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domingo, 14 de outubro de 2012


A vida entre a maternidade e a cobertura de conflitos armados

PATRÍCIA CAMPOS MELLO


"Mãe, será que você não poderia ir para um lugar menos perigoso?" A repórter americana Janine di Giovanni estava prestes a embarcar para Benghazi, na Líbia, quando seu filho Luca, de seis anos, a surpreendeu com a pergunta.
Ela havia passado quatro anos longe das guerras que dominaram sua vida. Teve que assistir à morte do líder palestino Yasser Arafat, em 2004, e a boa parte da Guerra do Iraque (2003-11) pela TV. Estava feliz assando bolos em casa e levando Luca à aula de natação, em Paris.

AFP
Homem armado comemora invasão e incêndio do consulado dos Estados Unidos em Benghazi, na Líbia
Homem armado comemora invasão e incêndio do consulado dos Estados Unidos em Benghazi, na Líbia

Mas chegou o momento em que teve de voltar à estrada. "Cobrir conflitos é o que eu faço, é o que sou. É minha identidade", disse Janine à Folha.
Enquanto a maior parte das mulheres sofre para conciliar filhos e carreira, a babá que faltou e a reunião com o chefe, algumas têm desafios ainda maiores. Assistir à peça do filho de cinco anos na escola ou cobrir a guerra no Afeganistão?
Janine é uma das poucas jornalistas que dividem seu tempo entre cuidar de filhos e cobrir conflitos --já esteve na Bósnia, Iraque, Afeganistão, Chechênia, Serra Leoa, Líbia e Síria para revistas e jornais como "Vanity Fair", "The New York Times" e "The Guardian".
Janine lançou no ano passado o livro de memórias "Ghosts by Daylight: Love, War, and Redemption" (Fantasmas à luz do dia: amor, guerra e redenção) [Bloomsbury, 320 págs., US$ 18], em que narra a vida de correspondente de guerra, sua paixão por um colega repórter e a maternidade.
Para Janine e o cinegrafista francês Bruno Girodon, foi amor à primeira vista no Holiday Inn de Sarajevo, em 1993, o enclave dos jornalistas na Guerra da Bósnia (1992-95). A caminho de uma entrevista coletiva no prédio da ONU, de repente Bruno se ajoelhou na sua frente e declarou, fitando Janine e sorrindo: "Não me olhe assim!".
Os dois se reencontraram na guerra civil da Argélia, em 1998, e lá começaram a namorar. Nos anos seguintes, tiveram encontros românticos e tempestuosos na Alemanha, Tora Bora, Kosovo --e uma briga homérica em Jalalabad, no Afeganistão. Até que, um dia, na Costa do Marfim, o telefone via satélite tocou. "Vamos nos casar, vamos ter um filho", dizia Bruno, de Ruanda.
Luca nasceu dois anos depois, fruto de uma gravidez difícil. Janine e Bruno deixaram a vida cigana e se mudaram para Paris. Mas o casamento não resistiu à opressora paz doméstica. Bruno começou a beber e se internou em uma clínica para se tratar do alcoolismo.
"Bruno e eu vivíamos muito bem sob estresse e adrenalina, mas nunca tínhamos morado juntos em circunstâncias normais", diz ela. "Pessoas que têm esse emprego não são pessoas convencionais, que colocam seu lixo em pacotes organizados e arrumam as coisas em caixinhas. Eu e Bruno vivemos uma história de amor em meio a guerras, tivemos um filho, mas aí tudo começou a degringolar, talvez por causa de tudo o que nós já vimos, que mudou nossas vidas para sempre. Como poderíamos ter uma vida normal?"
Quando Luca fez cinco anos, Janine voltou ao front. Sua última viagem foi para a Síria. Bruno esteve na Líbia no ano passado e levou um tiro no rosto, mas sobreviveu. Este ano, na Síria, teve pedra nos rins e precisou ser removido.

VANTAGENS
Janine acha que as correspondentes de guerra têm algumas vantagens em relação a seus colegas homens. As mulheres não são vistas como uma ameaça em ambientes de conflito --por isso passam em "check points" com mais facilidade, por exemplo. E também têm acesso à metade da população nos países islâmicos que está vetada aos jornalistas do sexo masculino: as mulheres. Em muitos países muçulmanos, mulheres só falam com mulheres.
Mas há desvantagens. "Acabo de voltar de Damasco. Tive muito medo. Estava sozinha e acordava de madrugada pensando: alguém vai arrombar esta porta e me levar. Ia para uns subúrbios no sul e pensava: não quero ficar muito tempo aqui, quero acabar logo meu trabalho e sair", disse à Folha.
"A maioria das pessoas que conheço e que foram mortas ficaram em algum lugar mais tempo do que deveriam. O instinto delas dizia 'vá embora', e elas não escutaram. Sempre segui meus instintos, mas agora eles são ainda mais importantes. Se acontecer algo comigo, e o Luca?"
Janine deixou de viajar tanto --antes, passava 250 dias por ano longe de casa. Agora, viaja uma semana por mês.
A sul-africana Lara Logan, uma bonita loira de grandes olhos verdes, é a principal correspondente da rede de TV americana CBS. Em 2011, Lara cobria as manifestações da Primavera Árabe na praça Tahrir, no Cairo, quando foi cercada por cerca de 200 homens.
Eles rasgaram sua roupa, chamando-a, aos berros, de judia e israelense. Despida à força, olhou para cima e viu que homens tiravam fotos com seus celulares. "As mãos deles me estupravam repetidamente", contou.
Lara escreveu o principal depoimento do livro recém-lançado "No Woman's Land: on the Frontlines with Female Reporters" [versão Kindle, US$ 16], compilado e editado por Hannah Storm e Helena Williams.
"Não entendo como sobrevivi àquela noite na praça Tahrir. No meu trabalho, as pessoas que vi serem atacadas por uma multidão acabaram mortas. Lembro de implorar pela minha vida. Lembro de desistir. Lembro de reagir. Lembro de aceitar a morte", escreveu.
"Quero que o mundo saiba que não tenho vergonha do que aconteceu comigo. Não fui simplesmente atacada --fui atacada sexualmente. E acho que isso não deve impedir as mulheres de fazerem esse tipo de trabalho."
"Seria ridículo dizer que, por ser mulher, nós entendemos melhor uma menina queniana que perdeu a mãe para a Aids, ou uma garota de Darfur que foi estuprada pelos Janjaweed [milícia árabe do Sudão]. Mas, por sermos mulheres, as meninas normalmente ficarão mais à vontade para dar detalhes de sua história", escreve Ann McFerran, correspondente há 40 anos, de jornais como os britânicos "Sunday Times" e "Guardian".
Frances Harrison, que trabalhou por mais de 20 anos na BBC, em lugares como Paquistão, Bangladesh e Irã, conta que, quando seu filho tinha sete anos, ela recebeu uma proposta para ser correspondente em Cabul, no Afeganistão. Recusou. "Eu precisava passar mais tempo com meu filho, que estava tendo ataques de pânico na escola", conta.
"Não tínhamos ideia de quanto a atmosfera de tensão, com amigos sendo ameaçados de morte, havia sobrecarregado meu filho."
Em Londres, seu status de "correspondente e mãe" era um tabu. "Isso não podia ser discutido abertamente para não parecer discriminação ou favoritismo. Sempre senti que tinha alguma coisa a esconder, a ponto de ter coberto protestos com bombas de gás lacrimogêneo sem contar para ninguém que estava grávida de sete meses."
Segundo Frances, tradicionalmente o correspondente internacional sempre foi jovem e homem. Só em 1986 a BBC promoveu a primeira mulher ao cargo. "Desde então, a maioria das correspondentes é formada por 'homens honorários' --solteiras e sem filhos--, o que é um preço alto a se pagar por uma carreira emocionante."

HEMINGWAY
A vida da correspondente de guerra por excelência Martha Gellhorn é prova desse preço. Gellhorn cobriu a Guerra Civil Espanhola (1936-39), a Segunda Guerra Mundial (1939-45), a Guerra do Vietnã (1954-75) e até a invasão dos EUA no Panamá, em 1989, quando já estava com 81 anos.
Teve um casamento atribulado e infeliz com o escritor Ernest Hemingway. Durante uma de suas viagens para cobrir a Segunda Guerra, o autor de "Por Quem os Sinos Dobram" mandou-lhe uma carta que dizia: "Você é uma correspondente de guerra, ou minha mulher na minha cama?".
Ela não podia nem ouvir falar no nome de Hemingway, que a traiu, a humilhou e roubou suas fontes durante os quatro anos de união. O casamento foi retratado este ano no filme da HBO, "Hemingway & Gellhorn", do diretor Philip Kaufman, com Nicole Kidman e Clive Owen. O canal exibe o longa no Brasil dia 27, às 21h.
Martha Gellhorn morreu aos 89 anos, em Londres, sozinha. Quase cega, suicidou-se. O enredo é mais uma regra do que exceção entre seus pares. Gloria Emerson, a outra decana das correspondentes, famosa por sua cobertura no Vietnã, teve uma vida igualmente acidentada e uma velhice solitária. Ela se matou em seu apartamento em Nova York, em 2004.
A americana Marie Colvin teve fim trágico. Morreu aos 56, na Síria, durante o cerco a Homs, em fevereiro deste ano. O edifício onde ela estava foi bombardeado pelo Exército sírio. Marie usava um tapa-olho --perdeu a visão do olho esquerdo em 2001, por causa de estilhaços de granada, em Sri Lanka.
Muitas jornalistas temem que o ataque a Lara Logan possa restringir a atuação das correspondentes de guerra. "Acontece com mais frequência do que as mulheres contam. As mulheres não querem falar sobre isso, porque acham que, se falarem, não vão mais ser enviadas para cobrir conflitos", diz Janine.
Para Judith Matloff, diretora do International News Safety Institute e professora da Universidade Columbia, o perigo não depende do sexo do jornalista.
"Nós, mulheres, entramos na profissão sabendo dos riscos. Existe a possibilidade de estupros, mas existe também a chance de pisar em uma mina e perder as pernas, como aconteceu com o fotógrafo português João Silva, do "The New York Times". Sendo muito honesta, prefiro ser atacada sexualmente do que nunca mais poder andar", escreve Judith.
"Ninguém está apontando uma arma para nossa cabeça e nos obrigando a fazer este trabalho. Precisamos estar conscientes de que podemos morrer, ficar horrivelmente feridas ou aleijadas, ou ser estupradas", acha Janine. "Mas, se você pensar muito, não faz nada".
Ou, nas palavras de Martha Gellhorn: "Salte antes de olhar. Se olhar antes, acaba não saltando"

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