Proibição do Conanda à publicidade infantil
é ignorada. Para especialistas, falta
de maturidade das crianças as torna
um público mais suscetível ao
apelo das marcas
//Por Thais Paiva
Elas participam de 80% das decisões de compra da família, segundo a Interscience, e passam, em média, 5 horas e 22 minutos diários em frente à televisão – o tempo, estimado pelo IBGE, é superior ao despendido em período escolar no Brasil ou no convívio com os pais. São elas que apresentam aos familiares novos produtos e os informam sobre o que está ou não na moda. Em outras palavras, as crianças são um importante e rentável alvo para os anúncios publicitários e outros tipos de comunicação mercadológica. O fato pode ser constatado pela quantidade de personagens de desenhos e filmes infantojuvenis que estampam marcas de roupas, brinquedos, materiais escolares e produtos alimentícios. A mensagem dos comerciais é invariavelmente a mesma: as crianças mais felizes e populares são aquelas que possuem determinado item. E, claro, os bons pais, aqueles que presenteiam seus filhos com ele.
Pauta constante nas casas e escolas, a discussão acerca da publicidade e do consumismo infantil ganhou novo fôlego em março deste ano com a aprovação da Resolução nº 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Conanda, órgão vinculado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. O texto passa a classificar como abusivas todas as formas de publicidade dirigida às crianças e adolescentes. Combinada ao artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor, que prevê como abusiva e ilegal a publicidade que se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, a resolução tem força para proibir a veiculação desse tipo de propaganda. Segundo o documento, estão banidas quaisquer comunicações mercadológicas com intenção de persuadir esse público ao consumo, utilizando-se, entre outros, de uso de linguagem infantil, efeitos especiais, excesso de cores, trilhas sonoras de músicas infantis ou cantadas por vozes de criança e participação de celebridades e personagens com apelo ao público infantil.
A resolução, porém, não está sendo respeitada pela Associação Brasileira de Anunciantes (ABA), a Associação Brasileira de Agências de Publicidade (Abap) e outras entidades ligadas ao ramo publicitário, que declararam que “reconhecem o Poder Legislativo, exercido pelo Congresso Nacional, como o único foro com legitimidade constitucional para legislar sobre publicidade comercial” e que “a autorregulamentação exercida pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) é o melhor e mais eficiente caminho para o controle de práticas abusivas em matéria de publicidade comercial”.
“A resolução do Conanda não é lei e não pode infringir a Constituição Federal, por isso, entendemos que não tem aplicação legal”, diz Paulo Gomes de Oliveira Filho, assessor jurídico da Abap. “A resolução estabelece que pelo simples fato de ser direcionada ao público infantil já é uma propaganda abusiva, não importa que o conteúdo não o seja, o que é um absurdo.” Para o advogado, a publicidade é um ponto infinitamente pequeno dentro da orientação da criança. “Não dá para colocar a propaganda como a caixa de Pandora, responsável por todos males do mundo, pela obesidade infantil, por exemplo. São os pais que sabem se devem ou não levar o filho ao fast-food e se ele pode comer um ou dois sanduíches”, diz.
Para Diego Medeiros, defensor público do estado de São Paulo e representante da Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da Juventude no Conanda, a Resolução nº 163 soma esforços ao Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para maior compromisso e responsabilidade da sociedade em relação ao tema. “Os operadores de direito devem ficar atentos para que a aplicação harmônica desses três instrumentos normativos seja pauta no cenário político brasileiro. A resolução traz respaldos e princípios definidos dentro do ECA e deve repercutir de forma administrativa ou até mesmo judicial, no sentido de fazer os publicitários se responsabilizarem por condutas consideradas abusivas”, diz.
A aprovação do documento foi festejada pelo Instituto Alana, organização sem fins lucrativos de assistência social, educacional e cultural para crianças, que vem lutando a favor da proibição desde 2006. “A criança não tem desenvolvimento cognitivo para compreender a intenção persuasiva das mensagens publicitárias, o que é real e o que não é. Logo, não existe relação de igualdade entre anunciantes e público infantil. Com a proibição, elas serão poupadas desse apelo consumista, dessa inversão de valores onde para ser alguém na vida ela precisa ter tal coisa”, diz Isabella Henriques, diretora do instituto. A responsabilidade de cuidado das crianças, defende Isabella, não é exclusivamente da família, mas também da sociedade e do Estado. “Os pais têm sua responsabilidade, sem dúvida, mas eles não têm como lutar contra essa avalanche de anúncios publicitários sozinhos, que entram em casa por diversos veículos de comunicação e instituições. Cabe ao poder público fazer uma regulação e às empresas respeitar essas normas”, aponta.
Em resposta à postura das empresas, o Instituto Alana encaminhou em maio uma denúncia à Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça. Segundo nota da organização, as campanhas publicitárias continuam falando diretamente com as crianças. Boa parte das trilhas sonoras, linguagem e personagens utilizados ainda têm conotação voltada diretamente ao público infantil. A Senacon comprometeu-se em analisar o caso.
Infância vs. consumo
Ao contrário do que alegam as entidades publicitárias, a propaganda tem um impacto direto e nocivo na vida e desenvolvimento dos pequenos. É o que retrata o documentário Criança, a Alma do Negócio (2008), dirigido por Estela Renner (de Muito Além do Peso). Sob um olhar crítico, o filme revela como as marcas manipulam o desejo e a fantasia infantis, a fim de transformá-los em consumidores mirins. Em uma das cenas, a psicóloga Roberta Carneiro mostra para um grupo de crianças um cartão com a imagem de um avestruz. Nenhuma criança consegue dizer o nome do animal. Mas o cenário é bastante diferente quando os cartões trazem os logotipos de empresas de telefonia. As respostas são instantâneas, estão na ponta da língua.
Para a psicóloga norte-americana Susan Linn, diretora da Campanha por Uma Infância Sem Comerciais (CCFC) e autora do livro Crianças do Consumo: A infância roubada, a publicidade e o marketing podem ser apontados como um fator constitutivo dos problemas que as crianças enfrentam hoje. “Não são a única causa, é importante destacar. Mas são um fator da obesidade infantil, dos distúrbios alimentares, da sexualização precoce das meninas, da violência juvenil, do estresse familiar e um fator importantíssimo na aquisição de valores materialistas, a falsa noção de que marcas ou as coisas que compramos nos farão felizes”, disse durante o II Fórum Internacional Criança e Consumo, promovido pelo Instituto Alana.
Além disso, a publicidade dirigida ao público infantil vale-se da falta de autonomia e maturidade da criança para vender seus produtos, dizem os especialistas. “O adulto tem capacidade de escolher, de discernir se aquela propaganda é fantasiosa ou real. A criança, não. Quando uma propaganda diz que sem aquele produto ela não será feliz, para ela aquela mensagem traduz um fato”, diz Júlio Pompeu, professor de Ética do Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas da Universidade Federal do Espírito Santo. Essa diferença entre realidade e ficção só é construída mais tarde. “Basta ver uma criança brincando com uma caixa de papelão como se fosse um carrinho. Se você chuta a caixa, ela chora não porque você chutou o papelão, mas porque chutou o carrinho”, diz.
Pompeu ressalta ainda que a publicidade infantil não está circunscrita à propaganda de brinquedos e outros itens do universo da criança. “Quem fica mais tempo em casa vendo tevê são as crianças. Os anunciantes sabem que é com elas que precisam conversar. Então colocam na propaganda de celular uma criança falando para elas se identificarem, usam a criança para atingir o adulto.” A ideologia consumista presente na publicidade estimula também a precocidade, tratando as crianças como “miniadultos”, pois quanto mais cedo se tornarem consumidores, melhor. “Erotiza-se a criança, principalmente as meninas. Há um discurso machista muito presente que qualifica a mulher quanto à sua beleza. A menina legal é a princesa. Aquela que é bonita e não a que é competente”, diz o professor.
A promessa de felicidade impacta não apenas o indivíduo, mas a sociedade como um todo. Segundo Isabella, a criança de uma família com recursos pode até ter seus desejos atendidos, mas nunca ficará feliz. “O mercado não quer o cliente satisfeito, e sim querendo sempre mais”, diz. Por outro lado, a criança que não tem tantas condições vai continuar nutrindo o desejo da posse, se sentindo inferior aos demais. “Isso pode influir em uma passagem para o campo da violência. Pesquisas já mostram que um dos fatores que levam crianças e adolescentes a se envolverem em roubos, furtos ou tráfico de drogas é o desejo de ter produtos que possam levá-los a ter status social”, aponta Isabella.
A generificação, ou seja, a distinção entre gêneros, é outro ponto exacerbado pela publicidade, diz Amana Mattos, professora de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e pesquisadora na área de Infância, Juventude e Gênero. “Hoje você encontra fralda descartável para meninos e para meninas, pois assim se criam necessidades específicas, novos nichos de consumo. Se antes você comprava uma bola para ser compartilhada entre um casal de filhos, hoje você tem de comprar duas, porque tem bola de menino e de menina. Isso também acontece em relação às idades: criam-se subdivisões, fases, dentro da infância e com isso novas possibilidades de venda”, conta.
Entretanto, Amana ressalta que a proibição da publicidade dirigida ao público infantojuvenil, por si só, não resolve o problema. “A questão central é: que valores estão sendo passados para as crianças? Proibir não resolve o problema que é o consumo naturalizado em nossa sociedade”, diz. Para a professora, é papel da escola e dos pais discutirem sobre a questão. “É importante construir uma capacidade crítica nas crianças e adolescentes. Mostrar como a publicidade cria vontades, necessidades inventadas, totalmente desconectadas com o nosso cotidiano.”
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