julho 21, 2015
Para quem se imagina distante da anorexia e da bulimia, há grandes chances de que pelo menos alguma pessoa próxima, seja uma amiga ou uma pessoa da família, viva um drama com a comida
Por Jarid Arraes
Quando um programa de televisão decide abordar o problema dos transtornos alimentares, a reação da audiência geralmente é de choque. Muitos consideram a anorexia, a bulimia e outros transtornos alimentares coisas horríveis e incompreensíveis; são pessoas que se sentem impactadas pela imagem de corpos extremamente magros e se sensibilizam com os relatos tristes das jovens que comem quantidades enormes de alimentos para depois forçarem vômitos.
Pode ser difícil para essas mesmas pessoas, no entanto, identificar e eliminar os comportamentos que estimulam e naturalizam hábitos alimentares problemáticos. Há muitas formas de se manifestar: seja por comentários censurando a quantidade de comida que uma amiga está comendo, avaliações não solicitadas sobre a aparência física de outras mulheres ou pela utilização de termos depreciativos contra pessoas gordas. Até mesmo dietas irresponsáveis, cheias de privações alimentares, podem ser problemáticas quando são repassadas como recurso para o emagrecimento.
O fato é que nossa cultura ensina o tempo inteiro que não comer é a melhor saída para se obter um corpo magro e supostamente perfeito; e mesmo que muita gente consiga resistir essa pressão, há uma espécie de punição para quem não possui o corpo enquadrado nos padrões. Além dos deboches, é difícil encontrar roupas que caibam e há problemas de acessibilidade: os direitos de sentar em uma cadeira ou mesmo utilizar um cinto de segurança, por exemplo, são comprometidos pela lógica de que as pessoas não deveriam ser gordas. Com tanta hostilidade, sobretudo nas cobranças para que mulheres se encaixem nos ideais de beleza, é fácil entender por que tantas jovens perdem suas vidas presas na anorexia e na bulimia.
De acordo com uma tese desenvolvida pela nutricionista Greisse Viero da Silva Leal, doutora em Ciências, área de concentração Nutrição em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP), os índices de jovens vivendo com comportamentos de risco para transtornos alimentares é bastante preocupante. Em sua pesquisa, realizada com 1.167 adolescentes de escolas técnicas do Centro Paula Souza, na cidade de São Paulo, 12,2% dos jovens entrevistados tinha algum comportamento de risco, a maioria do gênero feminino. Práticas não saudáveis, como pular refeições, usar medicamentos ou fumar mais com o objetivo de perder peso eram utilizadas por 31,9% desses jovens.
Com índices tão altos, a triste realidade dos transtornos alimentares pode estar muito mais perto do que aparenta; para quem se imagina distante da anorexia e da bulimia, há grandes chances de que pelo menos alguma pessoa próxima, seja uma amiga ou uma pessoa da família, viva um drama com a comida.
A jornalista Marília Veloso conta que viveu ao longo de 17 anos com a bulimia, fantasiando que as pessoas lhe teriam mais apreço se fosse magra. “Fui uma criança e uma adolescente gorda, com uma família igualmente gorda. Porém, sempre fui muito cobrada para me encaixar nos padrões e, consequentemente, ser magra. Meu pai era o mais insistente e seus motivos variavam de ser feia por estar gorda a ‘nunca arrumar namorado’. Juntando isso com o fato de eu ter sido uma criança bastante ansiosa, quanto mais eu desejava emagrecer, mais eu comia”, introduz.
Veloso diz que o primeiro vômito forçado veio por ter se sentindo culpada após comer muito. Para ela, a sensação de alívio é o que mais lhe salta à mente. “Nos últimos anos, quase não precisava me esforçar para vomitar. Era só ter comido e ir ao banheiro. Ao longo do tempo, passei a reconhecer quais comidas eram mais fáceis e quais as mais difíceis de expelir. Nunca havia me dado conta de como isso regia meus hábitos alimentares até passar uma sessão inteira de terapia elencando esse ‘conhecimento’”, compartilha.
A estudante Janaína Barros também iniciou seus comportamentos bulímicos porque se sentia pressionada a emagrecer. “Eu era uma garotinha magra, mas fui engordando na adolescência após ser estuprada por um namorado que não admitia que eu não quisesse fazer sexo. Terminei o relacionamento, mas sofri muito com tudo e encontrei na comida o meu consolo. Só que esse ex-namorado estava sempre comentando com amigos em comum que era um alívio eu ter terminado, porque tinha ficado gorda e feia”, relata. “Meus parentes também me cobravam muito, como se eu ter engordado fosse a pior coisa que eu tinha feito contra mim mesma. Como eu precisava comer, por motivos óbvios, eu vi na internet que podia induzir o vômito”, afirma.
Depois de poucos meses, a estudante já tinha perdido mais de vinte quilos, mas nada era o suficiente para que ela deixasse de se enxergar com o mesmo corpo que tinha antes de emagrecer. “Eu olho no espelho e vejo um corpo gordo. Estou melhor nos últimos meses, principalmente porque comecei a falar sobre meu problema com outras mulheres, mas não sei se um dia eu vou conseguir ter uma relação normal com a comida”, lamenta Barros.
Para as mulheres que não encontram suporte e não têm acesso a informações que confrontam os transtornos alimentares, é realmente muito difícil conseguir vencê-los. A mídia, o entretenimento e até mesmo os profissionais da área da saúde vendem o tempo inteiro o corpo magro como o que é melhor, mais saudável e mais bonito. Numa sociedade gordofóbica como a nossa, o desafio é mostrar a essas mulheres que não tem nada de correto em forçar a magreza e os padrões de beleza.
Mesmo para aquelas que são feministas, como é o caso de Marília Veloso e Janaína Barros, o percurso não é simples. Embora saibam que os transtornos alimentares estão profundamente relacionados aos conceitos machistas e gordofóbicas da nossa cultura, todo avanço ainda é encarado com cautela. “Acho que a bulimia vai andar comigo para o resto da vida. Embora faça um ano, incríveis 12 meses, que eu não vomito, não há uma refeição que eu faça sem pensar no que eu estou comendo e de que forma isso vai me afetar. E isso muitas vezes é negativo, mas pode ser positivo também. São cada vez mais raros os ataques desenfreados; já sei reconhecer que a comida, independentemente da quantidade, não vai tapar nenhum buraco emocional”, afirma Veloso.
“Ás vezes, eu tenho uma compulsão e até vou à padaria para comprar doces, com a intenção de comer tudo de uma vez. Mas muitas vezes, quando chego em casa, eu consigo me controlar e mesmo que eu coma tudo, não vou induzir o vômito. Penso que estou destruindo meu corpo, não tornando ele perfeito. Perfeito é o corpo saudável e a anorexia, a bulimia, não são sinais de saúde. Ser magra não é definitivamente um sinal de saúde”, explica Barros.
Para essas duas mulheres, a psicoterapia e o conhecimento que adquiriram a respeito do feminismo foram fatores muito importantes na luta contra os transtornos alimentares. A compreensão do que está por trás dos padrões de beleza, dos mecanismos misóginos e racistas que pregam o que é a beleza, assim como dos abusos de quem cobra o emagrecimento, foram passos importantes para que elas pudessem assumir controle sobre seus corpos – não de uma forma prejudicial e punitiva, mas com maior aceitação e equilíbrio.
“Estudar e entender sobre feminismo, estar em contato com esse universo e com mulheres conscientes de seu papel, o que é genuíno, o que é imposto, tem sido a grande virada”, diz Veloso. “Recentemente engordei quatro quilos. Não posso dizer que o ganho de peso não me afetou negativamente, mas hoje em dia tem uma fagulhinha lá dentro que me faz acreditar que nenhum número na balança pode me fazer mais ou menos feliz, mais ou menos feia, mais ou menos aceita, digna, correta, interessante, melhor…. Pode parecer pouco, mas tem ajudado a redefinir a posição de protagonismo que tenho em minha própria vida. Sinto-me mais forte e acolhida por essas mulheres que eu nem conheço!”, exclama.
Para que mais jovens consigam dar meia volta e afastar o sofrimento dos transtornos alimentares, precisamos, coletivamente e enquanto sociedade, repensar nossos valores e aquilo que ainda consideramos aceitável de ser ensinado e disseminado como verdadeiro. Tão importante quanto o acompanhamento de profissionais capacitados para lidar com a anorexia e a bulimia é a reflexão crítica e politizada a respeito do que é imposto contra as mulheres. Sem que o machismo seja genuinamente discutido, sem que a mídia seja cobrada pelas mentiras que propaga a respeito do corpo feminino, continuaremos fazendo mais vítimas.
Para explicar melhor a gravidade do problema, pesquisadores dinamarqueses e britânicos indicam que a taxa de mortalidade de pessoas com transtornos alimentares é extremamente elevada – e não apenas por complicações de saúde resultantes das privações alimentares ou pelos ferimentos causados pelos vômitos constantes. Muitas dessas pessoas morrem porque recorrem ao suicídio. Mais de 44 anos de estudos científicos foram analisados pelos pesquisadores, que resultaram no artigo “Mortality Rates in Patients With Anorexia Nervosa and Other Eating Disorders: A Meta-analysis of 36 Studies” (“Taxa de mortalidade em pacientes com anorexia nervosa e outros transtornos alimentares: uma meta-análise de 36 estudos”). O artigo em inglês pode ser lido na íntegra e gratuitamente no arquivo do JAMA Network.
“Me sinto agredida e prejudicada pelo que vejo nas revistas, na moda e na televisão. Através deles, meus familiares e amigos aprenderam que ser magra é bonito e ser gorda é feio. Lendo e assistindo essas porcarias, eu acreditei por muito tempo que só teria felicidade, sucesso e valor se eu fosse toda encaixadinha nesses conceitos de beleza, de magreza e saúde. Eles me adoeceram”, diz Barros com indignação. “Muita gente está envolvida no sofrimento de meninas anoréxicas e bulímicas como eu. Só que nem todas conseguem melhorar como eu melhorei. Quem mais conseguirá enxergar que possui responsabilidade nisso?”, provoca.
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