos humanos e das minorias. Uma democracia não é feita somente pela maioria. E se o Parlamento passasse a pena de morte? Seria uma ditadura da maioria”, afirma.

“Controle genético” e moral religiosa entram no debate
Existem precedentes constitucionais que baseiam o pedido de ampliação da legalidade do aborto no STF. O aborto de anencéfalos no Brasil passou a ser permitido em 2012, após decisão também do Supremo. O relator do processo, ministro Marco Aurélio Mello, declarou seu voto na época dizendo que “cabe à mulher, e não ao Estado, sopesar valores e sentimentos de ordem estritamente privada, para deliberar pela interrupção, ou não, da gravidez”.

Neste ano, a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas decidiu que o acesso ao aborto legal e seguro é um direito humano, em um caso de aborto anencéfalo no Peru – onde, vale lembrar, a rejeição à prática é a maior do mundo. A anencefalia é uma má-formação rara do tubo neural que faz com que partes do cérebro e do crânio não se desenvolvam corretamente. O tempo de sobrevivência médio de recém-nascidos anencéfalos é de 55 minutos (de 10 minutos a 8 dias), segundo levantamento de 2010.

A posição pró-vida, no entanto, rejeita até essa exceção, que qualifica como "controle genético" – e argumenta que ela abre caminho para outras exceções em casos de deficiência. Em estudo do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, de 1999, 92% das cerca de 5 mil mulheres que receberam diagnóstico de Síndrome de Down no feto optaram pelo aborto. Em casos de anencefalia, 84%. Para as síndromes de Turner e Klinefelter, anomalias nos cromossomos sexuais, as proporções foram de 72% e 58%, respectivamente. Já quando o problema era espinha bífida, o índice de mulheres que escolheu o aborto foi de 64%.

“Se liberarmos a anencefalia, a microcefalia, os próximos serão Síndrome de Down, até chegar aos deficientes visuais. Serão escolhidos os que vão viver? Quero desafiar os promotores da ‘cultura da morte’ a visitarem a União de Mães de Anjos, em Recife. Ninguém vai chegar lá e entrevistar essas pessoas e perguntar se elas voltariam atrás e abortariam seu filho especial”, critica Maria José.

Católica, ela evita usar termos religiosos quando defende sua posição no debate do aborto. Quando dá palestras para grupos da Igreja, no entanto, não deixa de citar o versículo 19, capítulo 30, do livro do Deuteronômio, do Antigo Testamento: “Hoje, eu tomo o céu e a terra como testemunhas contra vocês; eu lhes propus a vida ou a morte, a bênção ou a maldição. Escolha, portanto, a vida, para que você e seus descendentes possam viver.” Para os “irmãos católicos”, resume Maria José, “é só seguir o mandamento de não matar.”

Porém, há correntes de teologia feministas, com representantes como a teóloga americana Mary E. Hunt (66) e a freira e teóloga feminista Ivone Gebara (72), que vão contra a ‘ordem oficial’ da Igreja, contrária à ampliação da legalização do aborto. Segundo Regina Soares Jurkewicz, uma das diretoras da ONG Católicas pelo Direito de Decidir, a proibição do aborto tem muitas contradições: uma das mais importantes é o direito a recorrer à própria consciência. De acordo com o catecismo da Igreja Católica, “o ser humano deve obedecer sempre ao julgamento de sua consciência”. Por esse viés, o Papa Francisco já declarou que perdoa as mulheres.

“A proibição [do aborto] não é um dogma, é uma questão disciplinar. A livre consciência é um dos princípio do pensamento cristão”, explica Regina. “O que defendemos não é ser contra ou a favor do aborto. A questão é ser a favor do processo de legalização, que dá mais controle sobre o número de abortos. Essa é uma questão de âmbito privado e de direito individual. A Igreja Católica tem o direito de falar, mas também tem o dever de ouvir e de não legislar a partir da teologia”.

Visões latino-americanas sobre o tema
Em outros países da América Latina, o aborto continua a ser uma discussão acalorada. No Chile, a lei que regula o assunto, de 1874, é chamada de “draconiana” pelo Center for Reproductive Rights, ONG internacional de direito das mulheres. Está prestes a mudar depois do Senado chileno aprovar, no dia 19 de julho, a descriminalização do aborto em casos de risco para a vida da mãe, por inviabilidade do feto e por estupro. Pelo menos 73% da população apoia a proposta e as denúncias de crime de aborto no país têm diminuído. Em 2016, foram apenas 14, 10 pela realização de aborto consentido.

Até que a lei seja sancionada, não há nenhuma exceção para a terminação da gravidez no Código Penal, nem mesmo se esta ameaçar a vida da mulher. Um código de saúde, criado em 1931, permitia o aborto terapêutico, mas a regra foi suspensa durante a ditadura de Pinochet, em 1989. Poucos países no mundo ainda têm um nível de punição tão severo para mulheres que abortam – outros exemplos são Nicarágua, El Salvador, Malta e República Dominicana.

A clandestinidade do aborto no Chile torna difícil a obtenção de números confiáveis sobre o assunto. O único estudo nacional, de 1990, indica uma média de 160 mil abortos por ano, uma taxa de 45 a cada 1.000 mulheres entre 15 e 49 anos. Outras estimativas mais recentes apontam cifras que variam de 60 mil a 300 mil, segundo o Guttmacher Institute.

No Uruguai, país com a legislação de aborto mais liberal da América Latina, a discussão sobre o tema também está no centro do debate público – mas por outros motivos. Com o procedimento legalizado desde 2012 para gravidezes de até 12 semanas, a conversa se centra no nível de dificuldade do acesso pelo sistema estatal e sobre quem, em última instância, paira o poder de decisão para interromper uma gravidez.

Uma decisão judicial permitiu uma situação sem precedentes no país — um homem conseguiu ter o direito de impedir o aborto de sua ex-companheira, com 10 semanas de gravidez. O processo abriu um recurso de inconstitucionalidade contra a lei de aborto, mas a ação caiu por terra quando a jovem perdeu o bebê de forma natural. O Tribunal de Apelações do Uruguai chegou a criticar a juíza da decisão inicial, considerando que ela incluiu apreciações pessoais para defender o feto, que "para nosso direito (o embrião) não é um sujeito de direito, ao não ser considerado uma pessoa (no sentido jurídico da palavra)", informou o El Observador.

Os setores contrários argumentam que a legalização tem aumentado os números de aborto no Uruguai – os últimos dados, de 2015, apontam aumento de 9% em relação ao ano anterior com 9.362 procedimentos. No entanto, a responsável da área de Saúde Sexual e Reprodutiva do Ministério de Saúde Pública, Ana Visconti, afirma que não se pode falar de uma tendência, pois a lei é muito jovem. Mesmo com a provável subnotificação das práticas abortivas quando elas ainda eram ilegais, as cifras atuais ficam abaixo das anteriores à despenalização.

No final do ano passado, ela declarou à imprensa que o conhecimento sobre a lei está aumentando, “as mulheres estão sabendo quais são seus direitos, estão confiando mais nos serviços e por isso estão fazendo a interrupção voluntária da gravidez dentro do sistema [do governo]”, informou o El País do Uruguai. Por outro lado, as organizações feministas CLADEM, CNS Mujeres, Cotidiano Mujer, Mujer Ahora, Mujeres en el Horno e Ovejas Negras reclamam que há pouca informação sobre a lei para a população em geral.

“Barreiras seguem empurrando muitas mulheres a praticarem um aborto na clandestinidade, deixando-as como antes da lei, expostas a graves riscos de saúde e possíveis consequências penais”, comunicaram as organizações no lançamento do Projeto Sin Barreras, para conscientização do assunto.

Apesar dos entraves, o caso do Uruguai foi elogiado como um modelo de institucionalização de abortos seguros. Uma década antes da lei de despenalização, o país já havia implementado um projeto piloto de educação sexual, acesso a métodos contraceptivos e orientação sobre aborto para frear as estatísticas de mortalidade materna.

Hoje, para realizar um procedimento, é preciso passar por cinco etapas: uma primeira consulta médica para determinar o tempo de gravidez; uma entrevista com um ginecologista, um assistente social e um psicólogo; um período de reflexão de cinco dias; uma outra consulta para ratificar a decisão do aborto e receber a medicação; e finalmente, uma última visita ao médico para confirmar a interrupção da gravidez.

Um relatório do International Journal of Gynecology and Obstetrics destacou o Uruguai como o país com a menor taxa de mortalidade materna de toda a América, atrás apenas do Canadá. A publicação atribuiu o fato ao modelo de redução de risco e danos do aborto inseguro, seguido pela lei de despenalização de 2012. A interrupção da gravidez foi responsável por 8,1% das mortes de mães no período entre 2011 e 2015, em oposição à taxa de 37,5% de 2001 a 2005.

“Da forma como vemos, somos o movimento pró-vida”, disse Lionel Briozzo, vice-ministro de Saúde Pública uruguaio no ano passado ao The New York Times. “Em toda a América Latina, é possível fazer esse método de redução de danos, para prover acesso à informação com neutralidade e humanidade. Este é o direito das mulheres”.

 Alessandra Monnerat é jornalista e colaboradora da Gênero e Número.

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