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segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Marie Claire acompanhou o ritual de purificação de mulheres que se libertaram do Estado Islâmico

Após três anos de ocupação de Mossul, terceira maior cidade do Iraque, o Estado Islâmico foi finalmente expulso pelo exército. Com a libertação, milhares de mulheres yazidis, minoria curda torturada e estuprada durante o período, estão voltando para casa. O retorno é acompanhado de uma cerimônia religiosa que devolve dignidade às pessoas estraçalhadas pelo terror. Marie Claire acompanhou o ritual

23.08.2017 - TEXTO E FOTOS MARCIO PIMENTA

Fazia 35 ºC em uma noite de outono de 2017, quando 13 iraquianas arriscaram a vida para escapar da tortura pelas mãos do Estado Islâmico (ISIS) em Mossul, no norte do Iraque. Esperaram o breu para burlar a vigília. A rota era cheia de riscos: depois da fronteira urbana, tiveram de percorrer um deserto de pedras e montanhas, onde atiradores de elite se escondiam em trincheiras. O ritmo da fuga foi impossível para Hure Kaso Murad, 66 anos, que acabou ficando para trás. Sozinha, continuou caminhando por um dia e meio até encontrar uma casa com luz acesa. Sem saber se os moradores eram apoiadores do ISIS e há quase dois dias sem beber água, não teve outra opção a não ser bater na porta. Por sorte, era uma família xiita (que não apoia o ISIS), que a abrigou por alguns dias enquanto aguardavam o avanço do exército que combateu os terroristas. Com o recuo da facção, a levaram até o território curdo, livre da guerra e também no norte do país, onde Hure reencontrou, finalmente, a liberdade.

“Havia muitos mortos espalhados pelas ruas. Os cães comiam os corpos, as mãos e as cabeças ao relento”, relembrou Hure sobre Mossul, ainda sob domínio dos terroristas, enquanto me servia um chá preto sentada no chão de cimento do templo sagrado de Lalish, 54 km ao norte da cidade – maior símbolo religioso dos yazidis, minoria religiosa curda à qual pertence. Hure exibia bom humor e a confiança de quem voltou para a segurança de um lar. Assim como centenas de mulheres yazidis, ela está renascendo. Com o enfraquecimento do ISIS na região, as mulheres sequestradas e escravizadas pelos terroristas têm fugido do cativeiro, reencontrado suas famílias e voltado à rotina. O ritual que simboliza essa transição é o batismo na fonte Zamzam, em Lalish, onde os yazidis podem se “purificar”. Forçadas durante o cativeiro a se converter ao islamismo e violentadas física e sexualmente centenas de vezes por terroristas, elas precisam passar pela cerimônia para que sejam aceitas novamente no grupo. E, mais importante, para que se autorreconheçam yazidis novamente.

Perseguição religiosa 

Grupo mais odiado pelo Estado Islâmico, essa minoria habita o Monte Sinjar, no Iraque, e partes da Síria, Turquia, Irã e Armênia. Com influências de antigas religiões iranianas, do islamismo, judaísmo e cristianismo, os yazidis acreditam que Deus, depois de criar o mundo, o colocou sob o cuidado de sete anjos. O líder deles seria Tawûsê Melek, ninguém menos que o diabo, segundo islâmicos e cristãos. Por isso, são conhecidos como adoradores do demônio e isso já lhes custou perseguições e genocídios ao longo dos séculos – segundo a guia e tradutora iraquiana que me acompanhou nesta reportagem, Alhan Murad, esta é a 73ª vez que um grupo se voltou contra eles. Até então, a mais recente tentativa havia sido feita pelo ex-ditador Saddam Hussein.

“Tínhamos uma vida calma e confortável no Sinjar até que os terroristas chegaram. Em dois anos, fui vendida 13 vezes”

Turkia Hussein, 25 anos, ex-escrava sexual

Em agosto de 2014, o Estado Islâmico atacou o Sinjar, onde se concentrava a maior parte dos seguidores da religião no Iraque. Na investida, sequestraram 5 mil mulheres e crianças para mantê-las como escravas, muitas delas sexuais. Também assassinaram milhares de homens na frente de suas famílias, com tiros, decapitação, ou os queimaram vivos. Os que sobreviveram foram obrigados a lutar ao lado dos terroristas. No ano passado, a perseguição virou pauta na ONU, depois que a advogada britânica Amal Clooney passou a representar a também iraquiana Nadia Murad, ex­escrava sexual que, depois de fugir do cativeiro e mudar para a Alemanha, passou a viajar o mundo para chamar a atenção das autoridades para o tema. Por causa da peregrinação, foi indicada ao prêmio Nobel da Paz no ano passado.

De origem curda, os yazidis são uma população rural. “A vida era diferente”, disse Turkia Hussein, 25 anos, mãe de dois filhos, sobre a rotina antes do genocídio. “Era tudo muito simples e tínhamos os campos verdes do Sinjar. Não precisava trabalhar, só cuidava da família. Meu marido era soldado curdo (exército inimigo do ISIS). Tínhamos uma vida confortável e calma. Até que os terroristas chegaram.” Ela tentou fugir com a família no momento do ataque. Entraram num carro e aceleraram pela estrada que os levaria ao território curdo. No caminho, os terroristas sequestraram ela e o marido. Os filhos ficaram com os avós, que também estavam no carro. O marido foi obrigado a combater pelo ISIS – ela não tem notícias dele – e Turkia foi levada para a Síria, onde foi forçada a decorar o Alcorão. De volta ao Iraque, virou escrava sexual. Um pesadelo que durou dois anos.

“Fui vendida 13 vezes”, disse. Depois da captura, os criminosos separaram as mulheres jovens das adultas, as que já tinham sido casadas e as solteiras, distinguindo assim as virgens. A cada novo cativeiro, torturas, espancamentos e estupros. Para ela, esse período ainda é uma cicatriz aberta. Após diversas tentativas fracassadas de fuga – sempre punidas com violência –, Turkia elaborou um plano para conseguir a liberdade. Cortou a própria gengiva e deixou sangrar por dias. Disse para seu dono que estava doente, com câncer, e, portanto, se tornara um fardo. Por meio de uma rede de tráfico de pessoas, encontraram a família dela e a revenderam para eles. Ela estava, enfim, livre novamente.

O ritual do recomeço 

As yazidis que conseguiram sobreviver à fuga reencontraram a cidade completamente destruída pela guerra entre o Estado Islâmico e as forças iraquianas. Foram abrigadas em acampamentos de refugiados ou levadas para a Europa por ONGs de direitos humanos, como a Yazda, que tem Nadia como porta-voz. “Elas agora estão sendo reintegradas à sociedade e poderão ter uma vida plena”, disse Silvia Zunino, diretora da Yazda, ao se referir ao processo de rebatismo.

Quando encontrei Turkia e Hure no templo de Lalish, almoçaram uma comida quente, saladas e frutas, na companhia de familiares e antigos conhecidos. Após a refeição, limparam o ambiente e se dirigiram a uma pequena antessala, onde estava a líder religiosa Asmar Asmail. O ritual não levou mais que alguns minutos. Primeiro, as fiéis se agacharam e molharam as mãos nas águas enquanto rezavam. Levantaram-se, Asmar proferiu algumas palavras e jogou água na cabeça delas. Foram, então, para outro prédio, a metros dali. Na entrada, beijaram os mármores de sustentação, em sinal de respeito ao templo. Abriu-se, então, um grande salão repleto de tecidos de cores vibrantes, onde cada fiel pôde fazer desejos depois de dar três nós. Em seguida, entraram em uma caverna, onde estava a segunda fonte sagrada, Zamzam. Fecharam os olhos, deslizaram as mãos pelas águas e lavaram os rostos. “Estou nascendo de novo. Não acreditava que sobreviveria e estaria aqui novamente”, disse Turkia. Hure rezou em voz alta. “Sou yazidi novamente.”

Por fim, dirigiram-se a outro salão, onde jogaram um pano para o alto, para ficar suspenso em uma coluna de concreto. A tradição diz que quem consegue fazer isso terá sorte. Ambas realizaram o feito. Já na área externa do templo, caminharam e sorriram por estarem de volta ao seu povo, à sua crença, aos campos verdes, com a certeza de que os únicos que perderam a honra foram os terroristas do Estado Islâmico.

Fiéis deixam vasos de velas no templo para pedir paz (Foto: Marcio Pimenta)

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