Em cada nova experiência afetiva, boa ou má, há um conjunto de antigas experiências que é revivido e amplificado
IVAN MARTINS
16/08/2017
Às vezes, novos amores costumam ter gosto de culpa. A gente está feliz, redescobrindo a si mesmo e descobrindo o outro, mas percebe, num canto da alma, um traço de melancolia.
Queiramos ou não, saibamos ou não, pedaços de nós ainda guardam lealdades para com o amor que passou. Não interessa se acabou faz tempo, não interessa quem acabou. Em algum momento, de maneira profunda, houve uma conexão – e ela insiste em permanecer.
No momento em que a vida traz outro nome e outro rosto para ocupar o mesmo espaço, a gente percebe que parte de nós resiste. Essa parte protesta contra o novo amor como se ele fosse um ato de abandono ou traição.
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Tenho visto esse fenômeno acontecer comigo e com gente ao meu redor. No início, logo depois da separação, as pessoas procuram não magoar aqueles que amavam ou ainda amam. É um cuidado prático, consciente, que normalmente se traduz em relações secretas: a pessoa evita ser vista acompanhada, foge das redes sociais, não dá bandeira sobre o que há de novo em sua vida. Mas essa é uma fase passageira, que não reflete os eventos profundos que sucedem à separação.
Só mais tarde, quando a preocupação de esconder for desnecessária, quando o ex não mais frequentar os nossos sonhos e quando nós, finalmente, tivermos deparado de novo com a possibilidade do amor, só então vai surgir, em meio à nova felicidade, a sensação de que algo está errado. É o passado se fazendo presente.
Quem acha que isso é fantasia repare num fenômeno universal: a quantidade de vezes que a gente chama, ou quase chama, a pessoa atual pelo nome da pessoa que estava conosco antes. Comigo, costumava acontecer no meio de discussões, mas sei de gente que usa o nome da ex no sexo ou preparando o almoço de sábado: pega o azeite para mim, Fulana? Não há prova mais evidente (e menos recriminadora) da presença inconsciente do outro.
Li outro dia um texto de uma psicanalista famosa – a austríaca Melanie Klein, morta em 1960 – em que ela diz que todas as nossas dores, assim como os nossos amores, estão relacionadas umas às outras. Cada paixão se liga às paixões anteriores, e cada separação ecoa todas as demais, numa linha do tempo que nos leva de volta até os primeiros minutos depois do nascimento, ou mesmo antes. Em cada nova experiência afetiva, boa ou má, há um conjunto de antigas experiências inconscientes que é revivido e amplificado. A história dos nossos afetos é revista, recontada e revivida a cada troca de olhares e palavras no presente.
Perceber isso me trouxe algum alívio.
Sempre me culpei por ser – nas palavras de um dos meus escritores favoritos, o cubano Leonardo Padura – um “sujeito recordador”, que tem no passado e na nostalgia uma parte importante da sua vida emocional. Enquanto as pessoas ao meu redor pareciam práticas e determinadas, e trocavam de amores como quem muda os sapatos, eu ficava remoendo, recordando, ruminando sentimentos antigos. Isso acontecia mesmo quando a vida havia caminhado e, aparentemente, não havia mais o que sentir.
Hoje, eu sei que todos estamos fadados a viver em companhia do passado. Ele nos visita em sonhos e revive em nossas emoções. Pode até, secretamente, determinar nosso futuro, moldando as aspirações no presente.
Quem sai por aí como se a vida tivesse começado ontem engana a si mesmo e aos demais. Corre o risco de ficar se repetindo sem perceber, revivendo sempre a mesma história, o mesmo amor, a mesma pessoa e, fundamentalmente, as mesmas frustrações. Saber que os fantasmas do passado moram dentro de nós não resolve e nem simplifica a nossa vida, mas talvez evite que a gente seja conduzida por sombras.
Haverá um momento, quando o novo amor se apresentar diante de nós, em que ele terá de conviver com a presença subjetiva do amor passado – e está bem que seja assim, porque, com o tempo e com a evolução dos sentimentos, essa presença antiga sairá de cena, permitindo que o espaço afetivo seja povoado pelas alegrias e descobertas do presente. O passado nunca vai desaparecer completamente, mas, se tudo der certo, ocupará o seu lugar tranquilo de coisa vivida, permitindo que novas emoções e descobertas tomem a cena.
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