A preocupação com a aparência pode se tornar uma obsessão nociva ao bem-estar, distorcendo a autoimagem da realidade
AMANDA POLATO
Experimento da Dove: à esquerda, desenho feito com base na auto-descrição de uma mulher. À direita, retrato com base no relato feito por um desconhecido (Foto: Reprodução) |
Quando era pequena, me sentia feia por ter cabelos cacheados. Preferia prendê-los e sofria quieta quando alguém insinuava que eram “ruins”. Quase nenhuma criança da escola tinha cabelos como os meus e era difícil ser diferente. Só na adolescência aprendi a gostar deles. Provavelmente todo mundo já se sentiu inseguro sobre a própria imagem em algum momento. Psicólogos afirmam que a duração e a intensidade desse tipo de sentimento dependem da personalidade de cada um, do ambiente e das interações com outras pessoas. Alguém perfeccionista ou que lida mal com opiniões alheias, por exemplo, pode sentir-se inadequado com mais frequência. A situação é tão corriqueira que nem sempre paramos para analisá-la e para entender o impacto dela na nossa vida.
Segundo uma pesquisa divulgada na última semana, 71,5% das mulheres brasileiras se preocupam com o corpo. As de 30 a 34 anos são as menos satisfeitas com a própria beleza, diz o estudo feito pelo Instituto Ideafix e encomendado pela Mentor, uma empresa de produtos estéticos. O levantamento, que ouviu 400 mulheres, em Belo Horizonte, Brasília, Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo, tinha como objetivo avaliar a percepção das brasileiras sobre o próprio corpo e a realização de cirurgias estéticas.
Há alguns meses, a Dove, marca de produtos de beleza e higiene, colocou à prova a ideia que as pessoas (principalmente as mulheres) têm sobre a própria beleza. Um vídeo no YouTube alcançou milhões de visualizações por mostrar um experimento com resultado surpreendente. Algumas americanas foram convidadas a descrever seu rosto ao desenhista forense do FBI Gil Zamora, que ficava debruçado sobre uma mesa atrás de uma cortina. Sem saber o que ele fazia, as convidadas detalharam seus traços, os tamanhos dos seus cabelos, narizes e queixos. Muitas preferiram destacar marcas que as incomodavam, como rugas e sardas. Além de falar sobre a própria aparência, tiveram que relatar a de outro participante do desafio que haviam conhecido no mesmo dia. “As mulheres eram muito críticas sobre suas pintas, cicatrizes e coisas do tipo. Mas as outras pessoas as descreviam apenas como mulheres normais e bonitas”, disse o agente do FBI. “Ela tinha olhos bonitos. Eles se iluminavam quando ela falava”, afirmou um dos participantes sobre outra pessoa. Ao serem confrontadas com os dois desenhos – um resultado da autodescrição e outro, do relato de alguém –, as mulheres se emocionaram. A segunda versão era sempre mais gentil.
Uma das mulheres se dá conta, no vídeo, de que essa distorção é muito problemática. “Isso afeta as escolhas e os amigos que fazemos, os empregos a que nos candidatamos, como tratamos nossas crianças. Afeta tudo.”
Se esse sentimento é algo tão nocivo, por que, então, teimamos em julgar nossa beleza e nos sentimos tão feios?
Na última década, a Dove fez duas pesquisas globais para tentar entender a questão. A última, divulgada há dois anos, mostrou que apenas 4% das mulheres se sentem belas. No entanto, 80% veem beleza nos outros. Foram ouvidas 6.400 mulheres de 20 países. No Brasil, o índice das que se consideram bonitas é maior, 14%, mas ainda corresponde a uma minoria da população. Em todo o mundo, quase 60% das entrevistadas admitiram sentir pressão para ser bonita. Para 32%, a maior cobrança vem delas mesmas, acima de sociedade (12%), amigos e família (9%) e mídia (6%). “A aparência é uma fonte de ansiedade para muitas pessoas, que têm de enfrentar estereótipos e referências de perfeição. A maioria não consegue enxergar o que tem de bela”, diz Adriana Castro, diretora de Skin da Unilever, empresa responsável pela marca Dove.
O maior problema é que muita gente fica insegura com base em modelos que estão longe da realidade, afirma o psicólogo Marco Antonio de Tommaso, especializado em atender modelos. “Estatisticamente, um padrão corresponde a algo que 50% das pessoas possam ostentar. Mas a sociedade define como padrão a exceção genética: a mulher alta, loira, muito magra. Além de ser beneficiada pela natureza, a mulher dita perfeita anda sempre muito produzida. O que vemos é uma ilusão.” É preciso considerar que, em uma comunidade rural, por exemplo, é muito mais fácil definir os critérios de beleza. Em uma sociedade urbana e mais complexa, eles se tornaram amplos e flexíveis. Há espaço para manifestações individuais ou grupais sem nenhuma relação com a aparência exibida em capas de revista de moda. Mesmo assim, os modelos idealizados de beleza, tanto masculinos quanto femininos, ainda são admirados por muita gente e alimentam, de forma geral, o mercado de roupas, cosméticos, tratamentos estéticos, cirurgias plásticas.
A escritora feminista Naomi Wolf diz no livro O Mito da Beleza que, desde a Revolução Industrial, as mulheres ocidentais são controladas por estereótipos, e isso cria uma espécie de alucinação inconsciente, que tem sido muito lucrativa para a indústria da beleza. Ela defende que as mulheres se cuidem e continuem a fazer o que lhes faz bem, mas repudia a ideia de ser “refém” da própria aparência. “O problema com os cosméticos existe somente quando as mulheres se sentem invisíveis ou incorretas sem eles.”
A antropóloga Mirela Berger percebeu essa “obrigação da beleza” ao ouvir mulheres paulistanas de classe média para sua tese de doutorado na Universidade de São Paulo. Entre mais de 60 entrevistadas, praticamente nenhuma se sentia satisfeita com a própria imagem. “A identidade está muito calcada na aparência e quem não atinge o ideal sofre por isso.” A autocrítica excessiva e o julgamento de outras mulheres e da própria família criam diversos problemas cotidianos. Viver esperando a aprovação das pessoas ao redor pode custar caro. “Conversei com professoras de ginástica lindas que não tinham coragem de colocar um biquíni na praia, mulheres que não tinham liberdade alguma para comer e até aquelas que se privavam de intimidade maior com seus maridos por vergonha do próprio corpo.”
Reconhecimento da beleza
A valorização da própria beleza não é algo simples e pode ocorrer após eventos traumáticos, como no caso da bancária baiana Carina Queiroz Gomes da Silva, de 33 anos. Ela nunca foi exatamente uma vítima da ditadura da beleza, mas algumas coisas em seu corpo a incomodavam quando mais jovem. Aos 18 anos, frequentava uma academia para deixar as pernas mais grossas e torneadas. Um acidente de carro mudou complemente os planos e sua percepção sobre a própria imagem. Carina sofreu uma lesão medular e ficou paraplégica. Por permanecer apenas sentada ou deitada, suas pernas perderam os músculos e ficaram ainda mais finas. “Eu queria mudar algo em mim, mas depois do acidente isso não fazia mais sentido. Só queria o corpo que eu tinha antes. A gente passa a se dar mais valor.” Ela nunca deixou de ser vaidosa ou se sentir bonita. Depois de conhecer uma fotógrafa especializada em registrar pessoas com deficiência, percebeu que tinha talento para atuar como modelo. Hoje Carina concilia o trabalho de supervisão em um banco em Salvador com alguns desfiles e sessões de fotos.
Carina Queiroz em sua festa de casamento (Foto: Kica de Castro ) |
Nenhum comentário:
Postar um comentário