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domingo, 13 de agosto de 2017

‘Estupro é a forma mais explícita da violência de gênero que vemos todos os dias’




31 Maio 2016
 

    Assobiar para uma mulher na rua, rir de piadas que as representam como seres inferiores, apreciar propagandas que as colocam como um objeto a ser utilizado por homens. Todas essas atitudes, cotidianas e que podem parecer inofensivas para grande parte da população, colaboram para que se crie uma sociedade machista e, assim, são também fatores que incidem sobre a chamada cultura do estupro. A discussão sobre o tema veio à tona especialmente após o estupro coletivo de uma adolescente no Rio de Janeiro, o qual foi filmado e divulgado nas redes sociais pelos criminosos.
    A reportagem é de Débora Fogliatto, publicada por Sul21, 31-05-2016.
    As imagens da menina, que foi violentada por mais de 30 homens, causaram espanto em grande parte da população brasileira, que rapidamente denunciou o caso — foram cerca de 800 comunicações sobre o crime para o Ministério Público do Rio de Janeiro — e lançou campanhas nas redes sociais. Por outro lado, o caso também demonstrou a frequente culpabilização da vítima, termo usado por especialistas para descrever as formas como a sociedade culpa as mulheres pelas violências que elas sofrem.
    Poucos dias após a divulgação do vídeo, “já surgem justificativas na mídia ou nas redes sociais tentando mostrar que a culpa é da menina”, aponta a doutoranda em Comunicação e pesquisadora sobre gênero Pâmela Stocker. Primeiramente, foi divulgada a informação de que a jovem teve um filho aos 13 anos, depois surgiram boatos de que ela estaria envolvida com o tráfico. “É um mecanismo para tentar relativizar o estupro, o próprio delegado que era o responsável até ontem pelo caso disse que não havia como comprovar [o estupro], mesmo com todas as provas divulgadas pelos próprios criminosos”, destacou. Após pressão por parte da sociedade, ele foi afastado do caso e a nova delegada responsável já afirmou estar convicta de que houve crime de estupro.
    O delegado que antes era responsável pelo caso também questionou a vítima se ela já teria realizado sexo coletivo e, na internet, circularam informações de que a jovem frequentemente trocaria sexo por drogas. “É muito chocante ler isso, porque é como se isso justificasse [o que aconteceu]. A própria delegada que depois assumiu o caso destaca que a menina está visivelmente desacordada no vídeo, as provas são mais do que suficientes para mostrar que houve violência”, completou a professora da UFRGS e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Gênero e Sexualidade (NupSexPaula Sandrine Machado.
    Embora tenha chamado a atenção pela brutalidade, o estupro da jovem não é um caso isolado, visto que a cada 11 minutos, uma mulher sofre essa agressão, segundo dados levantados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). O número de vítimas, porém, deve ser muito maior na realidade, alerta Pâmela, pois muitas mulheres deixam de denunciar os crimes. “A maioria das mulheres não presta queixa, não se sente à vontade, justamente por causa da cultura que a culpabiliza pelo que aconteceu. Estima-se que os números reais sejam dez vezes maiores”, alertou. Ela lamenta, porém, que o dado alarmante por si só não gere a discussão na sociedade. “Mesmo tendo esses números terríveis, não se fala sobre isso, que de cada 5 mulheres, 3 vão sofrer algum tipo de violência ao longo da vida. E a sociedade continua normalizando isso”, destaca.
    Essa normalização acontece, aponta a pesquisadora, a partir de diversas pequenas violências que não são reconhecidas como tal: “Desde a cantada de rua, a publicidade machista, o humor machista, as diversas formas de expressão do machismo na mídia também são violências de gênero, e as violências psicológicas e físicas vão derivar dessas pequenas atitudes. O estupro, assim como o feminicídio e as agressões, é a forma mais explícita da violência de gênero que vemos todos os dias na nossa sociedade”.
    Para Paula, a cultura do estupro pode ser definida como uma cultura do machismo, que coloca alguns corpos como passíveis de serem violados. E estes corpos, em geral, seriam os identificados como femininos. “A inviolabilidade não é uma garantia para todos os corpos. Essa é uma violência que não acontece isoladamente, não são 33 caras malucos que se reuniram e fizeram isso. Mas são homens que foram produzidos nesse sistema que permite isso, que é legitimado por uma série de instâncias sociais. Eles são a face mais brutal, mais extrema, de uma sociedade absolutamente sexista, que se permite rir do estupro, cantar músicas que fazem apologia à violência sexual, que se permite botar como propaganda de cerveja que as mulheres quando dizem ‘não’, querem dizer ‘sim'”, destaca a professora.
    Tudo isso está relacionado à produção de diferença entre os corpos considerados masculinos e femininos, à restrição das mulheres a meros objetos sexuais e à heterossexualidade obrigatória, que impõe determinados lugares e lógicas para mulheres e homens na sociedade, aponta Paula. “E que o ‘não’ da mulher nunca é verdadeiro, nunca é reconhecido. Essa lógica de que a mulher quer dizer sim, está na trama de diversas novelas, por exemplo, é muito romantizado”, aponta.
    Por isso, ela classifica que há uma série de instâncias que são “co-autoras” desse estupro, como o sistema educacional, onde a discussão de gênero nas escolas foi vetada recentemente por parlamentares em todo o país. “As mesmas pessoas que dizem que esses homens devem ser linchados, ao mesmo tempo falam da moralidade das mulheres, dizem que elas têm que ser obedientes, e é isso que alimenta essa cultura do estupro. E são contra pensar uma educação em que essas questões sejam discutidas na escola, para criar uma forma de lidar com a situação que não seja apenas uma punição individual”, reflete.
    Pâmela também considera a educação como um possível campo em que haja mudanças nesse sentido, mas lamenta que a oportunidade de debater essas questões tenha sido perdida nas votações dos planos de educação. “Essa mesma sociedade que está chocada com o caso da menina teve a oportunidade de fazer essa mudança. E esse debate sobre desigualdade e violência de gênero nas escolas é considerado ‘ideológico’, é desqualificado. Então como a gente vai mudar esse cenário sem conversar sobre isso?”, questiona.

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