Contribua com o SOS Ação Mulher e Família na prevenção e no enfrentamento da violência doméstica e intrafamiliar

Banco Santander (033)

Agência 0632 / Conta Corrente 13000863-4

CNPJ 54.153.846/0001-90

sábado, 13 de outubro de 2012


Em Londres, com as crianças de muitos mundos


Temos hoje uma “Visita de Feriado” : a psicóloga Marília Santos, que vive em Londres há cinco anos.

O que Londres tem que desperta tanto interesse como cidade? Acredito serem muito individuais as razões pelas quais as pessoas se mudam para Londres. Mas certos aspectos contribuem para a decisão de mudar para essa cidade tão interessante, como a vasta cena de entretenimento cultural, a diversidade de etnias, culturas e religiões, além do fato de se localizar em terra inglesa estrategicamente junto a outros países europeus, sendo prático poder viajar da Inglaterra a lugares vizinhos. Londres é atraente, cosmopolita e abriga os mais diversos tipos de personalidade.

Vivo aqui há cinco anos, tempo em que fiz uma especialização em psicologia infantil e tenho trabalhado atendendo famílias em uma organização de apoio social. Trabalhei em diferentes projetos para essa organização, mas o projeto mais longo tem sido o suporte emocional a mães e pais que enfrentam dificuldades com seus filhos, através de intervenções que aqui chamam de “suporte parental”. Tenho também outro emprego, em uma escola brasileira, dando aula de português para crianças filhas de mãe brasileira e pai de outras nacionalidades. Dessa forma, desde que cheguei aqui tive muito contato com famílias não só inglesas, mas de diferentes partes do mundo. Em muitas dessas famílias, as crianças estão expostas a duas ou mais culturas e por isso são bi, tri ou multilíngües – por exemplo, mãe brasileira, pai italiano, mas todos residindo em Londres onde o idioma é o inglês.

O que tenho observado e o que as pesquisas também parecem apontar é que crianças ligadas a duas ou mais culturas geralmente são altamente adaptáveis, têm a mente mais aberta e compreendem facilmente diferenças culturais. São, na verdade, “crianças do mundo”, cidadãos globais. Mas não é tarefa fácil para pais e filhos assimilarem tais diferenças. Às vezes a criança pode se sentir conectada a mais de uma cultura, mas não se sentir realmente parte de nenhuma. Ou, o que também ocorre, se sente mais parte de uma cultura em especial, que não é a de um dos pais, que pode ficar ansioso porque o filho não está dando continuidade a suas tradições familiares.

Vejo também o empenho dos pais por manterem seu idioma. É bonito e ao mesmo tempo desafiante, pois as crianças, na verdade, são parte de dois (ou mais) mundos linguísticos e culturais. É uma cena clássica, por exemplo, na escola brasileira onde trabalho, a mãe conversar com o filho em português e ele responder em inglês.  É um processo diverso de construção de identidade que vivem esses pequenos Harry Potters com um quê do Menino Maluquinho e essas adoráveis Hermione Grangers com traços da Emília.

Há também o fato de algumas famílias se fecharem totalmente para a diversidade. Na organização de apoio social onde atuo muitos dos pais de outras nacionalidades, que não a inglesa, idealizam uma mini civilização do seu país de origem e não fazem contatos a não ser com sua própria comunidade. Não só isso, alguns interagem apenas com membros da sua família, criando, assim, um casulo cultural em plena Londres. Em função disso os filhos acabam tendo problemas de socialização ou na relação com seus pais.

Penso que se pudéssemos ver Londres como uma mãe ou um pai, ela seria daqueles que lembram o filho a fazer o dever de casa, daqueles que não deixam barato. Não há como se fechar muito por aqui, Londres te chama para a interação com novas experiências e com diferentes culturas. À medida que fui trabalhando com essas famílias fui percebendo que também tive que regular minha própria identidade devido à onda de diversidade diária na minha vida pessoal. Nesses cinco anos estive constantemente lidando com pessoas que pensam de forma muito diferente, estive escutando sotaques muitas vezes difíceis de entender ou lidando com hábitos para mim antes inusitados. Fora isso, o idioma inglês virou meu veículo de comunicação, de forma que sonhar em inglês é mais do que comum. Foi necessário sair da zona de conforto para abraçar outros costumes. Esse tempo aqui tem sido um ganho de experiências com outras culturas, assim como é para as crianças brasileiras com as quais trabalho.

Tenho vivido uma combinação interessante de costumes brasileiros com hábitos ingleses. Uni a tradição gaucha do chimarrão ao habito de tomar mais chá. As saias brasileiras ganharam a parceria de blusas rendadas dando um aspecto inglês na aparência. Desenvolvi o habito de comer o famoso “Sunday roast” (assado de domingo) e, contrapondo meu passado de anti-comida-picante me atirei no prazer de comer o apimentado “curry”. Não abandonei o feijão preto, mas essas novas delícias também entraram para a lista. Enquanto no Brasil eu me cuidava no transito dirigindo um carro, aqui ando no metrô cuidando os espaços entre o trem e a plataforma (o clássico “mind the gap” é alertado no metrô para as pessoas serem cuidadosas com esses vãos).

Percebo a heterogeneidade londrina por todos os cantos da cidade, não só nas famílias que aqui vivem ou em situações da minha vida cotidiana. Ela pode ser observada em exemplos concretos como na união de edificações modernas com prédios da era vitoriana. Além disso, nas ruas, onde se encontram esculturas do século XVIII e XIX, andamos mais uns poucos passos e nos deparamos com muros com imagens de artistas de rua como Banksy. Além disso, Londres está sempre fazendo o cidadão topar com imagens da rainha Elizabeth, símbolo máximo da tradição inglesa. Mais adiante vemos senhoras da mesma idade da Rainha caminhando pela rua, esvoaçando seus cabelos cor-de-rosa e suas tatuagens. A união do conservador com o alternativo é aspecto central da cidade.

É preciso ser versátil para viver aqui. Londres clama por isso, principalmente de seus imigrantes. Tal como pais e crianças com os quais tenho contato, me vejo constantemente trabalhando o “quem sou eu?”, sendo questionada pela cidade sobre minha própria identidade. Mas não é interessante viver em uma cidade que nos questiona isso? É quase shakespeariano, ser ou não ser? Mais do que nada, tem sido enriquecedor me deixar encontrar com a diversidade londrina para cada vez mais poder ser quem sou. Não é um processo fácil mas ajuda lembrar o bom ditado inglês que virou lema na cultura popular contemporânea, “keep calm and carry on”.

http://colunas.revistaepoca.globo.com/mulher7por7/2012/10/12/em-londres-com-as-criancas-de-muitos-mundos/

Nenhum comentário:

Postar um comentário