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domingo, 2 de agosto de 2015

Submetida à mutilação genital feminina aos 4 anos de idade, guineense combate prática entre famílias africanas na Espanha


Fátima Djarra Sani trabalha desde 2008 em território espanhol para conscientizar famílias de imigrantes sobre os perigos da MGF: 'se nós mulheres africanas não nos levantarmos na luta contra a mutilação, ninguém vai fazê-lo por nós'
Jessica Lea/DFID / Flickr CC


Esther tinha 8 anos quando foi mutilada: 'agora que conheço as consequências, jamais cortaria minhas filhas', diz sua mãe, em Burkina Faso


O dia começou como uma festa. Fátima Djarra Sani, nativa de Guiné-Bissau, tinha quatro anos e sua madrasta anunciou que seria “um grande dia” para ela e para sua irmã Binta, de oito anos. Elas foram lavadas cuidadosamente, e uma comitiva de mulheres, vestidas com suas melhores roupas, dançavam e cantavam. Nesse dia, em um banheiro que não passava de um cubículo sujo de cimento, extirparam-lhe o clitóris e os pequenos lábios da vulva. Para os mais velhos era a celebração de uma tradição, “porém nós agora sabemos que a mutilação é uma questão de saúde, que não tem nada de positivo”, explica Djarra, autora de “Indomable” [“Indomável”, em tradução livre], recém-publicado na Espanha.
Quando uma editora lhe propôs contar em livro sua vida, a de sua família e as complexidades sociais que ainda legitimam a mutilação em cerca de 28 países africanos, de acordo com as Nações Unidas, Djarra admite que ficou em dúvida. “Nesse dia, eu pensei muito. É um problema que não é apenas meu. É também da minha família. Na África, a família é tudo.” Porém, apesar das reservas, a resposta foi sim. Fátima sorri antes de pronunciar o pensamento que deu o pontapé inicial ao livro: “Se nós mulheres africanas não nos levantarmos na luta contra a mutilação, ninguém vai fazê-lo por nós.”
Antes da publicação do livro, ela viajou a seu país para explicar o projeto para sua família. Lá muitos não sabiam a que ela se dedicava. “Limpando”, responde um parente à pergunta sobre sua ocupação na Espanha. Djarra lhes contou então que trabalha como mediadora na organização Médicos do Mundo em Navarra desde 2008, e que dia a dia “sensibiliza outras mulheres sobre a mutilação”, para que as famílias decidam não submeter suas filhas a esta experiência.
A mutilação genital começa entre gritos de dor e lágrimas – às vezes engolidas com esforço para aparentar ser “uma mulher forte”, conta Djarra –, porém não termina quando a ferida para de sangrar. A mutilação afeta no mundo 149 milhões de mulheres e meninas, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), e marca as mulheres para a vida toda: na sua vida sexual e também ao vivenciar a maternidade, quando podem surgir mais complicações no parto. “Infecções vaginais e urinárias recorrentes, quistos e infertilidade” são algumas das consequências da mutilação genital feminina, segundo a OMS.
No livro, Djarra relata a primeira vez que manteve relações sexuais como “uma experiência horripilante”. Foi uma relação consensual, porém marcada pela dor: sua vulva nunca chegou a se desenvolver normalmente. As perguntas que a assombraram quando era criança ao ver imagens de genitais no colégio e o restante das complicações que sofreu ao longo dos anos a fizeram separar a mutilação genital do carinho e do respeito que ela tem para com seus costumes e sua cultura. “A mutilação não me deu nada de bom”, afirma.
Djarra trabalha com as comunidades africanas em Navarra mediante sua própria experiência, com as perguntas e os temores que a atormentaram. “Quando você se questiona, as coisas começam a mudar. Por que me fizeram isso? Para que serviu isso? Quais os benefícios para minha saúde e minha vida sexual?”, pergunta. “Se você pensa nessas questões, nunca vai querer fazer isso na sua filha”.
“Quando comecei, era muito difícil falar sobre o assunto da mutilação. Via rostos que pareciam que iriam me comer”, conta. “Comecei a falar sobre saúde sexual, conhecer nossas partes íntimas. E aí sai o assunto da mutilação porque, quando colocamos imagens do aparelho genital feminino, há mulheres que começam a perguntar: ‘O que é isso?’. ‘O clitóris’. ‘E por que eu não o tenho?’ Então, às vezes, elas se abrem e contam: ‘Me cortaram’”, explica Djarra.
Em outras ocasiões, os muros que erguem a vergonha e o medo são muito altos. “Você tem medo de ser humilhada, que riam de você. Porém também é um medo de trair sua família, sua comunidade. É a educação que te deram. A cultura que você tem. É a sua identidade como mulher”. E esses muros, esses temores, também estão na Espanha. “O livro também está destinado aos espanhóis, porque eles pensam que a mutilação está longe, e não é assim. A imigração está aqui. As africanas estão aqui, e este é um problema de saúde mundial”, diz.
Jessica Lea/DFID / Flickr CC


Parteira fala sobre riscos durante o parto para mulheres mutiladas; em Burkina Faso, programa financiado pelo Reino Unido busca conscientizar famílias sobre mutilação genital


Fátima não guarda rancor de sua família porque considera fundamental entender o contexto em que é executada esta violação dos direitos das mulheres, condenada na Assembleia Geral das Nações Unidas em uma resolução em 2012. “Na minha família, todas as mulheres foram mutiladas. Haviam lhes ensinado que era algo puro, eram boas mulheres. Uma mulher que não é mutilada não pode participar dos rituais. Ela é uma mulher suja.”
A falta de informação e de educação protege essas condutas, motivo pelo qual Djarra decidiu dedicar sua vida a esta questão para que não haja desculpas no futuro. “Nossas famílias, nossas mães, nossas avós pensavam que era algo bom para nós mulheres, porém agora sabemos que não é. Temos que lutar para que entendam que é ruim para a saúde.”
A mutilação, conta, precisa ser entendida em um contexto de violência estrutural contra as mulheres. “É uma violação dos direitos humanos e violência de gênero. Porém lá (na Guiné-Bissau) é algo normal. Seu marido pode te bater e você vai para a casa dos seus pais e eles te dizem: ‘Volta para casa, é o seu marido’. É como se seu marido fosse seu dono”. Hoje em dia, diz ela, as coisas estão mudando pouco a pouco. “Não tanto quanto na Espanha, porém estão lutando a favor da igualdade. Se você grita com seu marido na rua, diante de todos, você vai chamar muita atenção; porém, em casa, você pode fazer isso, e a mulher pode ter o controle.”
Djarra acredita que, na luta contra a mutilação genital feminina, as leis são indispensáveis. Como a que proibiu a mutilação em seu país de origem em 2011 ou a proibição na Espanha que pune com detenção os pais que permitem que suas filhas sejam mutiladas. “Mas sem meios, sem sensibilização, não se pode erradicar a prática. Em Guiné-Bissau a lei proíbe a mutilação desde 2011, porém a continuam realizando na área rural onde não há quem faça cumprir a lei, já que não há meios suficientes para tal.”
Na Espanha, em Navarro e na Catalunha, também existem protocolos para evitar que as meninas sejam mutiladas quando viajam de férias para seus países de origem. Elas devem passar por exame médico antes e depois da visita a seu país, e seus pais levam um documento em que se informa à família que, se a menina voltar para a Espanha mutilada, seus pais irão para a cadeia. Pretende-se desta forma que os parentes não obriguem os pais a mutilar as crianças; em muitos casos, estes familiares dependem do dinheiro enviado da Espanha e a prisão dos parentes migrantes cortaria essa via de rendimentos.
Djarra destaca também a necessidade de envolver as comunidades religiosas, que muitas vezes servem de apoio para as mutilações. “Eu vou com respeito. Na comunidade africana, os homens sabem mais sobre o Corão do que as mulheres, porque têm mais oportunidades para estudá-lo. O que eu lhes digo é que não há nenhum versículo do Corão que diga que é preciso mutilar as mulheres. Se o imã entende isso, pode sensibilizar os homens que frequentam a mesquita.” Nesse sentido, ela destaca o fatwa – pronunciamento legal sobre uma questão específica emitido por um especialista na lei islâmica – assinado por 170 imãs contra a mutilação.
Djarra espera que, um dia, a tradição não proteja o que para ela é uma violação de direitos humanos. Ela diz que vive entre dois mundos, que se complementam e a enriquecem. Sua mãe só a registrou quando Guiné-Bissau obteve sua independência de Portugal, em 1973. Foi então que ela acrescentou seu sobrenome nativo, Djarra, ao nome de Fátima. Ela, como sua mãe, busca preservar as tradições, mas somente aquelas que merecem ser preservadas. “A mutilação, não”, diz ela.
Tradução: Mari-Jô Zilveti
Matéria original publicada no site do jornal espanhol El Diario.

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