21 DE JUNHO DE 2017
Por Natália Mazotte*
Hildete Pereira de Melo é economista da Universidade Federal Fluminense e pesquisa há mais de 30 anos temas relacionados a gênero e trabalho. Quando questionada, tem na ponta da língua dados sobre a situação feminina no mercado brasileiro, mas também coleciona histórias que vão além dos números: é militante feminista desde a década de 70 e já perdeu as contas dos eventos que participou, inclusive na vida política, onde só a voz masculina era ouvida. Em entrevista à Gênero e Número, a pesquisadora é assertiva ao dizer o que impede a mulher de ascender no mercado de trabalho: "Há um teto de vidro nas nossas cabeças. E ele se chama patriarcalismo."
GÊNERO E NÚMERO – As mulheres têm ocupado mais espaço no mercado de trabalho, inclusive em campos que antes eram hostis à participação feminina. Estamos caminhando pro fim da divisão sexual do trabalho?
Hildete Pereira de Melo – De uma maneira geral, a participação tem aumentado, mas permanecem as barreiras. As mudanças não são suficientes para criar a equidade. As mulheres conseguem fazer todas as coisas que os homens fazem, mas há uma dificuldade dos homens assumirem os nossos papéis. Há 40 ou 50 anos, éramos 20% do mercado, hoje somos em torno de 45% da média nacional da população ocupada nas áreas metropolitanas. Mas isso já está estacionário há mais de uma década. Não conseguimos igualar, temos hoje cerca de 40 milhões de mulheres em idade ativa que são apenas donas de casa. E o trabalho reprodutivo continua atrelado ao feminino.
Quais foram as principais mudanças no mercado de trabalho feminino nos últimos anos?
Hildete – O mercado de trabalho feminino é mais instável, por causa da reprodução da vida. Até por isso que as mulheres não conseguem se aposentar por idade. Elas seguem concentradas em atividades direcionadas ao cuidado. Desde que o primeiro censo foi realizado, em 1920, a ocupação predominante entre as mulheres sempre foi de empregada doméstica. Isso permanece até o censo de 2010, e a novidade vem apenas em 2013, com os dados da PNAD anual, que aponta que o número de mulheres comerciárias tinha ultrapassado o de domésticas. A PNAD de 2015 também mostra que as atividades de educação e saúde despontaram entre as mulheres, seguidas das comerciárias e empregadas domésticas – ainda são quase 6 milhões de empregadas. Essa configuração acompanha a trajetória feminina, embora sejamos mais educadas hoje do que há algumas décadas e ocupemos uma parcela bem maior do mercado.
Ou seja, os redutos masculinos continuam os mesmos…
Hildete – Em grande parte sim. Podemos pegar como exemplo a ciência. As mulheres constroem a ciência junto com os homens, mas peça para alguém dizer o nome de uma cientista mulher de destaque. Eu te digo: Marie Curie inventou a radiografia, sem ela o diagnóstico por imagens não existiria. Somos grandes exportadores de soja, mas ninguém cita que uma grande responsável por isso é a agrônoma Johanna Döbereiner, cuja pesquisa fez diminuir o custo de produção da soja no Brasil. Não conhecemos nossas inventoras. Quem ganha os prêmios Nobel são os homens. As mulheres são mais educadas, mas não ocupam as posições de vanguarda. Lançamos uma pesquisa, em 2014, para mostrar quem eram as cientistas brasileiras com grau PQ1 no CNPq, a mais alta bolsa dada pelo governo brasileiro, para pesquisadores no topo da carreira. 23 mulheres até 40 anos tinham a PQ1 até aquele ano – e 280 homens. A carreira cientifica ainda é masculina, embora as mulheres estejam nos laboratórios produzindo junto.
Mais educadas e mais capacitadas que os homens, a representatividade feminina em cargos de liderança continua muito baixa. A que você atribui essa dificuldade de ascensão na carreira? O que hoje pode ser considerado o maior obstáculo pro avanço das mulheres no campo profissional?
Hildete – Há um teto de vidro nas nossas cabeças, e ele se chama patriarcalismo. A visão de que a mulher deve ocupar espaços inferiores e de que nossa principal função é a reprodutiva. Veja o caso da política. O poder político no Brasil é completamente dominado por homens. Como reverter a desigualdade sem ter mulheres em espaços de poder? Nas empresas, os espaços de poder também são majoritariamente ocupados pelos homens, elas são apenas 17% dos postos de chefia empresariais. As mulheres não detêm nem 2% da riqueza mundial. As mulheres são comandadas e vistas como boas reprodutoras. Os homens avançam mais rápido na carreira porque não têm o trabalho doméstico nas costas.
A discriminação salarial também é um ponto importante quando olhamos para as assimetrias de gênero, e não apenas no Brasil. Há modelos em outros países de políticas que conseguiram reduzir a diferença salarial entre homens e mulheres?
Hildete – Esse ponto é chave para a gente enxergar como o patriarcalismo se manifesta nas relações de trabalho. Quanto maior a escolaridade, maior a diferença salarial entre homens e mulheres. Um exemplo é o salário da CEO da GM nos EUA, que foi contratada ganhando 50% do salário do seu predecessor, um homem. Se vamos para empregos que pagam salário mínimo, a discrepância diminui. O preconceito nas políticas salariais aparece mesmo na ponta, quando comparamos homens e mulheres de maior escolaridade ou de cargos mais elevados. No Brasil, algumas políticas de incentivo às empresas tentaram reverter esse cenário, como o programa Pró-Equidade, que incentivava as empresas que elaborassem políticas internas para promover equidade de gênero. Foi um programa pensado na gestão da ex-ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres Nilcea Freire, enquanto Dilma ainda estava no Ministério das Minas e Energia. Dilma teve um papel fundamental pro programa: falou com todos os presidentes das empresas do setor de petróleo e gás para aderirem. Eu fiz parte desse programa como avaliadora e a dificuldade era imensa. As empresas eram ótimas adotando ações de conscientização, mas na hora de mexer no cronograma de promoções era diferente. Na Espanha e na França há programas semelhantes que serviram de inspiração, que oferecem incentivo para as empresas promoverem planos de carreira equitativos para homens e mulheres.
Uma outra discrepância diz respeito às horas trabalhadas. No trabalho produtivo (remunerado), as mulheres não ultrapassam os homens. Mas se somarmos o trabalho reprodutivo (não remunerado), elas trabalham em média 7,5 horas a mais que os homens por semana, segundo estudo do IPEA com dados do IBGE. Em 2015, a jornada total média das mulheres era de 53,6 horas, enquanto a dos homens era de 46,1 horas. Como reduzir essa carga sobre as mulheres?
Hildete – As mulheres trabalham mais quando somamos o trabalho reprodutivo com o trabalho produtivo. Mas a jornada fora de casa é menor. Elas acumulam os dois tipos de trabalho, e aí não conseguem igualar o tempo do trabalho produtivo masculino. Então o primeiro caminho seria os homens se conscientizarem que precisam dividir as tarefas domésticas. É preciso pensar programas como creches e escolas integrais. Hoje só temos creches para 23% das crianças, há um déficit colossal. Escola em tempo integral só existe para os ricos, e mesmo assim não há muita oferta. 90% das crianças e adolescentes são atendidas pelas escolas públicas, ou seja, o grosso da população depende do sistema educacional público. Expandir as creches para toda a população de 0 a 3 anos e oferecer escola integral para crianças de até 14 anos é o sonho. Realizável, porque a França, por exemplo, já oferece escolas públicas em tempo integral para população. Mas isso demanda uma luta política ainda enorme.
Quando falamos de políticas de distribuição de renda – como o Bolsa Família – as mulheres costumam ser as beneficiárias diretas. Por quê?
Hildete – As mulheres são mais pobres que os homens em todas as faixas etárias, ainda ganham 70% do que eles ganham. O Bolsa Família está concentrado nas mulheres porque elas são as responsáveis pela família. Essa fórmula só mostra que elas são encarregadas da reprodução, o Estado reconhece que a responsabilidade dos cuidados é feminina.
O Estado estaria então reforçando os estereótipos de gênero?
Hildete – Isso é uma briga e eu não entro nela. Há uma corrente do feminismo que é contra o Bolsa Família porque diz que reforça a visão da mulher enquanto reprodutora da vida. O problema é que eu sou realista, eu posso ficar de espada em punho para fazer com que os homens dividam os trabalhos dos cuidados, mas hoje a realidade ainda não é essa, as mulheres que colocam o feijão nas bocas dos filhos, então o Bolsa Família cumpre um papel. E aumentou a renda das mulheres. Agora, precisamos também de ações que levem a mudar os papéis determinados pelo gênero.
Como você avalia o impacto da reforma trabalhista em tramitação no Congresso para as mulheres?
Hildete – Essa reforma vai desconstruir completamente toda a legislação social brasileira, e isso não afeta só as mulheres. Embora elas sejam mais afetadas porque já enfrentam desde o início um mercado que as desfavorece. As mulheres já estão nos empregos mais precários, mas quando jogamos a precarização para todo o conjunto de trabalhadores, certamente a condição delas vai piorar ainda mais.
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