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quarta-feira, 17 de outubro de 2012


Cotas raciais para o serviço público e o mercado de trabalho

Uma política ou ação afirmativa é uma medida especial e temporária que visa eliminar desigualdades historicamente acumuladas, garantindo a igualdade de tratamento e de oportunidades.  As ações afirmativas visam influenciar a política, a economia e a cultura de um país ou região, com vistas a não só diminuir a desvantagem de um grupo étnico ou social como também de valorizá-lo culturalmente.  Elas nasceram na década de 1960 nos EUA, como forma de promover a igualdade entre brancos e negros. No entendimento de muitos juristas, inclusive dos ministros do STF, numa sociedade crivada por diferenças, as ações afirmativas garantem a igualdade material, definida pela frase “tratar desigualmente os desiguais, na medida da sua desigualdade”.

No Brasil, elas começaram a ser adotadas no final dos anos 1990 e início dos anos 2000. O programa pioneiro foi o lançado pelo Itamaraty:  o Programa de Ação Afirmativa do Instituto Rio Branco, órgão responsável pela formação dos diplomatas. O programa está baseado na concessão de bolsas a afrodescendentes em cursos preparatórios para o processo de seleção do Instituto. Em nove anos, 17 ex-bolsistas passaram a fazer parte do corpo diplomático.

Em 2011, o Itamaraty deu um passo adiante, criando também uma cota de vagas para negros na primeira etapa do processo seletivo.

Entre as razões que levaram o Itamaraty a adotar um programa de ação afirmativa está o fato de que a diplomacia é uma carreira que sofria de uma percepção social elitista; segundo, é uma carreira que representa o País e houve o entendimento de que essas duas questões deveriam ser enfrentadas. Por fim, em Durban [durante a III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância], o Itamaraty assumiu o compromisso de promover ações afirmativas.

Em 2001, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) a Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) criaram cotas para negros nos seus processos seletivos, depois de um primeiro ano em que o vestibular de ingresso reservou vagas para alunos vindos de escolas públicas. Em 2003, a Universidade de Brasília (UnB) aprovou a criação das cotas raciais, numa iniciativa inédita entre as federais. Hoje, essas cotas tornaram-se lei para todas as universidades federais do país.

Para além das cotas, em 2003 foi criada a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial que, desde essa época, vem formulando e articulando políticas públicas afirmativas de promoção da igualdade racial. Uma de suas conquistas foi a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial.

Embora ainda haja um enorme caminho a ser trilhado, o país tem demonstrado, nos últimos anos, vontade política para enfrentar o problema da desigualdade racial com ações concretas e ações afirmativas.

Questão de estatística e de consciência

Isto ocorre tanto pelos números da participação dos negros na sociedade brasileira, quanto pela consciência cada vez maior de que a nossa desigualdade não é apenas social, é também racial e sem um recorte específico, não será superada.

Um trabalho realizado pelo Departamento Intersindical de Estudos Socioeconômicos (Dieese) de 2010 sobre a inserção do negro no mercado de trabalho mostra que a população negra predomina na população brasileira, é mais jovem, tem mais filhos, é mais pobre e está mais exposta à mortalidade por causas externas, especialmente homicídios.

Nos últimos anos, com as políticas compensatórias, houve ascensão social. De acordo com a última Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio (PNAD), são negros 80% dos mais de 40 milhões de brasileiros que subiram à classe C.  Nas universidades, eles são 921 mil entre 3,5 milhões de estudantes. Uma porcentagem pequena se comparada ao total de universitários, mas já grande o suficiente para fazer diferença no mercado de trabalho. E como este se comporta em relação à inclusão de negros?

A pesquisa de 2010 do Dieese mostra que os negros predominam no setor agrícola (61,5%), na construção civil (60,1%), nos serviços domésticos (61,8%) e em atividades mal definidas (73%). Ou seja, mesmo com o avanço social e educacional, os negros ainda não têm oportunidade de ocupar posições mais qualificadas em setores de ponta da economia brasileira. Isso acaba por se refletir na remuneração. Em termos salariais, o rendimento médio do  homem negro ainda é metade do homem branco. A mulher negra está mais embaixo nessa escala: recebe, em média, 30% do salário do homem branco e metade daquele da mulher branca.

Nas empresas, a pesquisa Ethos-Ibope sobre “Perfil Social, Racial e de Gênero nas 500 maiores empresas do país”, lançada em 2010, mostra variação positiva na ocupação de cargos por negros e por negras, mas ainda aquém da participação deles no total da população brasileira.

Nos quadros funcionais, entre 2003 e 2010, a participação de negros ampliou-se de 23,4% para 31,1%. Nos cargos de supervisão, a evolução foi de 13,5% para 25,6%. No âmbito gerencial, a participação subiu de 8,8% para 13,2%. Entre os executivos, a proporção variou de 2,6% para 5,3%.

Marco nas relações sociais no Brasil

Depois de uma década de políticas voltadas à promoção da igualdade racial, é possível apontar alguns efeitos positivos, segundo os próprios movimentos negros. Para esses representantes, o principal resultado é intangível, mas importantíssimo: colocar, definitivamente, a discriminação e o preconceito na agenda pública, mudando a lógica dos debates que sempre foram no sentido de criminalizar o racismo, mas não de enfrentá-lo com ações afirmativas. A integração racial ficava por conta das forças sociais ou das “forças de mercado”, o que não ocorria. A intervenção do Estado é que está fazendo a diferença, nessa década.

Esse plano do governo federal a ser anunciado em novembro vai buscar aprofundar os efeitos das políticas afirmativas, por meio da gestão integrada e coordenada das ações em nível federal. Assim, a cota para negros no serviço público é apenas uma das pontas de um Plano Nacional cujas ações vão também influenciar a cultura e a educação.

No âmbito do emprego, o plano deve estabelecer a cota de 30% de vagas para negros no Executivo federal, incluindo os cargos comissionados. Para o setor privado, o Plano deve criar incentivos fiscais para as empresas que contratarem mais negros (embora o empresário não será obrigado a fazer isso) e punir aquelas que comprovadamente discriminarem pessoas em razão da cor da pele.

Na cultura, a ideia é incentivar os produtores culturais negros. Na Educação, além da regulamentação das cotas para as universidades federais, haverá ainda  o monitoramento da situação de negros cotistas depois de formados; oferecimento de auxílio financeiro a cotistas, durante a graduação; e reserva de parte das bolsas do Ciência Sem Fronteiras, programa do governo federal que financia estudos no exterior.

Esse plano, ao usar unicamente critérios raciais, é mais cirúrgico que as cotas universitárias, uma vez que elas se destinam a egressos do sistema público de educação e, apenas depois, faz menção a negros. Com isso, inaugura uma nova fase nas relações sociais no Brasil, na qual a questão do negro não ficará mais escondida sob o manto da “democracia racial” e será enfrentada com instrumentos de uma sociedade democrática.

Qual o papel das empresas?

Em 2010, quando o STF julgava a constitucionalidade das cotas universitárias, o atual presidente dessa corte, ministro Joaquim Barbosa, escreveu o seguinte, em defesa do papel das empresas na promoção da igualdade racial:

“A adequação do elenco de profissionais às realidades verificadas na região de operação da empresa… estimula as unidades empresariais a demonstrar sua preocupação com a diversidade humana de seus quadros. Isto não significa que uma dada empresa deva ter um percentual fixo de empregados negros, por exemplo, mas, sim, que esta empresa está demonstrando a preocupação em criar formas de acesso ao emprego e ascensão profissional para as pessoas não ligadas aos grupos tradicionalmente hegemônicos em determinadas funções (as mais qualificadas e remuneradas) e cargos (os hierarquicamente superiores).”

Contribuir para, num espaço de tempo relativamente curto, igualar os direitos de brancos e negros no país. Pode fazer isso: contratando negros (e não precisa esperar incentivos do governo para agir assim); criando um ambiente interno propício à tolerância racial, com campanhas que valorizem a contribuição de todos os grupos sociais e étnicos para o sucesso do negócio; estabelecendo políticas de promoção interna que agreguem ao mérito a proporção étnica.

O Brasil será um país melhor se for um país mais igual para todos.

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