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quarta-feira, 24 de outubro de 2012


A hipocrisia alimenta o tráfico de mulheres

Bruno Astuto

Existem duas realidades no tráfico de mulheres para fins de exploração sexual. Na primeira, são moças enganadas por uma esperta rede de traficantes, que lhes promete empregos de garçonete, balconista ou dançarina no exterior. Na maior parte das vezes, a traficante muda-se para a vizinhança da vítima, faz amizade com ela, fala paulatinamente das vantagens do trabalho fora. Também usa o disfarce da “experiência própria”: como várias amigas, e até ela mesma, se beneficiaram da mudança, de como juntaram dinheiro rapidamente e compraram casa própria para a família — afinal, as despesas são pagas pela firma que as contrata e se ganha em dólar.

Seduzidas, as moças decidem viajar, com passaporte e visto prontamente tirados pela traficante, que também lhes compra roupas e a passagem. Assim que chegam ao destino final, elas se dão conta de que foram enganadas e são forçadas a dançar e se prostituir em boates abaixo de qualquer nota, hospedadas (ou encarceradas) em minúsculos apartamentos em condições subumanas. São avisadas de que terão que pagar a “dívida”: a passagem, as roupas, a alimentação, cujos valores não param de crescer, e forçadas a “trabalhar” 14, 16, 18 horas por dia. Têm seus passos vigiados por seguranças, só podem entrar em contato com a família sob escuta e são constantemente lembradas que essa está sob a mira dos traficantes. Se resolverem dar um “mau passo” e tentar entregar a rede, são executadas — algumas recebem altas doses de drogas para dar aparência à polícia de que morreram por overdose.

A outra realidade é a das moças que partem para o exterior sabendo que vão se prostituir. Nada muda a não ser a ciência da natureza do trabalho que farão. Da mesma forma, elas são escravizadas, cerceadas, veem-se reféns dos traficantes/cafetões e têm que pagar a “dívida”.

Algumas dessas moças chegam a voltar à terra natal, só para não levantar a suspeita de que foram escravizadas. Por vergonha de sua condição, não contam a ninguém que saíram do país para vencer na vida como modelo, garçonete ou balconista e viraram prostitutas, ainda que sob ameaça. E o medo de que a máfia faça algum mal a sua família colabora para o silêncio.

Um estudo da Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça, em parceria com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), revelou que, entre 2005 e 2011, 475 pessoas foram vítimas do tráfico de pessoas. Dessas, 337 sofreram exploração sexual e 135 foram submetidas a trabalho escravo. Sabe-se que esse é um número bem aquém da realidade, pois as denúncias, por todos os motivos expostos aqui, são raras. No mundo inteiro, 2,4 milhões de pessoas são traficadas anualmente, movimentando entre US$ 7 bilhões e US$ 12 bilhões para as diferentes máfias. É a terceira atividade mais lucrativa do crime organizado no mundo, perdendo apenas para o tráfico de drogas e armas.

Essa é a trama principal de Salve Jorge, a novela das nove que estreia amanhã. Num primeiro momento, Jéssica, a personagem de Carolina Dieckmann, servirá para explicar um pouco o tráfico de mulheres. Em seguida, será a vez de a mocinha, Morena, vivida por Nanda Costa, ser engabelada pelos traficantes. Ela vai deixar seu grande amor, sua família e seus amigos para ir atrás do sonho de uma vida melhor.

Além de uma história eletrizante e cheia de romance e vilania, Glória Perez, a autora que tem o hábito de colocar com tato e maestria o dedo na ferida da sociedade, promete confrontar o telespectador com um fantasma que só ajuda a mascarar esse tipo de crime: o preconceito. Muitas dessas mulheres, quer não tenham sido enganadas ou sim, são tratadas com a espada que marginaliza as prostitutas. É como se dissessem a elas: foram porque quiseram; puta merece. Que soubessem ou não o tipo de trabalho que as esperava, as traficadas são vítimas, sim, pois foram alojadas e acolhidas sob ameaça, fraude, rapto, coação e situação de vulnerabilidade. Quando são resgatadas ou conseguem escapar da máfia, elas enfrentam a dificuldade da reinserção na sociedade. No workshop da novela, do qual participei com o elenco, conheci muitas delas. Todas reclamaram da forma como foram recebidas de volta, como se tivesse culpa pelo que passaram. As famílias fazem um pacto de silêncio para esconder a vergonha.

Com Salve Jorge, esse silêncio será rompido, expondo à sociedade brasileira um crime que acontece tão ordinariamente sob suas narinas, mas que, pela hipocrisia com que se abordam a prostituição e a exploração sexual no país, foi colocado para baixo do tapete como se ele não existisse ou como ele se fosse descaramento de mulher da vida.

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