27 DE JULHO DE 2017
Pela primeira vez este ano, o evento de maior destaque no calendário literário nacional terá maioria feminina entre os convidados.
Por Natália Mazotte*
Foram necessários 15 anos para que a prestigiosa Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) formasse uma programação composta, em sua maioria, por mulheres. Em todas as edições do evento, a cada quatro convidados, apenas um nome foi feminino. Este ano, serão 24 autoras e 22 autores nos palcos do evento, que acontece de 26 a 30 de julho.
A Flip de 2017 também amplia a diversidade de vozes negras, que historicamente foram representadas por menos de 5% dos palestrantes: 25 em um total de 569. Seis mulheres negras compõem as mesas desta edição, o dobro do apresentado em todas as 14 anteriores somadas.
Os números evidenciam um esforço ativo da atual curadora do evento, Joselia Aguiar, de colocar a diversidade no centro do debate literário, o que vem ganhando fôlego desde 2014. “Há três anos, essa discussão praticamente não existia. Se alguém falasse disso, falaria sozinho. E as explicações são conservadoras: historicamente há mais homens escrevendo, fatores extraliterários não devem influenciar a escolha de autores”, afirmou em entrevista à Gênero e Número.
Segunda mulher a assumir a curadoria da Flip, Josélia precisou realizar uma pesquisa mais extensa para conseguir trazer novos nomes à cena. “Se eu me restringisse ao que grandes editoras, críticos ou jornais recomendam, conseguiria finalizar minhas escolhas muito mais rapidamente. Há um trabalho maior de buscar diversidade, conhecer novas obras e ver como elas dialogam. Esse esforço hoje pra mim é totalmente justificável, acho que o programa fica mais interessante. Mas outras pessoas podem preferir destacar nomes que estão mais à mão.”
A representatividade proposta pela organização do evento este ano, de fato, demanda ir além do mainstream literário, ainda composto predominantemente por homens brancos. É o que revela um estudo coordenado por Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília (UnB). Ao consultar 258 romances publicados entre 1990 e 2004 pelas editoras Companhia das Letras, Record e Rocco, a pesquisadora encontrou 94% de autores brancos, 73% deles homens, do Rio de Janeiro e de São Paulo (47% e 21%, respectivamente).
A pesquisa ainda investigou a representação dos personagens nos romances brasileiros, e os números não diferem muito do perfil dos autores: maioria masculina (62%) e branca (92%). Embora já tenham superado os homens como público leitor no país, as mulheres, especialmente as mulheres negras, se veem menos refletidas nas obras literárias.
A representatividade das mesas da Flip desde que foi criada, portanto, não deixa de ser espelho de um mercado editorial pouco paritário em termos de gênero e raça.
Raízes históricas
O aumento da presença de autoras em Paraty é celebrado pela escritora Beatriz Bracher, co-fundadora da Editora 34. Com seis obras publicadas e diversos prêmios de literatura, é uma das cinco mulheres que, em 15 anos de Flip, foram convidadas a regressar aos palcos. Na ala masculina, 45 autores estiveram no festival mais de uma vez. “Nesses espaços, ter mais mulheres é muito importante, isso incentiva meninas a se enxergarem como potenciais autoras”, afirma.
Beatriz, contudo, não atribui aos editores a responsabilidade por catálogos predominantemente masculinos. “Vejo por mim e por meus colegas, estamos atentos e interessados em ter paridade de gênero e diversidade étnica. Mas chegam pouquíssimos originais. Os levantamentos se concentram em mostrar o número de publicações, mas só quem está dentro sabe o perfil das pessoas que enviam suas produções a uma editora”.
A dificuldade de ampliar o número de mulheres na literatura tem raízes históricas e decorre de práticas machistas que não são exclusivas deste campo cultural. O livro “Profissões para mulheres e outros artigos feministas” compila ensaios e reflexões da renomada escritora inglesa Virginia Woolf, nos quais ela expõe os empecilhos que o fato de ser mulher gera para a carreira literária: a falta de acesso à educação, o tempo reduzido pela maternidade e pelos trabalhos domésticos, as chances desiguais de autonomia financeira em um mercado de trabalho dominado por homens.
“É mais complexo que culpabilizar um setor. Os desafios envolvem a formação das mulheres e começam muito antes delas alcançarem as Editoras. Primeiro precisam ter autoconfiança para se autorizarem a serem escritoras. Deveríamos nos preocupar em atuar nesse ponto, em criar espaços para encorajar mais mulheres a se verem autoras”, ressalta Beatriz.
A escritora Martha Lopes concorda que o acesso posterior das mulheres à educação e a falta de segurança para colocar o que escrevem no mundo façam parte do problema, mas não exime o mercado editorial, que frequentemente reforça estereótipos sobre a produção literária feminina. “As casas editoriais têm uma série de estigmas sobre o tipo de literatura que uma mulher deve produzir: deve ter sempre romantismo, delicadeza, temas que envolvam maternidade, questões domésticas. É importante repensar o que é a literatura feminina. É recorrente a ideia de que homens escrevem para o mundo e mulheres escrevem só para mulheres”, afirma.
Movimentos por mudanças
A discussão de gênero ganhou espaço na Flip em 2014, depois da divulgação de um programa que incluía apenas 7 mulheres entre 43 autores. Martha e a editora Laura Folgueira iniciaram uma campanha virtual com a hashtag #KDmulheres?” e organizaram rodas de conversa durante o evento. No ano seguinte, a participação feminina no festival dobrou, e em 2016, atingiu praticamente a paridade, mas as críticas ficaram por conta da ausência de escritoras negras. O curador da Flip em 2016, Paulo Werneck, reconheceu a falha.
O movimento “KDmulheres?” se tornou um portal que hoje abriga uma série de entrevistas com autoras nacionais que tiveram trabalho relevante e ficaram apagadas na história. Outras iniciativas também despontaram para jogar luz à literatura produzida por mulheres, como a newsletter “Mulheres que escrevem“, o blog “Veredas” e os clubes de leitura “Leia mulheres” e “Leia mulheres negras“.
“Fiquei muito satisfeita de ver a curadoria, e fez muita diferença colocar uma mulher como curadora, essa sensibilidade aparece. Mas a gente continua batendo no debate interseccional, ter mais mulheres negras, indígenas, e pluralizar cada vez mais essa programação. Tem muita coisa boa sendo produzida na cena independente”, conclui Martha.
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