Não há nada mais gostoso e mais arriscado do que tomar a decisão de morar junto
IVAN MARTINS
09/08/2017
A gente sabe, ou deveria saber, que sentimentos não estão submetidos ao tempo e não têm prazo fixo. Eles começam de forma inesperada e terminam de maneira imprevisível. Amores têm ritmo próprio que ignora o calendário, despreza planos de longo prazo e atropela prestações.
Apesar disso, gente apaixonada precisa tomar decisões práticas, e algumas delas têm implicações graves no cotidiano. Como morar junto, por exemplo. Não há nada mais gostoso, e não há nada mais arriscado. O romance que avançava de vento em popa em casas separadas pode naufragar melancolicamente ao se mudar para o mesmo endereço.
Por conta dessa má experiência, tenho amigos e amigas determinados a nunca mais dividir o guarda-roupa com ninguém. Eles dizem que a partilha de quarto e banheiro não funciona. Reclamam que a rotina mata o tesão e faz prosperar o tédio e a impaciência. Juram que namorar em casas separadas é mais gostoso, e que a distância assegura a continuidade do desejo, da boa vontade e do respeito.
Eu entendo o que eles dizem, mas não consigo concordar com a conclusão. Acho que ela ignora tudo de bom que acontece quando as pessoas passam a dormir na mesma cama e tomar café juntas todas as manhãs. Proximidade e a rotina criam novas intensidades de afeto e desenvolvem outras maneiras de ser e de pensar. Da fusão de espaços e de tempos resultam mudanças internas que não existiriam em vidas separadas – e me parece que algumas pessoas têm medo disso.
A gente vive numa sociedade que estimula a individualidade. Somos incentivados a cultivar isoladamente os nossos sonhos, gostos e manias. Tudo que ponha limite ao nosso egoísmo é tratado como intromissão indevida. Nesse tipo de ambiente, com essa espécie de mentalidade, é claro que a convivência íntima se torna intolerável – o outro atrapalha, o outro incomoda, o outro cansa.
Mas será que isso é verdade?
Na minha experiência, o outro é uma bênção que desperta sorrindo e me beija, alguém que me abraça de noite e toca os seus pés nos meus, um ser humano que, muito de perto, e com todo o direito, questiona as minhas ideias e a minha visão do mundo, que me alerta para o que eu não percebo em mim mesmo – e que põe em xeque as minhas convicções e os meus hábitos.
O outro me desafia, me surpreende, me faz refletir e mudar, e isso é o contrário da estagnação, da certeza, do envelhecimento precoce e da morte.
As mulheres que eu recebi em minha vida, e que tiveram a coragem de me acolher na delas, apesar de enormes diferenças, foram parceiras essenciais. Elas me salvaram da mediocridade afetiva, do vazio da onipotência, da solidão ruidosa e triste da multidão. Sem a convivência diária e íntima com elas, eu não seria quem eu sou, e gosto de pensar que elas tampouco seriam quem são.
Para viver essas coisas, no entanto, é preciso se expor ao risco de ser magoado e abandonado. Ou mesmo humilhado pelo fracasso. Mas o que é a vida sem esse tipo de confusão – um cotidiano cinzento de bordas seguras e horizontes repetidos?
Eu acho que a gente pode mais. Podemos ser mais corajosos ao nos entregar e mais generosos ao dividir. Podemos ir mais longe e mais fundo em nossos sentimentos partilhados. Ainda que a nossa vida tenha gatos e a do outro tenha cachorros, há de haver um jeito feliz de juntá-las – até que os sentimentos nos separem.
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