Estudo de Alessandra Teixeira, da USP, mostra que a mistura de omissão e violência proporcionou as condições para a articulação do crime organizado
por Paloma Rodrigues
Marcelo Camargo/ABr
Reintegração de posse de um terreno
ocupado no Jardim Iguatemi, zona leste
da capital paulista, em março deste ano
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O processo da construção da criminalidade no Brasil foi diretamente influenciado pela atuação das polícias. A conclusão é da socióloga Alessandra Teixeira, que em sua pesquisa analisou a construção da ilegalidade no Estado de São Paulo da década de 1930 até os dias atuais e verificou que a base do policiamento do Estado se fincou em dois pontos: repressão violenta e uma mistura de omissão e corrupção, características comuns nas polícias civil e militar. O estudo também indica que o aumento da repressão antecede a disseminação do crime organizado e que essa repressão colabora para sua massificação.
A pesquisa de Alessandra é um doutorado realizada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e analisou depoimentos de ex-presos, biografias e relatos policiais, além de relatos e reportagens jornalísticas de todo o período (a pesquisa em PDF pode ser acessada AQUI).
Segundo Alessandra, o atual modelo do crime em São Paulo se configurou no final dos anos 1980 e início dos anos 1990. A organização da “economia da droga”, termo usado pela socióloga, se dá em grande parte dentro dos presídios. “Neste período ocorreu a prisão em massa, direcionada aos autores de roubo e da 'criminalidade patrimonial desarticulada', proporcionando um 'recrutamento' da população para o espaço da prisão”, diz. A partir disso, afirma Alessandra, o Estado brasileiro teria permitido a formação de uma situação particular que influenciaria os moldes do novo mercado do crime: um misto de omissão do controle das forças dentro das prisões ao mesmo tempo em que usava de repressão violenta. “O Estado não se interessava em controlar o monopólio da violência dentro das prisões e permitia que acontecesse uma luta permanente por poder entre os presos”, afirma. Por outro lado, o Estado fortalecia a tortura e a violência dentro das cadeias. “Foi o caldo de onde nasceu o PCC. Ele não só nasce, como se consolida e se expande por meio da prisão”, diz.
A base da omissão das polícias, que Alessandra chama de permissividade, está nas origens das instituições de policiamento. Nos anos 1960, a ilegalidade se concentrava em regiões específicas da cidade, como o quadrilátero da Boca do Lixo, no centro da capital paulista. Nesses locais, funcionava o esquema da “mercadoria política” em torno da prostituição. “A mercadoria política é o 'acerto', o preço pela liberdade, o dispositivo que se estabelece com o agente que deveria aplicar a lei, mas que cobra para se omitir de aplicá-la”. Os crimes giravam em torno da exploração da prostituição em si, do jogo e do pequeno tráfico de drogas. “Nos anos 60, as prostitutas tinham que pagar a 'caixinha' para os policiais para continuar exercendo a profissão nas ruas.” O perfil dessa mercadoria política muda ao longo dos anos, mas a lógica se mantém.
A “gestão de ilegalismos”, segundo Alessandra, vai para além da esfera dos órgãos policiais. “As secretarias e o judiciário também têm um modus operandi. O judiciário brasileiro é absolutamente tolerante a qualquer violência institucional promovida. As instituições se blindam internamente, é preciso que escândalos aconteçam para que algo mude”.
Histórico. No período do Império até meados do século XX, a repressão era voltada para o controle da vadiagem. "A definição do que era o vadio era subjetiva e feita a partir de critérios discriminatórios", diz. A socióloga explica que a criminalização daqueles que não trabalhavam e eram considerados improdutivos (os "vagabundos") pode ser relacionada à libertação dos escravos. "O fim da escravatura colocou um enorme contingente de negros nas ruas, o que fez com que as elites quisessem controlar essa demanda, muitas vezes definindo essa massa como insubmissa ao trabalho", diz.
Para operar esse controle foi criado um sistema de prisões para averiguação. Essas casas de detenção abrigavam aqueles que a polícia acreditava ter potencial para a ilegalidade, um critério que, segundo Alessandra, era subjetivo e discriminatório, considerando que muitas suspeitas surgiam sem que houvesse provas. "O local passou a ser chamado de 'mofo', porque as pessoas eram colocadas lá e ficavam por muito tempo, até que se averiguasse se elas eram culpadas ou não. Era um número excessivo de prisões para um baixo número de investigações e inquéritos."
O crescimento urbano gerou um boom populacional a partir de meados dos anos 1960, fazendo com que as periferias das cidades passassem a receber contingentes cada vez maiores de pessoas. "É um momento que, apesar da expansão, é de crise. Vão nascer dali as formas mais precárias de habitação”, diz Alessandra. É neste período que surge o fenômeno da marginalização, com o marginal já nascendo como uma figura vista, a priori, como perigosa. “Você tem aqueles farrapos urbanos - que de fato cometem pequenos crimes -, mas você não tem o número de roubos nem a organização que temos hoje", diz. "Aquilo gerou uma distorção da realidade, incentivada pela ditadura.”
A ditadura, em 1969, faz da Polícia Militar, seu braço armado, o único detentor do policiamento na cidade, enquanto a Polícia Civil se torna uma polícia judiciária e investigativa. Até então, o policiamento se dividia entre a Força Pública, uma instituição que apesar de ser moldada pelos preceitos militares, não tinha ligação direta com o Exército, e a Polícia Civil. “A PM nasce como uma força ambivalente: ao mesmo tempo em que era uma força de repressão do Estado, que reprimia contraventores e questionadores do regime, era a força que combatia o crime urbano”, explica a socióloga. O golpe de 64 e o policiamento por ele empregado estigmatizam a população às margens das grandes cidades e reforçam o sentimento de insegurança da população.
Mesmo depois do fim da ditadura, a postura repressiva da polícia não se perdeu. Na verdade, o que Alessandra aponta é que a evolução caminha na direção contrária: na última década se observa uma política mais intensa de valorização da PM, com a transferência maciça de recursos para a corporação, em detrimento da Polícia Civil e de outros órgãos também ligados a segurança pública. Entre 2005 e 2010, diz a pesquisadora, a PM recebeu 35% a mais dos recursos previstos no orçamento do Estado, enquanto a Polícia Civil recebeu 13% a menos do que o planejado. Em valores, são quase 300 milhões de reais a mais para a PM e 65,6 milhões de reais a menos para a Polícia Civil. "O sucateamento de Polícia Civil continua e isso é grave, porque se perde o poder investigativo e o que passa a ter destaque são as 'operações'. Tudo passa a ser com uma operação militar de guerra, com invasões de favela e combate ao tráfico".
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