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quarta-feira, 31 de julho de 2013

Livres para escolher e condenados a escolher

por Fátima Fontes

Introdução
"Porque, paradoxalmente, se o homem é livre de todas as escolhas possíveis, não pode furtar-se à necessidade de escolher: ele é 'obrigado a ser livre', assim como é condenado à responsabilidade eterna." 
(Jean Paul Sartre, por Noëlla Baraquin e Jacqueline Laffitte. Dicionário Universitário dos Filósofos. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pág.267).

Outra vez nos encontramos para refletir sobre nós e nossos vínculos, esse fascinante e intrigante mundo que nos envolve a todos e no qual sou brindada e inspirada a viver e a escrever sobre ele periodicamente.

Desta vez, nosso mote central será a nossa condição de sermos todos "seres de escolha", pois na medida em que diariamente o sopro da vida é soprado em nossas narinas, somos apresentados a um mundo carregado de possibilidades, o que nos obriga a escolher valores, caminhos e ações, pelos quais, como colocado na epígrafe acima, somos também 'condenados à responsabilidade eterna'.

Acontece que essa realidade tão óbvia e clara não está mais sendo percebida e nem tão pouco assumida. Temos acompanhado a um mundo de relações interpessoais em que grande parte das pessoas insiste em se 'desresponsabilizar' por suas escolhas, e a 'culpabilizar' o outro por seus erros, das formas mais banais, ou por caminhos inacreditáveis e até bizarros.

Que venham então nossos estímulos a construir um mundo de escolhas mais responsável e assumido por cada um de nós, afinal não há outro destino além deste, queiramos isto ou não.

Assumir nossas escolhas: desafio relacional

Muito me estimula a pensar sobre nossas inter-relações, como as artes em geral (muitos de vocês, leitores assíduos da coluna, já sabem) e sobretudo as artes cênicas, visto que muito de seus roteiros e ações acompanham muitas vezes nossos dramas, impossibilidades e possibilidades relacionais. Eles criam a distância necessária à reflexão, pois sentados diante da tela, podemos nos ver como numa sala de espelhos, com o conforto de saber que no real, também há espaços possíveis para redesenhos e redirecionamentos relacionais.

Foi o que me aconteceu ao assistir o filme Simplesmente uma Mulher (Just like a woman), drama franco-russo-americano, do diretor franco-argelino Rachid Bouchareb, recém-lançado no Brasil, no qual acompanhamos uma sucessão de escolhas e responsabilizações. O filme conta a seguinte história inter-relacional: Marilyn, jovem norte-americana atendente numa pequena empresa, sonha em trabalhar com a dança do ventre, sua paixão. Nas aulas, ela é a melhor aluna, tanto que seu professor sugere que ela participe da seleção para um grupo de dança em outra cidade. Apaixonada por seu marido desempregado e alcoólatra, ela escolhe manter a vida de casada.

No caminho do trabalho, ela sempre para num mercadinho de uma família árabe, mantendo contato com Mona, jovem egípcia, cujo casamento vive em crise pela pressão constante da sogra para que o casal tenha filhos.

Quando Marilyn é demitida e flagra seu marido com outra mulher, ela decide que é hora de ir embora de sua cidade e tentar a vaga de dançarina em outra cidade.

Para ganhar dinheiro, pretende se apresentar em restaurantes pelo caminho. Fruto de um acaso criado pelo roteiro, nesse mesmo dia Mona, a jovem egípcia dá, equivocadamente, em momento de forte esgotamento emocional, uma dose excessiva de remédios para a sogra, que morre. Assustada, a jovem decide fugir, tornado-se foragida policial. Marilyn e Mona vão se encontrar na estrada, seguindo juntas, dançando (Mona também sabe dançar) em restaurantes e bares do caminho.

E até o fim da trama, que termina em aberto, o que nos fez pensar que talvez para diretor e roteirista a concepção da vida seja complexa, tecida em fios permitindo assim que 'escolhamos em cima das escolhas', acompanharemos a contínua jornada das responsabilizações das duas protagonistas. Nesses caminhos elas viveram o ainda frágil e vulnerável mundo das mulheres, carregado de preconceitos e hostilidades contra elas, baseados numa realidade pautada por um modelo relacional abusivo e machista.

Transpondo o mundo do enredo cinematográfico para a vida que vivemos, como mulheres e homens, filhos e filhas, cidadãos e cidadãos, chefes e subordinados, e em outros papéis relacionais que se complementam, estamos todos, o tempo todo, diante de espaços relacionais de limites e possibilidades, de humilhações e crescimentos, diante dos quais teremos sempre a condição de fazer escolhas: tenham elas o tom da submissão ou dos enfrentamentos.

Para cada uma dessas orientações e escolhas, há que se bancarem as consequências das opções feitas, pois todas as escolhas trarão a também inevitável condição da renúncia à outra situação anterior ou às outras possibilidades. Esse afã por querer tudo, e por não desejar viver os dissabores e as cargas que as escolhas também trazem, tem-se criado um cenário de relações adoecidas do ponto de vista social, afetivo, biológico e espiritual. Construímos, como mundo relacional de 'sobreviventes', estratégias de entretenimentos e diversões que têm dinâmica de indústrias, nos quais shows e eventos os mais diversos, precisam 'distrair' milhares de pessoas de segunda a domingo, tentando livrá-las de seus 'fardos' existenciais.

Na outra ponta, as substâncias psicoativas, legais, como álcool ou cigarro e as ilegais como consumo de cocaína, drogas sintéticas, maconha e outros compostos, cumprem sua função 'entorpecente' dos fardos carregados, afinal 'guerreiros' precisam tomar uma 'breja' para seguir lutando e puxar um 'beck', é o que tentam convencer os slogans dessa outra indústria.

Ainda assim, o efeito anestesiante passa e vem o mundo da ressaca, lembrando a todos que não há como escapar da realidade, a não ser que rompamos com ela de forma a construir mundos delirantes, do ponto de vista psicopatológico ou sociopatológico.

Viver do eterno queixume: meu inferno são os outros

Como viver é complexo, assumir um mundo de escolhas e se responsabilizar por elas, não tem sido o lugar mais vivido. O que mais constatamos é um 'vício' que podemos chamar de ancestral e atemporal, já que o encontramos em narrativas míticas ou históricas que datam das primeiras civilizações, que é 'o vício da eterna queixa pelo que o outro me obriga a fazer'.

Interessante salientarmos que esse 'vício queixoso', não se aplica ao lado iluminado do ser humano, mas recai sempre sobre a sombra humana, passando a ser a justificativa permanente de invejas, ódios e violências.

Sim, porque se temos uma resposta extremamente violenta no trânsito das grandes cidades, o fizemos porque 'o outro' nos fechou, foi absurdamente estúpido, trapaceiro, etc... Ao escolhemos trair os pactos feitos, nos justificamos para isso no fato de que somos humanos, a tentação é grande, a carne é fraca, etc... Ao tratamos o nosso próximo como 'nada', como inexistente, é porque temos que 'correr', e não há tempo a perder para as pequenas, e menos ainda grandes delicadezas.

Mas é exatamente quando adentramos nas soleiras dos mundos íntimos, que nos deparamos com o maior estrago que esse vício provoca. Parece que vivemos numa bolha pessoal e relacional alimentada por uma recorrente expectativa de que o outro seja 'exatamente' como eu quero; que me agrade, que me realize, que me trate de forma especial sempre, que me traga sempre boas notícias, boas notas, bons presentes, boas palavras, que seja enfim 'a pessoa dos meus maiores e melhores sonhos'.

Aonde isto pode nos levar, senão ao pesadelo cotidiano da queixa e da frustração? Passando cada um a viver em suas relações o sombrio cenário do 'zoom fotográfico' do que 'falta no outro': este é sempre avaliado como inteligente, criativo, mas... vive doente, tem compulsões, não quer sair de seus problemas, etc... É generoso, mas... não sabe cuidar de si mesmo, é distraído, às vezes é grosseiro, etc... é muito inteligente mas... não ganha dinheiro, não quer trabalhar, não escolhe bem seus parceiros, etc... Em face de isto tudo, passamos a nutrir nossos relacionamentos de críticas, culpabilizações e condenações do outro, deixando nossas relações impregnadas pelo odor mortífero da insatisfação e queixa eternas.

Daí porque o mais das vezes, sem nos aperceber, escolhemos o mundo da queixa como 'forma de vida', negamos a nossa participação complementar nos descaminhos que elegemos, e menos ainda tomamos o leme de nossas vidas e mudamos de direção, correndo, naturalmente o risco de repetirmos novos ciclos de erros, mas também vivendo a preciosa chance de também acertarmos nas novas escolhas. Tudo isso recheado da necessária responsabilização pelo que faltará nesse novo 'lugar', tanto quanto pelo que será mais difícil ou desafiador no novo cenário escolhido.

E para terminar: inspirando-nos no filósofo Platão

Mais uma vez recorro aos pensadores e poetas para finalizar nossos encontros reflexivos, desta feita busquei nos valiosos ensinamentos do filósofo grego Platão, e sua "República" ( Décimo livro 617 b - e; 618 a,b), algo que em linguagem poética e mítica nos auxilia a viver mais responsavelmente nossas escolhas: 

" ... E a concórdia das oito notas produzia uma só harmonia. E havia três outros seres sentados equidistantes uns dos outros, cada um sobre um trono. Esses eram as Parcas (ou Moiras), as filhas da Necessidade: Laquesis, Cloto e Atropos. Vestiam-se de branco, tinham coroas de flores na cabeça e cantavam em uníssono com a música das sereias. Laquesis cantava as coisas do passado, Cloto as coisas do Presente e Atropos as coisas do Futuro. Com sua mão direita Cloto tocava a circunferência externa do fuso (a roda do destino) auxiliando no giro, mas fazia uma pausa intermitente; Atropos fazia o mesmo com as circunferências internas e Laquesis auxiliava alternadamente ambos os movimentos, um com uma mão e o outro com a outra mão. Quando as almas chegaram [na luz] tiveram imediatamente de se apresentar perante Laquesis onde um intérprete divino as dispôs em ordem, tomou do regaço de Laquesis uma quantidade de sortes e de modelos de vida, subiu em um púlpito e lhes falou: 

'Eis a mensagem de Laquesis, a filha virgem da Necessidade: Almas que vivem por um dia, este é o início de um outro ciclo de geração mortal no qual o nascimento é portador da morte. Teu Dáimon (anjo da guarda) não será destinado a vós por sorteio, mas o escolhereis'. ... 

Em seguida, os modelos de vidas foram colocados sobre o solo diante delas, numa quantidade muitíssimo superior ao das almas ali reunidas, eram de todos os tipos, pois havia ali as vidas dos animais, bem como todas as variedades de vidas humanas. .... Mas não havia nenhuma determinação do perfil e qualidade da alma, pois a escolha de uma diferente vida determinava inevitavelmente a alteração do caráter da alma." ( grifos meus, Livro: A República [ou Da justiça]/ Platão. Tradução, textos complementares e notas Edson Bini/ São Paulo: EDIPRO, 2012.

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