Tráfico de pessoas
Dados do Ministério Público e da Polícia Federal revelam que o número de brasileiros levados para o Exterior por traficantes já soma 70 mil. ISTOÉ mostra como funciona e quais são as principais rotas do esquema
Izabelle Torres e Flávio Costa
Em Brasília, um bar que é ponto de prostituição serve de hotel para meninas à espera de passaportes e documentos para embarcar para o Exterior. O local é conhecido como “Toca das Gatas”. Duas viaturas policiais circulam fazendo a ronda, mas nenhum policial desce do carro. A única abordagem feita na noite em que a reportagem de ISTOÉ visitou o local teve como alvo justamente a equipe de reportagem, considerada intrusa pelos cafetões. Uma das garotas apresentou-se como “Cintia” e confirmou que estava aguardando a chegada de documentos a fim de embarcar para a Europa. Seu destino é Portugal. Mas, para pagar a viagem – documentos, passagens e hospedagens – , ela e outras meninas devem trabalhar pelo menos seis meses como prostitutas e repassar aos “chefes” 60% do que receberem. O esquema que aliciou “Cintia” no interior de Goiás se dissemina por diversos pontos do País e é mais amplo. De acordo com o Ministério Público, conta até com a participação de policiais e servidores. “Isso ocorre por dinheiro ou pela troca de favores com os bandidos. Muitas vezes, o pagamento pela facilitação vem em forma de favores sexuais”, diz a PhD em pesquisa de criminologia, a promotora do MP do Distrito Federal, Andrea Sacco.
Não é novidade que, atraídos pelo discurso do dinheiro fácil, pessoas sejam tiradas das periferias do Brasil e levadas para a Europa e os EUA e lá sejam submetidas à prostituição, trabalho escravo ou até mesmo transformadas em fornecedoras de órgãos para transplantes. Nos últimos meses, porém, o Brasil por meio de instituições como o Ministério Público e a Polícia Federal começou a reagir de forma a tentar desbaratar essas quadrilhas. O primeiro passo para isso foi um amplo levantamento sobre a forma de atuar desses traficantes e as rotas que eles estabelecem. Hoje, sabe-se que as ações dos criminosos estão concentradas em pelo menos 520 municípios brasileiros. Nessas cidades, pessoas são aliciadas e ficam em hotéis, pequenos abrigos ou pontos de prostituição, como ilustra o caso de Brasília, até receber seus passaportes, não raro, falsos, e ser mandadas para sete Estados que servem de escala para o Exterior. São eles os seguintes Estados: Amazonas, Bahia, Goiás, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Roraima e São Paulo. Segundo o MP, além de Portugal, os destinos mais frequentes são Espanha, Itália e Venezuela. No total, o número de pessoas levadas para o Exterior por traficantes já soma 70 mil. De acordo com a PF, as quadrilhas que comandam o tráfico de pessoas só perdem em lucratividade para as de tráfico de drogas e de armas. A ONU estima que a máfia de pessoas movimenta por ano mais de US$ 30 bilhões. Cerca de 10% desse dinheiro passa pelo Brasil. A principal dificuldade do poder público para enfrentar essas quadrilhas é a falta de um órgão dedicado exclusivamente ao tema. Outro problema, até mais grave, é o alto grau de corrupção que envolve essa modalidade de crime. “O tráfico é diretamente dependente da corrupção. No caso do Brasil, esbarramos também na falta de informações oficiais. Um país sem controle e sem números sobre um crime é um país sem ordem”, diz Sacco.
TOCA DO TRÁFICO
Bar, em Brasília, é ponto de prostituição e serve de hotel para meninas aliciadas pelo esquema
O bailarino e empresário cultural, Paulo Franco, de 28 anos, foi uma das vítimas do tráfico para trabalho escravo. Depois de ser contratado pela empresa de entretenimento turca Sunu Sahne para apresentações de ritmos brasileiros em hotéis da costa asiática da Turquia, ele e o grupo do qual fazia parte foram alojados num hotel em péssimas condições. O pagamento antecipado não foi feito, e os vistos de trabalho prometidos não chegaram. Apesar disso, os shows foram realizados durante 40 dias. Investigações preliminares da diplomacia brasileira constataram que o grupo caiu numa rede de tráfico de pessoas. “Quando conseguimos voltar, tivemos uma recepção fria por parte da PF. A delegada que pegou meu depoimento tratou-me como se eu fosse autor do crime do qual fui vítima”, lamenta Franco.
As dificuldades de brasileiros que caíram nas mãos da máfia do tráfico de seres humanos estão sendo relatadas em pesquisa realizada pela Universidade de Brasília (UnB) em parceria com o Ministério da Saúde. O pesquisador Mário Ângelo da Silva percorreu alguns dos países europeus considerados os principais destinos de brasileiros vítimas do tráfico para fins de exploração sexual. Em Portugal, para onde são dirigidas quase a metade das pessoas aliciadas, o pesquisador encontrou um quadro alarmante de isolamento e doenças. “Essas pessoas vão de forma clandestina e vivem em condições degradantes. A maior parte está com tuberculose por conta do confinamento em quartos”, constata. No documento que vai encaminhar ao Ministério da Saúde, a equipe do professor Ângelo reproduz depoimentos de algumas mulheres que vivem no Exterior. “Elas contaram que apanham frequentemente e que são obrigadas a consumir drogas”, afirma Ângelo. Vítima do esquema, Rosenilda Barbosa Alves conta que teve duas filhas traficadas para ser adotadas ilegalmente em Portugal. “Há seis anos, travo uma batalha na Justiça para reaver a guarda delas”, afirma.
LUTA
Rosenilda Alves teve as duas filhas enviadas ilegalmente
para Portugal e tenta reaver a guarda na Justiça
Jovens de baixa escolaridade, a maioria entre 16 e 25 anos, viajam por vontade própria atraídas pela promessa de trabalhar, receber em euro e regressar quando quiser. “Fui incentivada por uma amiga. Muita gente diz que não faz programa e que pode trabalhar de vendedora em shoppings. Mas não é assim. Tem casos de colegas obrigadas a ficar nas casas que eles indicam e que são submetidas até a agressões físicas”, conta “Amanda”, uma garota que conseguiu comprar dos traficantes a viagem de volta para Roraima. Na mesma cidade, a equipe de pesquisadores encontrou “Sueli”, à espera de documentos a fim de seguir viagem para a Europa. “Espero que eu seja uma das que vai ter sucesso lá e que eu consiga juntar dinheiro para dar uma vida melhor para meus filhos”, planeja ela, no depoimento gravado pelos pesquisadores.
O sonho de ganhar dinheiro, a vergonha das meninas que precisam se prostituir e o medo dos chefes das quadrilhas são os principais obstáculos à formulação de estatísticas oficiais. Quem vai perde o contato com as famílias. Quando conseguem voltar, não querem denunciar por vergonha e também por medo de sofrer represálias dos integrantes do esquema no Brasil. O caso mais lembrado pelas vítimas é o de Letícia Peres, assassinada a tiros em Brasília depois de contar para a polícia detalhes do esquema de tráfico de pessoas na Espanha. “A ausência dos registros é normal. Elas temem aparecer como vítima ou como prostituta. Por isso, preferem o silêncio. Diante disso, o poder público, que já enfrenta inúmeras dificuldades, tem mais um obstáculo”, diz Ângelo. “O problema é que sem cooperação entre as autoridades policiais e o Executivo dos países da América do Sul é impossível desarticular essas quadrilhas de traficantes”, completa Bo Mathiessen, diretor do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc) para Brasil e Cone Sul.
No Congresso, uma Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado tenta dar um norte para as políticas de combate ao tráfico de pessoas. A tarefa é difícil. Até agora, as audiências e as investigações dos senadores se limitaram a concluir que existem esquemas milionários com tentáculos no Brasil, que a legislação nacional contribui para o aumento dos casos e que há falhas graves dos agentes públicos. “As investigações mostraram que São Paulo, o maior centro financeiro do País, ostenta o indigno título de maior polo receptor de tráfico para exploração sexual do País, principalmente quando se trata de vítimas homossexuais ou transexuais. Entretanto, apenas dez inquéritos foram abertos no Estado no ano passado”, ressalta a presidente da CPI, senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM).
SERVIDÃO
Empresa turca de entretenimento contratou Paulo Franco, que ficou 50 dias sem salário
Na verdade, o baixo número de inquéritos em São Paulo para investigar as quadrilhas é uma realidade espalhada por todos os Estados. Em Roraima, por exemplo, uma das principais rotas, apenas 27 investigações foram concluídas nos últimos dez anos. No início do mês, o Ministério Público pediu a prisão de três integrantes de um esquema de aliciamento que agia naquela região. O temor dos promotores é de que os bandidos fujam antes de ser presos. As dificuldades do País em colocar atrás das grades os traficantes de seres humanos são conhecidas no âmbito internacional. Em junho de 2010, um relatório divulgado pelo Departamento de Estado americano afirmou que o governo brasileiro ainda não cumpre totalmente os padrões mínimos para enfrentar o problema.
Contrário às críticas, o secretário nacional de Justiça, Paulo Abrão, discorda da avaliação de que nada foi feito pelas autoridades federais. Segundo ele, entre 2007 e 2010, o Ministério da Justiça repassou R$ 3,275 milhões para a criação ou instalação de 13 núcleos de enfrentamento ao tráfico nos seguintes Estados: Acre, Amazonas, Bahia, Ceará, Goiás, Pará, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. “O primeiro plano teve foco no acolhimento das vítimas e na estruturação de uma rede mínima de enfrentamento. No segundo plano, nós vamos ampliar a rede existente. Todas as cidades-sedes da Copa do Mundo deverão ter núcleos e postos voltados para o combate ao tráfico de pessoas”, adianta Abrão. O problema é que, entre as boas intenções e o efetivo combate ao crime, ainda há um longo caminho a percorrer.
Nenhum comentário:
Postar um comentário