A presença feminina é maciça no pós-guerra. Isso não quer dizer que a Alemanha seja um mar de rosas: ainda se luta por visibilidade. Os protestos de escritoras no Brasil encontram seus paralelos aqui.
15.08.2017
Ricardo Domeneck
No último texto, discuti a presença feminina nos primórdios da literatura alemã, com nomes como Hildegard von Bingen no período medieval, Annette von Droste-Hülshoff no século 19, Else Lasker-Schüler e Hannah Arendt no início e meados do século 20. A situação no pós-guerra mudou muito. Se a presença feminina pontuou a literatura do país em momentos precisos e altos de qualidade, no pós-guerra sua presença se tornou maciça.
Isso não quer dizer que a Alemanha seja um mar de rosas para as escritoras. Ainda se luta por visibilidade no coração da Europa, assim como em outras regiões. Os protestos de escritoras no Brasil encontram seus paralelos aqui, onde a lista de festivais e prêmios ainda privilegia a voz masculina também. Por mais progressista que se queira a comunidade literária, escritores muitas vezes reservam seus pedidos de igualdade para outros setores da sociedade, com muitos homens encampados numa ilusão de aristocracia editorial. Para muitos efeitos, infelizmente ainda estamos no século 19 quando a discussão é literatura.
Fora do âmbito germânico, arriscaria dizer que a escritora mais famosa da língua na literatura internacional ainda é a austríaca Ingeborg Bachmann (1926-1973). Como escrevi em uma homenagem a ela nesta mesma coluna ["Vida e morte de Ingeborg Bachmann”], a autora alcançou repercussão já com seu primeiro livro de poemas, produzindo mais tarde também prosa e dramaturgia.
Já na Alemanha, o país vivia o período triste de sua divisão, divisão que se estendia para a literatura. Um nome incontornável é o de Christa Wolf (1929–2011), que produziu na Alemanha Oriental e se tornou um dos nomes centrais da literatura do outro lado do muro. Seu livro Der geteilte Himmel ("O céu dividido”, 1963) é, além disso, uma das obras marcantes sobre a própria divisão. Devido a acusações de que teria colaborado com o regime ditatorial, seu nome hoje é circundado de polêmica. Mas foi uma grande escritora, que descreveu com força a experiência feminina em língua alemã. Livros como Kassandra (1983), traduzido no Brasil por Marijane Vieira Lisboa (Cassandra. São Paulo: Estação Liberdade, 1990) ou Medea (1996) devem permanecer nas estantes por mais que se tenha tornado controverso o nome de sua autora. E sua influência se teria feito sentir em escritoras contemporâneas como Elena Ferrante.
Na Alemanha Ocidental, um nome que recomendo é o de Marie Luise Kaschnitz (1901–1974). Canônina, está em qualquer livraria. Seus livros estão espalhados por sebos. Confesso que levei tempo para a ler, até que Melissa Dullius, cineasta brasileira radicada em Berlim com seu companheiro Gustavo Jahn (do duo Distruktur), disse-me que estava trabalhando em um filme sobre sua obra e me presenteou com o livro Tage, Tage, Jahre ("Dias, Dias, Anos”, 1968), uma série de reflexões sobre vários assuntos em que mostra a delicadeza e força de sua prosa, ainda que seja hoje melhor conhecida como poeta. Fiquei muito impressionado.
Estas duas autoras são canônicas, estabelecidas, nomes que ficaram. Há, como em qualquer país, também as obscuras, que vão as poucos firmando-se no céu literário. Na Alemanha, o caso mais potente é o de Unica Zürn (1916–1970), mulher de Hans Bellmer, artista visual e autora dos anagramas mais impressionantes da língua. Para os que se interessam por poesia experimental que não deixa de ser um soco na boca do espírito, recomendo seu trabalho. E na semana que vem encerrarei esta série com os nomes das que estão vivinhas-da-silva (ou vivinhas-von-schmidt?) e produzindo os melhores livros da Alemanha contemporânea. Leia mulheres.
DW
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